14 de abril de 2006

REDAÇÕES QUE CRUZAM O TEMPO





Hélio Campos Mello chega de uma viagem do Exterior para assumir seu posto na revista Senhor, coloca a cara para dentro da sala onde tensos jornalistas estão em atividade e faz seu comentário inesquecível:
- Conheço esta redação de algum lugar.


A imagem mais poderosa de pessoas reunidas em massa diante de máquinas de escrever talvez seja a do filme O Processo, de Orson Welles, em que Anthony Perkins entra no seu ambiente de trabalho e atravessa um mar de pessoas sentadas atrás de suas mesas, acompanhado pelo barulho da datilografia. É a representação de um pesadelo, o ofício burocrático de batucar nas teclas, pautado pela indiferença. Não era assim nas redações que o tempo engoliu.

À primeira vista, o impacto era de extrema desordem. Mas se via em cada rosto a concentração necessária para produzir sob o tacão do deadline, reportando a principal armadilha humana: o conflito. Bastavam alguns dias para o iniciante se acostumar ao ritmo e às pressões e fazer parte de uma comunidade que se estendia aos bares.

Hoje vejo consultores definindo a pauta de veículos em coma, dizendo que não se pode voltar atrás, quando ?loucos apaixonados? (esse é o batismo do talento hoje) se reuniam em espaços normalmente apertados e com pouco oxigênio, para fazer o que os leitores adoravam. É preciso limpar essa mancha do jornalismo, dizem os RTs (Ruins de Texto), que no fim assumiram o poder. Um auto-ajuda desses jamais passaria pelo crivo de um chefe de reportagem, um secretário, um diretor, um editor.

Lembro meu primeiro teste, em que fui reprovado. Ansioso com a perspectiva de me tornar profissional, rabisquei o lead à mão, achando que ninguém estava vendo. Ainda não estava acostumado a pensar ao sabor das teclas e imaginava ser esse o expediente mais seguro para se chegar a uma boa abertura.
- Aquele lá, não, disse o chefe. Vai me atrapalhar o fechamento. Demora para desovar o texto.

É que eu tinha vindo de uma experiência híbrida. Minha primeira máquina, uma Smith Corona inglesa (presente do meu pai), era de tipos manuscritos. Eu passava para o papel datilografado o que tinha produzido a caneta. O resultado era parecido, como se um bamba em caligrafia caprichasse no resultado final. Aprendera por minha conta a usar os dedos, de forma errada, claro, na minha redação pessoal. Herdara uma escrivaninha dos irmãos mais velhos, que precisava de livros empilhados no suporte, à medida que eu espichava naquela difícil adolescência.

Eu era o responsável pela ata das reuniões do nosso Grêmio Literário, na quarta série ginasial. Fazia uma espécie de reportagem, puxando pela memória, e provocava desconfiança dos colegas, que não acreditavam no meu poder de narrar uma reunião mais ou menos bocejante, com uma descrição de detalhes que tinham escapado a todos na hora em que foram produzidos. Isso não foi tu quem fez, me diziam (na fronteira tu é tu mesmo). Foi com esse vício, o texto datilografado com jeitão de manuscrito, que estreei no ofício, e paguei caro por isso. Tive que aprender na marra a bater direto o original sem passar pelo crivo do lápis.

No curso de jornalismo da Ufrgs, o veterano Ernesto Correia, nosso professor, nos apresentou ao que ele chamava de maquininha mágica, o telex, que tinha a manha de, aparentemente, funcionar sem interferência humana. Pelo menos nenhum redator estava à vista e isso criava o deslumbramento, motivo de ironia dos alunos, que já possuíam aquela arrogância up-to-date, como se a tecnologia tivesse chegado ao auge e estivéssemos acostumados com isso.

Na universidade ainda passamos pelas visitas das oficinas movidas a chumbo, mas quando chegamos à profissão o off-set já fazia estrago nos velhos métodos. Foi quando as redações, acompanhando o ritmo das gráficas, começaram a assumir esse aspecto clean que é hegemônico hoje. Mas, veterano que teima em não se aposentar por enquanto, notei que muita coisa sobrevive, mesmo no silêncio dos teclados e a luminosidade insistente das telas. Nos corredores, no cafezinho, no happy hour, ainda saem as melhores pautas. O Google que nos perdoe.

