20 de outubro de 2015

DA CRÍTICA


Nei Duclós

Criticar não é faltar com o respeito, é colocar em dúvida o que é hegemônico fundado na tradição. Há a crítica desrespeitosa, mas isso não faz parte da análise e sim do impropério, do xingamento, da briga ideológica, da disputa de cargos, da necessidade de mostrar força. O que nos interessa é a abordagem isenta e racional, sem que esses conceitos sejam manipulados sob a ótica do fundamentalismo. O pesadelo da razão não deve se impor a uma crítica, que para ser boa não precisa ser obrigatoriamente construtiva.

Precisamos começar definindo o que é tradição, sem invocar o vasto acervo que cerca essa palavra. A produção do pensamento não é fast food, mas nem sempre prescinde da velocidade ou do conforto de manobrar na superfície. A tradição é o que sobrevive apesar dos embates da transgressão em sucessivas gerações. As vidas, quando chegam na fase terminal, costumam recarregar os conceitos tradicionais porque é deles que precisam para continuar em frente. A ultrapassagem, a ruptura, por não construírem uma tradição, já que existem a partir da oposição à herança, acabam sucumbindo ao poder maior do que já está estabelecido há tempos. O revolucionário migra para o conservadorismo, mesmo quem optou pelo marxismo, que, como todas as outras culturas, conseguiu formar um escopo de granítica preservação.

Opor-se ao marxismo é complicado, pois os fundamentos da teoria atingem duramente e de maneira clara a trajetória da civilização. Ele perdeu a forma ao transbordar para o socialismo (que lhe precedia), o reformismo, a aceitação pelo cânone. Foi desmoralizado com a “paz americana” a partir da queda do muro de Berlim, mas se mantém, apesar de os partidos marxistas terem mudado de nomenclatura (nem todos, no Brasil ainda se usa a palavra comunista, à esquerda e à direita). É possível criticar de maneira competente o espírito revolucionário que mantém as mesmas certezas das suas origens nos séculos 18 e 19, mas não a performance teórica e filosófica que impregnou as ciências humanas. Pode-se discordar da luta de classes como presença permanente e hegemônica na História humana, mas não a influência da vida prática na formação dos conceitos, o poder da infraestrutura sobre a superestrutura, mesmo quando isso não obedece ao fundamentalismo do materialismo dialético.

O fato é que se anda em círculos quando se fala em opções políticas e religiosas. O catolicismo deu uma guinada importante com João 23 mas recuou até achar um equilíbrio com João Paulo II e hoje passa por crise de credibilidade com o Papa que pretende ser capa da mídia todos os dias (isso depois da experiência de Bento XVI, um teólogo tradicional que não segurou as pontas soltas da sua religião). Jovens judeus revolucionários, por mais bem humorados que sejam, acabam se rendendo ao cânone ortodoxo, e é isso que mantém a cola que gruda o estado israelense, pois sem a tradição não haveria chances de o Estado se manter em território conflagrado. O movimento negro perdeu seus grandes lideres dos anos 1960 e uma parcela dele, na América, ascendeu socialmente, mas está vivo no varejo, batendo forte em cada evento formatado pelo preconceito. As mudanças não influem radicalmente na postura, já que a repressão continua firme.

No Brasil a confusão instalou-se a partir do momento em que a esquerda atinge o poder e esbagaça o patrimônio da nação, sob o álibi que era um acervo amealhado em séculos de exploração. Não se atentou ao fato de que um país é feito pelo seu povo, por mais submisso que seja, e destruir o que foi construído via corrupção ou abertura completa à invasão estrangeira tira o principal da existência da nação, pois o Brasil foi feito para abrigar os brasileiros, ou então não teria sentido.

Os conservadores se perderam no liberalismo globalizante e hoje tentam demonizar os adversários que lhe impuseram humilhante derrota via urnas eletrônicas suspeitas. Não se pode lutar para restaurar uma ditadura sob pena de desmoralizar a indignação. Assim como não se pode deixar passar em branco o volume de denúncias sobre a roubalheira geral patrocinada pelos novos donos do poder.

Trinta anos do novo regime dito democrático criou uma tradição de incompetência e desvirtuamento das instituições. Busca-se desesperadamente a volta da credibilidade para que a nação permaneça em pé. Nesse processo vale tudo, até esquecer os pecados da farda, que foi erradicada do poder pelo seu complemento civil dos anos de chumbo. Podemos exercer a crítica sem cair na tentação de definir o inimigo para podermos assumir uma identidade. Nosso inimigo não é a República nem a democracia ou a esquerda. Nosso inimigo é difuso, navega entre a imoralidade vigente e a necessidade de mudança. Tenta-se cristalizar o adversário por meio de bonecos infláveis gigantes, mas toda forma de ação sem um foco definido acaba se esvaziando – à força ou não.

O que falta é a crítica fora das paixões, reunir o pensamento racional não fundamentalista, produzir pensamento para o futuro. Ou seremos devorados, como os sírios, os curdos ou os palestinos. Hoje a barbárie toma conta do país por meio de mais de 50 mil assassinatos por ano, das chacinas promovidas por gangs de adolescentes, da manipulação da cena do crime por parte de policiais, das decisões judiciais suspeitas e da recessão, em que finalmente a marolinha mostrou a caratonha. Criticar requer competência, aprofundamento e uso lúcido das mídias disponíveis. E denunciar a pregação da brutalidade pura e simples, como a ideia de que é preciso paredão, bala, pá e cova para os adversários, em vez de debate e Justiça.



RETORNO - Imagem DESTA EDIÇÃO: Gerard Depardieu em Germinal, de Claude Berri, 1993, sobre obra de Emile Zola.

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