1 de março de 2006

O COM-CERTEZISMO NO REINO DO ABADÁ





O pensamento no Brasil já está produzido. Fica interditado o processo que leva ao conhecimento. O saber é o patamar alcançado desde o berço, para quem tem berço. Para o resto, resta saber (como diziam as matérias de revistas dos anos 70, no último parágrafo) o que já se sabe. Para adquirir status, o desprovido de saber adere ao conhecimento já definido. Por isso se fala tanto "com certeza" na televisão. A pergunta do repórter é o roteiro que leva a resposta ao com certeza. Quer dizer então que o carnaval da Bahia é um espanto? pergunta o (a) repórter. Com certeza responde o(a) turista suado(a). Na Bahia a folia matou gente, Carlinhos Brown deu uma dura no ministro Gilberto Gil sobre o apartheid que é a compra do abadá (quando se compra o direito de pular o carnaval com segurança), mas na noite seguinte voltou atrás. Tinha mexido com os poderes da República, precisou arregar. Tinha tentado desencadear um processo do pensar, mas entregou-se ao já sabido. Com certeza.

CORDÃO - Gil, que escutou Brown se arrepender e cantar uma música falando em "meu pai", mandou ver na sua produção de pensamento. Disse, segundo a Folha Online, que apartheid existe no mundo todo (então, está justificado!) e que "Carnaval é um momento em que essas questões são suspensas, porque o negro é quem faz o Carnaval, que tem esse poder, está autorizado a exercer historicamente esse poder". Essa é boa. Ninguém está autorizado historicamente a exercer qualquer poder. Todo poder será contestado. Ou continuamos na monarquia? Do Recife, para onde foi para evitar o encontro com Gil (mas a justificativa é que ele queria realizar um sonho da longínqua infância), Caetano acha tudo normal: "Não penso em cordão como apartheid. Cordão é sinônimo de bloco. A palavra [cordão] foi criada justamente por causa deles [os blocos]", afirmou. "Sempre houve cordão em torno dos blocos." Eis uma meia verdade. Justificar o apartheid entre os que podem pagar para pular e os que não podem, invocando a história dos cordões, é pura mistificação.

GRUPOS - Eu que sou de Uruguaiana, bem no miolo do pampa, sei desde criancinha que o cordão da escola multicampeã Os Rouxinóis era para dividir a escola do público e não o público do público. Ou seja, existia para preservar o desfile, que era feito no meio da massa. A escola, cercada pelos cordões, podia assim desfilar e fazer suas evoluções. Nunca houve cordão entre alguém que estava assistindo e eu. Nós todos tínhamos o mesmo direito de acompanhar a escola, que era cercada pelos cordões. Caetano usa seu conhecimento do carnaval para justificar o injustificável. Esquece que não é dono do saber. Quando o cordão separava os blocos (e não as escolas) dos espectadores, não era para cobrar ingresso de quem participava do grupo. Era para definir o bloco e não, como acontece na Bahia, para enriquecer meia dúzia,pois é nesse vespeiro que Brown tocou e teve que voltar atrás. Se uma camiseta, ou seja, o ingresso, custa mais de mil reais, e tem multidões pagando por isso, então já está formado o rolo. Acabar com isso quem há de?

FUZILEIROS - Tive carnaval de rua em Uruguaiana graças aos fuzileiros navais. A Marinha, presente em águas da fronteira, levou para lá inúmeros brasileiros o Rio, Bahia e todo o Nordeste. Fundaram escolas, que são tradicionais. Eu via escolas mirins com mais de cem metros, só com gurizada, na maior estica, com gloriosa bateria. Muitos anos mais tarde, os jornalistas de Porto Alegre descobriram, espantados, que havia carnaval lá. Quem aderiu à festa na fronteira foi a Valeria Valensa, ex-Globeleza. Faz o maior sucesso. A foto deste post é do portaluruguaiana, de 2005: Valensa e Os Rouxinois.

LIVRE - Já escutei ironias sobre o excesso de posts aqui no Diário da Fonte. Replico que este é um jornal diário, desde 2002, que aborda de tudo. Nunca tive esta oportunidade na vida e não vai ser agora, quando ainda temos liberdade na internet, que vou desperdiçar. Tenho leitores fiéis que me acompanham e eventualmente comentam. Fico feliz com o retorno e vou continuar, pois não consigo passar muito tempo sem escrever e publicar aqui o que me ocorre. O DF é um processo de produção de pensamento, e pode muitas vezes entrar em contradição. Mas não é pensamento pronto e não comercia abadás para ser acompanhado.

RETORNO - Depois de cinco séculos de luta contra os hispânicos para definir fronteiras (já que eles queriam tudo), e assim garantir a sobrevivência do povo que mora dentro delas, triunfa o sentimento híbrido de latinidade, premiado no carnaval via Vila Isabel. Dizem que o côco-bicho Hugo Chavez gastou um milhão e meio de dólares na escola, que diz no seu samba enredo: "Apagando fronteiras". Fronteira de país rico é cada vez mais protegida (os muros voltaram). De país pobre, a publicidade se encarrega de enterrar. Viver sem fronteiras é cair preso no deserto americano. Viver sem fronteiras é amargar o exílio. Viva a fronteira. Quem vem lá?

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