16 de dezembro de 2004

O PAÍS DOS CORPOS SUBMISSOS

Vejo de relance o noticiário na tevê, que pega mal dentro do ônibus vindo do norte da ilha para o centro. Alguém está fazendo uma careta de dor e, deitado de bruços, torce o pescoço e olha para cima. O automático que temos na mente informa: é um assaltante sendo dominado por algum policial. Mas eu estava enganado. Era um atleta fazendo alongamento. Veio então uma seqüência de caratonhas, pernas dobradas, cenhos carregados de submissão absoluta. Era preciso distender os tendões, soltar os músculos, deformar tudo para que o corpo fique à vontade para agüentar o tirão dos jogos deste final de temporada. Logo depois, mais uma matéria sobre a obesidade, apresentada por um casal de jornalistas magrinhos. Falavam em algo inverossímel, as calorias. O corpo, no Brasil, está deslocado. Quem fica parado, é culpado. Quem corre, pode morrer. É que não deveríamos ter corpo, assim como o Brasil não deveria existir.

MEMORIZAR - Nasci envergonhado. Tenho apenas 13 meses de diferença do meu irmão imediatamente mais velho. Minha mãe tentou esconder a barriga do seu quinto filho, pois tinha acabado de dar à luz. Cidade do interior de ruas largas, é impossível esconder alguma coisa. Entrei na carona daquela família, marquei cerrado para vir e dei trabalho como ninguém (qualquer mudança de ar me deixava em pandarecos). No pré-primário, sentava num canto, numa isolada mesa oval e lá permaneci o ano todo. Às vezes levantava a cabeça e duzentas cabeças me olhavam. Estavam todos fazendo algo na grande mesa central, mas para lá eu não me dirigia (não me sentia convocado). Lembro do primeiro dia de aula: cheguei atrasado e todos pararam imediatamente da fazer a barulheira infantil normal. Todos encaravam o intruso. Quando fiz o segundo ano do pré, a professora não me agüentou e me obrigou a ocupar outra mesa, junto com os colegas. Aí começou meu aprendizado, pois só entendi alguma coisa do mundo quando fui cercado pelos meus contemporâneos. Soube então que a letra i maiúscula poderia ser representada por uma torre de igreja. Que a letra e era o desenho perfeito do perfil de um elefante e seu marfim. Aprendi a ler de maneira eficiente: primeiro as letras, depois as sílabas, depois as palavras e finalmente as frases. Nunca entendi os métodos ditos revolucionários que fazem a pobre criatura visualizar palavras complexas como se isso fosse possível fazer algum sentido. O analfabetismo funcional vem principalmente dos erros didáticos como esse. É preciso dar um passo de cada vez. Memorizar quando for preciso. É preciso exercitar a memória, decorar princípios fundamentais. Chamam isso de decoreba. Sempre achei que a educação foi destruída pelos que tiravam notas baixas. Eles se vingaram.

CANTORIA - Minha mãe aprendeu a tabuada cantando. Participava do coro dos alunos orientados pela professora. Jamais esqueceu e sabia fazer contas na ponta da língua. Hoje vejo pessoas com máquina de somar diante de si fazendo contas com os dedos. Juro. O ensino de matemática é um desastre, pois é uma sucessão de fórmulas. A matemática precisa da linguagem, de frases que conceituam as operações, para poder ser entendida. É preciso muito português em matemática. Todo o sucateamento da educação obedece à lei de sucateamento do país. Para que os corpos fiquem submissos é preciso que as mentes sejam criadas no bloqueio absoluto. A ignorância é espontânea, como notou Bill Waterson na sua tira genial sobre Harold e Calvin. Permanecer ignorante é ótimo para consumir a tralha cultural, candidatar-se a subemprego, servir de mão de obra barata, tornar-se escravo para toda a vida, negar a soberania do país. E os que sobram, quem consegue se alfabetizar, é colocado na vala comum da cultura de massa, essa que foi saudada como a grande libertação e hoje vemos que é apenas um truque para meia dúzia de espertalhões obscurantistas encherem os bolsos. Trabalhar com a diversidade daria, em tese, prejuízo. O importante é concentrar tudo em alguns idiotas para que a população não tenha saída e consuma a porcaria cevada na estufa da ditadura em que vivemos.

LAVAGEM - Há uma campanha contra a obesidade na mídia, sem que se diga o essencial: que perder a forma é fruto da submissão do corpo. A escravidão gera pessoas travadas, tanto as que praticam esporte compulsivamente quanto as que se deixam levar pela péssima alimentação que dispomos. O Brasil produz alimentos para exportar. O que sobra para a população é mistura, lixo para porco. Pagamos caro pelas porcarias que nos vendem, enquanto lá fora comem nosso melhor camarão, a lagosta, a laranja sem agrotóxicos, o pêssego perfeito, o café de primeira. Aqui consumimos a lavagem que sobra. Precisou vir empresa mexicana para dar um pouco de moral na fabricação de sucos, que antes era um horror. Precisou que os coreanos viessem gargalhar de tanto ganhar dinheiro com suas vans para o Brasil parar de produzir a mesma Kombi de décadas. Precisou vir americano ensinar a ganhar dinheiro com lixo embalado como refeição rápida para entendermos que podemos ser muito melhores, pois inventamos o Bauru e outros grandes sanduíches e onde eles estão? Confinados em algumas lanchonetes, enquanto a marca do hambúrguer triunfa como um Godzilla no país dos corpos submetidos à barbárie. Nasci envergonhado, mas a brutalidade geral me obriga a dar o troco.

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