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8 de fevereiro de 2005
A BEIJA-FLOR NO ASFALTO
Foi na era Vargas que as escolas de samba começaram, por orientação do governo, a representar temas de História, especialmente as do Brasil. Foi uma idéia tão brilhante que até hoje não foi abandonada. Tornou-se marca registrada do desfile, que na edição de 2005 acabou nesta terça-feira com o tema Civilizadores e civilizados, encenado pela Beija-Flor de Nilópolis. Em plena manhã de Carnaval, as modernas Antropologia e História são espezinhadas pela ignorância explícita, pelo império dos lugares comuns e pela ingenuidade intelectual a serviço do anti-Brasil. Samba do crioulo doido, dirão, samba-enredo não é para ser levado a sério, deixe para lá. Não devemos deixar nada para lá. Carnaval não é inocência, é reiteração de hábitos e idéias num país que orgulha-se de movimentar R$ 10 bilhões em turismo sexual gay, como foi alardeado pela imprensa, de ser a Meca da tesão mundial e de se consolidar como o rabo do mundo. Mas nosso tema é a Beija-Flor, que se apresentou por último na chamada Marquês de Sapucaí, nome que substitui o Sambódromo, obra de Leonel Brizola.
PASPALHÃO - Ferreira Gullar revela-se um paspalhão nas suas crônicas dominicais na Folha. Aquele que é um dos principais poetas do Brasil e já foi um teórico da cultura ( coisa que da qual ele abdicou num dos seus textinhos) referiu-se ao Sambódromo como se fosse uma obra do acaso, como se alguém anônimo tivesse criado essa solução definitiva para os desfile das escolas de samba. Ele cita apenas o Oscar Niemeyer ( o estalinismo como loja de brinquedos ) e deixa de citar, de propósito, Darcy Ribeiro e Brizola. É assim mesmo, eles jamais vão desistir de enterrar qualquer clarão do Brasil soberano. O que a Beija-Flor fez com a História não está no gibi. Berrou na passarela que os jesuítas vieram aqui civilizar os índios, o que é de uma grosseria sem fim, contrariando tudo o que exaustivamente se escreveu nos últimos anos sobre a especificidade das culturas, sobre a barbárie que foi a destruição genocida dos povos que habitavam estas terras antes da chegada dos europeus. Houve a substituição de uma cultura pela outra e não uma ação civilizadora. A letrinha do samba (gritam civilizaaar metendo o baixo ventre para a frente e para trás, no gesto típico de hoje, em que a baixaria explícita comanda) também tira um toco do Tratado de Madri, que justificou a destruição dos Sete Povos das Missões. A obra jesuítica dos espanhóis foi um trabalho feito com as sobras dos povos aniquilados. Os Sete Povos, no entender de Portugal, ajudavam a implantar em solo americano a hegemonia da Espanha. Foram trocados pela colônia portuguesa do Sacramento, estrategicamente mais importante, pois dividia o Prata. Os portugueses abriram mão daquele enorme estuário (o verdadeiro grande rio do sul) e tocaram os espanhóis para o outro lado do rio Uruguai. É uma história complicada, que não pode ser tratada com a irresponsabilidade de uma mega-representação que, no fundo, serve para interesses nem tão ocultos assim. Quais são esses interesses? O maior deles é a partilha do Brasil.
