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22 de fevereiro de 2005
O SOPRO IMORTAL
O texto é uma criatura que precisa ter fôlego para sobreviver ao criador. O barro das palavras não é suficiente. É preciso soprar nele uma alma imortal. Feito o verbo do Criador, que a partir do mundo concreto, as consoantes, animou pelas vogais o próprio desdobramento, à sua imagem e semelhança. A divindade entrou no perigoso jogo da invenção porque gostou do que tinha feito. Sua extrema bondade decidiu dar a luz a quem estava fora dele. Assim também a literatura. Não basta reproduzir o próprio poder numa infinidade de linhas. É preciso que em cada uma delas alguma coisa viva se mexa, e é essa animação que mantém acesa a chama que permanece. Escreva para o momento em que você não estiver mais sobre a terra e usufrua desse milagre que salta diante dos olhos como uma alegoria. Não há amor maior do que descobrir no que você escreve o rastro de uma estrela em formação.
ARTHUR - A crônica sofre do mal da nossa época, que é insistir no presente, ou melhor, nas ilusões do tempo. Os autores procuram o supérfluo, determinados a não cansar os leitores com o brilho misterioso no alto da montanha. Perda de tempo. Na hora em que você termina o artigo, ele já se torna antigo, e quando vai para a publicação, chega morto ao público. Como tudo já foi escrito, ninguém mais se abala com a mínima provocação, a não ser que você encarne um espírito maior e vista a túnica de Merlin. Lá estão os adolescentes tentando tirar a espada da pedra. Um deles será o escolhido. Quando Arthur consegue repetir três vezes o gesto impossível, Merlin sabe que chegou a hora. Fique de tocaia na hidra que se mexe no fundo da gruta. Ela tem mil cabeças e um milhão de olhos. Mas sobre isso que parece um monstro existe apenas areia. Sua opção pode ser o uso de um pouco de poeira para fazer funcionar a clepsidra. Mas há outro caminho, não isento de sacrifício. Você entona a voz de trovão e fala para os arbustos. O vento debocha das suas intenções. Mas de repente surge a salsa ardente e você vislumbra o eco da passagem dos centauros. Tudo besteira, dirão, não há verbo se a linguagem está em ruínas. Quem é você para contrariar os desígnios do Mal? Mas você tem uma arma secreta: sabe que vai morrer. Por isso joga o cântaro sobre o grão fino do deserto e atira-se ao pequeno monturo que consegue reunir. Quando tudo parece esvair em seus dedos, recite a frase mágica. E, como o Criador, descubra a vogal sem nome, aquele grito dado por Deus quando viu-se cara a cara com o espelho. Lá nascerá a sua fonte. Mas não se atire nela. Dê de beber aos beduínos sedentos. Eles azeitarão as armas em tua defesa.
GILBERTO - Li Saint-Exupery numa época parecida ao que ele escreveu, não tão intensa, mas com o mesmo ambiente da certeza da morte em vida. O escritor procurava um sentido nos territórios onde não existia a guerra. O céu sem fim, o deserto, o gelo mortal, levavam à paz, refúgio para a a perdição e o desespero. Ele encontrou nas palavras algo que ficou para sempre. Li topos os seus livros rodeado pelo troar da ditadura, aquela que matou pouco, segundo um dos seus defensores. Vi amigos sumindo para lugares sem nome. No dia em que vi Gilberto Gick pela última vez, sua imagem estava espalhada por toda a cidade. Ele tinha posado para um out-door e lá estava sua cara loira, seu sorriso forçado (pelo excesso de lucidez), com as mãos postas para a frente. Passeamos pela última vez no seu carro. Ele me disse que estava partindo para outra. Iria embora de Porto Alegre, retirava-se da juventude. Nunca mais o vi. Levou dois tiros num evento muito mal explicado e foi-se para sempre. Era um especialista em conquistas. Todas as portas se abriam para ele e nossas famílias, amigas, se confidenciavam que toda criança setemesinha tinha esse dom. Talvez a pressa em vir ao mundo revelasse um poder de sedução maior. Olhava-se no espelho várias vezes antes de sair. Por um tempo, fomos inseparáveis. Íamos indo pela rua e um menino muito pequeno estava de roupinha limpa, cabelinho molhado, muito compenetrado. Gilberto não teve dúvida e lascou sua pergunta lapidar: Tomou baiinho, tomou? Até hoje uso essa tirada. Estávamos estudando para o vestibular (de Engenharia!) num apartamento dos parentes dele e o ambiente ficou insuportável. Não lavávamos nada e as coisas começaram a se amontoar. Lembro que derramamos um balde de água suja na cozinha, um acidente no momento de fazer um lanche. Gilberto olhou para aquela inundação, naquele verão impossível e proferiu mais uma: Não tem problema, isso evapora. Éramos assim na juventude, quando realmente fomos imortais e o mundo partiu-se diante de nós como um deus que ri da própria piada.
SAUDADE - Gilberto adorava Exupéry, entre muitos outros autores. Qualquer obsessão que captava em algum conhecido, debochava, invocando o grande escritor: São os rituais, são os rituais! O que fica dele é a nossa enorme saudade. Por isso não podemos perder tempo quando estamos diante de um texto que se revela na nossa frente. É nossa única passagem sobre a terra. A alma tem pressa de partir para o Outro Lado. Toque na sua vida como se estivesse palmilhando terreno sagrado. Irrompe do solo em chamas a glória de sermos assim, criaturas datadas, mas tombadas pelo projeto inadiável da eternidade.
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