O ideal é fazer como um repórter da revista onde trabalho. Belo texto, disse, como você conseguiu? Escrevi essa matéria em casa, me respondeu Wendel Martins, um dos talentos da nova geração. Escrevi de bermuda e de vez em quando abrindo a geladeira. Foi a maneira de driblar a atual fantasmagoria do jornalismo, as falas corporativas, que assombram as páginas impressas com monstros terríveis como os verbos alavancar e disponibilizar. À vontade, o espírito do bom jornalismo desce no novo repórter como um anjo.

Levamos aquelas redações junto conosco, como um braço. O perigo é se transformar num contador de histórias antigas, assustando os estagiários. ?Nos anos 50?, disse uma vez Granadeiro Guimarães para uma pobre iniciante, numa de suas lembranças, quando interrompi. Anos 50 é uma impossibilidade, disse, não dá para pessoas que estréiam na idade adulta imaginarem um tempo que faz parte da História no ensino fundamental.

Descobrimos, nesses causos que servem para matar um pouco o tempo que nos aluga a vida toda, que as pessoas com quem um dia compartilhamos mesas são hoje objeto de estudo. Era normal que Hamilton Almeida Filho e o Pena Branca aportassem para colocar na roda uma de suas inesquecíveis reportagens. Ou que Tarso de Castro viesse contar como distraiu sua nova conquista lendo os versinhos do poeta jornalista. Ou que Samuel Wainer olhasse debaixo de grandes sobrancelhas brancas e perguntasse:
- Você é editor?
- Sou, menti.
- Sim, porque eu preciso aqui de um editor. Você é editor?
- Claro, insisti.
- Então veja esta matéria sobre o General Inflação.

Wainer era de um tempo de guerra, da época do General Inverno, tão achincalhado mais tarde pelo Pasquim. Contava como desceu com Getúlio Vargas no Nordeste, com as pessoas que pareciam ter saído de um quadro de Portinari. Coisas que mais tarde Augusto Nunes imortalizou na autobiografia do Profeta, ?Minha razão de viver?. Mas eu precisava sair cedo e ele reclamava:
- O que é isso, meu filho? Não quer escutar História do Brasil ao vivo?

Queria, mas ficava para outro dia. Tudo aquilo iria durar mil anos. Durou pouco e ficamos diante da meninada com a cabeça cheia de histórias. Nenhuma completa, pois passei rapidamente pelas redações que se esfumavam, perdiam a batalha, se transformavam. Elas cruzam o tempo andando meio de lado, ou de banda, como dizia Drummond, com o peso dos que se foram.

Por isso, diante de tanto jornalista novo, com os quais aprendo muito e tento repassar alguma coisa que aprendi, costumo desistir da herança.
- O senhor é jornalista? me perguntaram um dia.
- Não, respondi.

Fui sincero. Não sou mais o que hoje se espera de um jornalista (abaixo dos 35 anos, formação em MBA, trilíngüe). E pensando bem nunca estive totalmente impregnado dessa luta, como aconteceu com tantos profissionais do primeiro time. Tive a sorte de conviver com eles.

E se insistem que eu faça alguma coisa, e sempre acabo fazendo, inicio minha arenga indignada com um insistente bordão:
- Vocês querem que eu tecle?

RETORNO - 1. Este foi o terceiro texto para o espaço Literário do Comunique-se. Desde a estréia, "Véspera de linguagem", tenho colocado todos os tempos que convivem em mim, incluindo aí o tempo presente.2. A imagem deste post é uma fotaça de Helio Campos Mello, que saiu recentemente da IstoÉ para retomar seu ofício de repórter de campo, fazendo dupla com Ricardo Kotscho. 3. Leia Jesús Gómez no La Insignia sobre o 14 de abril.

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