PUREZA - Vejam a continuidade do samba-enredo. Os imigrantes europeus são colocados como gestores da fartura, enquanto os escravos pretos são representados só pelo cativeiro (ou pela sua existência na África), e jamais pelo sua real contribuição ao país, que foi o trabalho. Assim, os imigrantes europeus (que estão há centenas de anos no Brasil, mas ainda se sentem, com muito orgulho, estrangeiros) estão relacionados com o trabalho produtivo e feliz, enquanto o negro com a escuridão do cativeiro e à preguiça. A História mostra o inverso. Quem fez o Brasil foram os negros africanos, que aqui se aculturaram, ou sejam, perderam sua identidade original e formaram, junto com outras raças, um outro povo, a meta-raça de que nos fala Gilberto Freyre, algo que está relacionado com a cultura e o comportamento não com o sangue. Os imigrantes foram chamados para branquear a nação (fizeram o mesmo na Argentina, lá funcionou, os pretos sumiram milagrosamente de um momento para outro; quem resolverá esse enigma?). Sou alemã cem por cento pura, me disse uma comerciária esses dias. Repliquei que cem por cento puro só cavalo árabe e chamei a atenção para o nariz de batata dos falsos alemães brasileiros, presença genética notória de índio e negro.
RISOTA - O que tem tudo isso a ver com a partilha do Brasil? O que se confirma, o que se reitera a toda hora e em toda a parte é a inexistência do Brasil soberano. Nosso país seria apenas uma obra de europeus que aqui vieram trabalhar a nosso favor, a nos civilizar, portanto não temos direito nenhum à existência como nação. Lutamos todos os dias para termos o território que hoje dispomos (até quando?), mas o que se diz é contrário, que tudo é obra do acaso, ou dos que vieram para cá. Precisamos nos entregar para os outros para que nos aceitem, para que possamos fazer macaquices e eles possam então levar tudo. Já levaram ouro, metais e pedras preciosas. Já levaram estatais e exploram todos os serviços básicos. Agora vão entrar com tudo na infra-estrutura sucateada de propósito para continuar lucrando. Nossa dívida é impagável e vamos nos endividar até não poder mais. O prazo que nos deram é 2025, quando vencem as letras do tesouro nacional. Se eu tiver sorte, não estarei mais por aqui, mas vou puxar as pernas dos traidores. Uma coisa que me irritou profundamente foi essa Leci Brandão dar uma risotinha quando falou em chimarrão. Os ignorantes da mídia se acham os imperadores da cocada preta. Um detalhe da História que passou ( e não tinha outro jeito, porque aí o desconhecimento é geral) é a existência de outras tribos nos pampas, afora os guaranis. Charruas e minuanos foram aniquilados, mas deixaram descendência. Minha mãe, e portanto eu, era um dos exemplares misturados dessas raças. Era morena, alta, filha de mãe brasileira com nome italiano, e de pai brasileiro com nome português. Mas sua bisavó era uma índia charrua que muito menina foi convocada à força para a procriação. Chega de incensar japonês, italiano, alemão. Chega de vender jogador para a máfia russa. Chega de exportar proteína (carne e frango), de alimentar porco na Europa. Chega de plantar soja, de fabricar pobreza, de roubar tudo o tempo todo. Chega de contrabandear pedras preciosas. Chega de levar ouro, ferro, manganês. Chega de pedágio, de matar gente em estrada, de repetir todos os dias que trem é coisa do passado. Chega de ditadura.
RETORNO - Recapitulando: os negros do Brasil deixaram de ser africanos há séculos, mas reivindicam essas raízes como identidade (não é mais, ou cor da pele conta? ué, isso não é racismo?); os alemães e italianos deixaram de ser europeus há mais de um século, mas acham que ainda são os próprios (não são; queiram ou não, são brasileiros, mas não brasileiros de araque, pró-forma, para fazer gênero, dizer sou brasileiro e continuar achando que são alemães; são brasileiros mesmo, e disso não podem fugir). Brasileiro de copa do mundo não vale. Brasileiro ufanista, reacionário, estamos cheios. Brasileiro para justificar grilagem de terra e exploração de mão-de-obra barata, basta. Quero dizer brasileiro, como quem diz chega de despotismo. Brasileiro como opção libertária. Mas não como pose de libertador das massas. Como opção libertária, ou seja, sem levar nada com isso. Brasileiro como prejuízo, como sonho, com cheiro de terra molhada pela chuva.
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