11 de novembro de 2005

AS CIDADES E OS LIVROS

Nei Duclós


Não precisamos incentivar o fetichismo dos livros, como se fossem algo sagrado, fora do alcance dos mortais e mereceredores de estantes de luxo, encadernações douradas ou, pior, demonstrações de erudição do proprietário ou do autor. O livro também não pode ser tratado pelo avesso dessa abordagem, como lixo, como se fosse um apêndice qualquer das nossas vidas de consumidores, facilidades de uma vida cheia de quinquilharias descartáveis. 

Livro é o que aprendi nas bibliotecas: a pequena coleção de alguns volumes da minha família; o bom acervo disponível no Colégio Santana, que fica em frente à casa onde me criei, em Uruguaiana; a reveladora e transformadora biblioteca da faculdade de Filosofia, Ciências Sociais, História e Jornalismo da Ufrgs, em Porto Alegre; a vasta rede de bibliotecas da USP; e a quantidade de livros que acumulei ao longo da vida. 

O livro faz parte de nós, seres culturais, como se fosse pele, coração e cabelo, como notou na Folha, numa crônica, o poeta Ferreira Gullar. Somos nossas leituras, e se não lemos pensamos pela cabeça dos outros, que escreveram e leram. Não tem escapatória: ou você interage com os livros ou os livros que você não lê vão dominar você, por meio dos outros.

MANUAIS - Livro não é só literatura. A Inglaterra deve sua vitória à popularização dos manuais técnicos da Marinha Mercante, que fizeram de um povo uma comunidade gigantesca de especialistas de todos os tipos. América é um nome que surgiu da leitura das aventuras de Américo Vespucio, que pelo livro sobre navegações conquistou o lugar que caberia a Colombo. Um livro didático pode salvar ou destruir uma geração. Lembro da cartilha onde aprendi a ler. Era o método que começava com as vogais, ia para as consotantes e as sílabas, diferente do que veio logo a seguir, quando colocavam na frente do pobre aluninho palavras completas para ele decifrar o sentido. O convívio com minha neta Maria Clara, de oito meses, prova que o processo silábico é natural. Ela começou com vogais e ditongos e já colocou na roda duas consoantes, o b e o m, véspera da linguagem que está por vir. Um bebê demora para treinar todos os hábitos que levam à primeira palavra. Observa, imita, cria, articula. Nada é automático ou mecânico. Leva tempo e dá trabalho. A luta pela linguagem, é , portanto, parte indissolúvel das criaturas humanas. Por isso somos seres culturais. A raça ou a origem não importa. O que vale é a estrutura mental voltada inteiramente para captar sons e dar-lhes sentido. Por isso o livro é um instrumento básico de sobrevivência. Não se trata de luxo ou penduricalho. É seu sangue que está ali.

DIVERSIDADE - Felizmente, tive acesso a todo tipo de autor. Mesmo estudando em colégio católico, que não recomendava a leitura do ateu Monteiro Lobato, me esbaldei no Sitio do Picapau Amarelo em toda a minha infância e adolescência. Comecei com Reinações de Narizinho, onde aprendi a viajar na imaginação para todo tipo de mundo. Depois foi a vez das aventuras, as Caçadas de Pedrinho ou as Histórias de Tia Nastácia. Aí pelos dez anos A Grécia entrou com tudo: os Doze trabalhos de Hércules. Mais tarde, o assustador A Chave do Tamanho (seu melhor livro, na minha opinião), e os mais intrincados e didáticos, Gramática da Emilia, Geografia de Dona Benta e o Poço do Visconde. Na biblioteca do Santana, li Emilio Salgari adoidado, viajei pelos sete mares em navios carregados de insurrectos (era essa a palavra usadas naquelas traduções, possivelmente portuguesas). Chegando em Porto Alegre, descobri Fernando Pessoa e Garcia Lorca, Mario e Oswald de Andrade, e isso foi a porta escancarada para a grande literatura universal. Entendi que os grandes autores são os mais acessíveis, os mais cristalinos, os mais saborosos. No fundo, não existe nada intrincado quando você tem vontade. Ler o que se gosta é fácil, o importante é também ler o que se acha que não se gosta. Quebrei a cuca para entender Ezra Pound, T.S. Elliot, os irmãos Campos. Mergulhei em autores complicados como alguns (poucos) filósofos, especialmente Michel Foucault, meu favorito. Mas saí de cada leitura melhor do que entrei. Isso acontece com todo mundo.

SUSSURRO - É bom ler. E não apenas livros. Lembro das magníficas edições da revista Cruzeiro, Manchete, Seleções, Revista do Globo, Alterosa, Billiken, Para Ti e tantas outras. Líamos de tudo, o tempo todo. E dê-lhe gibi: faroeste, Bolinha, Disney. Tínhamos longas sessões de leitura coletiva, ao lado de pilhas de revistinhas. Havia também coleções como O Mundo da Criança, de capa dura, sobre assuntos variados, que acho ter lido inteirinha. Ler é como respirar. Se falta o ar, podemos entrar em fase de catatonia ou desespero. Acredito que o vazio cultural, a falta de leitura, gera almas vazias e violentas. Um livro conforta e faz companhia. Quando tudo parece estar perdido, um autor chega para nós e nos sussura o segredo de estarmos vivos.