22 de dezembro de 2004

O MAL QUE AS PESSOAS NOS FAZEM

O mal nem sempre é consciente, pode ser oculto, como um espinho encravado. Ele gruda em ti como um instrumento de feiticeiro enviado à distância para te matar. O objetivo desse mal é dispor de ti como um pedaço de pão. Querem tudo e tudo tomam, e ainda se ofendem quando reagimos, quando nos damos conta que estamos sucumbindo à miséria alheia. O mal que as pessoas nos fazem, especialmente as mais próximas, têm endereço certo: te eliminar para sempre, mas antes usufruir cada gota de sangue que dispomos. Os cretinos dirão: quem manda ser trouxa. Tua consciência diz: não havia outro jeito, pois o mal se serve da chantagem para manter-se e disfarça-se de humano para te encher de culpa. Esse é o mal que pega e está por toda a parte.

VIDRO - Lembro que nosso galpão dos fundos ficava às vezes completamente vazio. Era usado para estocar bolsas de arroz ou trigo e nessas bolsas brincávamos de mocinho e de esconder. O divertimento era uma dupla levantar um saco (que tinha normalmente 60 quilos) e um atirador ficava de plantão, com um pedaço de madeira grossa na mão e o braço no alto, em posição de ataque. Debaixo dos sacos saíam aos borbotões os ratos que eram nosso alvo. Alguns de nós se especializavam no ofício e acertavam de primeira, mesmo que a vítima tivesse extrema agilidade e subisse pelas montanhas empilhadas, que enchiam o galpão até o teto. Nas alturas, gostávamos de olhar pelas pequenas janelas que davam um pouco de ar para o ambiente normalmente muito fedorento. Era nosso play-ground. Pois quando estava vazio, no chão de concreto jogávamos futebol, em partidas disputadíssimas. O local tinha grande vantagem: a bola jamais se perdia, batia na parede e voltava para o ringue. Às vezes inventávamos brincadeiras de saltar, para ver quem era o melhor. Lembro que um dia não queriam que eu participasse dessa olimpíada, que juntava grossa meninada da região (ou da zona, como dizíamos, o que nada tinha a ver com a putaria). Como jamais me conformei com a exclusão, insisti. De má vontade, eles aceitaram, mas com uma condição. Eu deveria saltar e colocar o pé, na queda, bem em cima de um vidro pontudo, colocado por eles no meio do galpão. Lembro que fiz exatamente o me mandaram. Fui correndo, dei o salto e coloquei o pé no vidro, o quer provocou grande quantidade de sangue. Por que fiz isso? Porque aceitei o mal, queria ser incluído, então fiz o que me mandaram. Quem manda ser idiota, mas era assim que minha cabeça funcionava. Eu não encarava o gesto alheio como o mal, simplesmente aceitava as regras.

RASGO - Como escapar desse mal? Assumi-lo, ser um deles, fazer o mesmo, retaliar? Nunca pensei assim. Prefiro o canto confortável da cabeça bem resolvida, pois preciso dela para o trabalho e a literatura. Faço histórias desde sempre. Muitas vezes as narrativas se insurgiam e o revólver do mocinho, para meu desespero, tornava-se maleável e não obedecia aos meus comandos. Precisava desistir da bobagem em que estava pensando, sair do quarto, ganhar o quintal e lá...enfrentar novamente o mal que estava pronto e disposto para o proveito completo. Para fugir da armadilha, confundia as coisas: tudo o que eu fazia bem e era, enfim, aceito, me colocava a pulga atrás da orelha. Se estão gostando é porque estou fazendo errado, raciocinava. Então, de goleiro exímio que fui (fruto da minha exclusão, pois não me deixavam jogar no ataque), exigia ir para a linha, fazer gols. Claro que não conseguia, e voltava para minha posição. Foi assim quando encontrei minha linguagem poética, a partir do poema Outubro. Desconfiei que estava sendo aceito demais e parti para a transgressão. O resultado foi um monte de asneiras em forma de poesia, que quando chegou às mãos do meu pai, foi rasgado por justa causa. Voltei então ao que sabia fazer bem. Mas também passei por um longo tempo sem produzir nenhum poema, desviado de mim pelas contingências que me perseguem desde a infância. Para agradar os outros, me podei até o osso e implantei no rosto e no corpo uma não-identidade. Disso me escapei há vários anos, mas até hoje as marcas desse exílio me assombram.

BANDEIRA - Fazes tu o mal contra ti mesmo, dirá a literatura de auto-ajuda, essa que medra na economia globalizada, que terceirizou todas as responsabilidades, tirou a culpa do sistema e colocou no indivíduo, dizendo: se virem, morram enquanto é tempo. Acho que não, o mal é os outros que nos impingem. Somos do bem, nascemos nele e nos transformamos em monstros devido a esse cerco da inveja. As pessoas gostam de repartir o próprio inferno e nele embarcamos com tudo. Vejam o que acontece com o Brasil, hoje o rabo do mundo. Um fundo de grana de origem polêmica (como atestam inúmeras reportagens) adonou-se do patrimônio nacional que é o Corinthians (sintoma do sucateamento do futebol brasileiro, que começou vendendo os craques e hoje está na feira exposto como um frango assado). A primeira coisa que a nova parceria fez foi gastar 50 milhões de dólares num jogador argentino, que com o maior desplante disse na primeira entrevista que acha Maradona maior do que Pelé (cate-se, imbecil). Vejam a foto publicada na capa da Folha num encontro desses entre estadistas de estádio, mostrando o Kirchner colocando o dedo na cara do baixinho Lula. O presidente argentino faz gato e sapato do Mercosul, impõe o que quer e tudo aceitamos com o bico calado. Por que? Porque queremos agradar os milongueiros, os pernas-de-pau que celebram seus gols como se tivessem cometido um assassinato (fechando e sacudindo freneticamente os punhos, fazendo caras de extremo gozo sofrido e enfunando as bolas). Eles não perdoam o país pentacampeão do mundo. A culpa é nossa, claro, dirá a literatura de auto-ajuda. A culpa é da entrega do Brasil à sanha estrangeira. No Casseta& Planeta desta terça-feira, uma prostituta negra vestindo a bandeira do Brasil negociou o michê com o Papai Noel, que ofereceu como pagamento brinquedos como bicicletinhas. Trata-se de uma canalha imperdoável. São o mal explícito, que entregam a soberania na parte mais sensível, o imaginário do país. Como é que coisas como o tal de Xandy, que tem no seu currículo o rebolar constante da genitália e um casamento com uma starlet do Tchan, tomou todos os espaços da televisão, enquanto amargamos a ausência dos nossos grandes músicos? Assim como Xandy jamais deveria ocupar o espaço que ocupa, os tais Cassetas deveriam sair da tela, pois expressam o desprezo ao país e ao povo. Censura? Não, defesa própria. O Brasil é o rabo do mundo, mas isso não pode ficar assim.

RETORNO - 1. O programa Casseta colocou também o Papai Noel na praia e isso jogou um balde de água fria no meu conto de Natal. Mas continuo outra hora. 2. Fernando Pereira da Silva me envia mensagem ponta firme dizendo-se leitor assíduo do blog e viajando nas memórias que são nossas. Fez valiosa correção ao me lembrar que o apelido do Walfrido não era Papagaio, mas Rato. 3. Virson Holderbaum me liga e agradece publicação do trecho das suas memórias aqui no DF, o que já causou entusiasmada recepção entre pessoas chegadas que se identificaram com a viagem do nosso Conde Holderbaum. 4. Apesar de render-se ao Xandy, Tom Cavalcanti é hoje o mais importante artista da televisão brasileira. Sua denúncia sobre a sociedade de classes no quadro O Infeliz e na sua hilária imitação do Clodovil já fazem parte da antologia da telinha. Tom mostra que a aldeia global, tão celebrada antigamente, faz jus ao nome: é uma aldeia medieval, cheia de escravos, com alguns senhores (de todas as nacionalidades) chicoteando.

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