17 de abril de 2011

SOCIALISMO, DE GODARD: O DESAFIO DE ENTENDER


Nei Duclós

Godard é complicado e vive num mundo à parte. Tem seus motivos para fazer um filme como Socialismo, apresentado em Cannes em 2010, que não são, obrigatoriamente, os nossos quando vemos a obra. Não adianta especular sobre a complexidade da sua trama, incomensurável, sem nenhuma chance de comparação com qualquer outra coisa. Não é cinema, que está morto, como ele diz numa entrevista. É literatura além da ficção. É ensaio feito com colagens de discursos transcendentes proferidos em cenas banais. É um trabalho de inserção da realidade na sua representação, a arte. É o que podemos ver não só pelo que mostra, mas pelo que esconde na sua algaravia espessa de imagens e sons não hierarquizados.

O ensaio é o patinho feio da erudição. É notadamente um escape do rigor, um recreio entre muros que são saltados de calças curtas e cabelos despenteados. Por isso é desprezado pelos lentes que ficam confinados em salas teóricas. Godard trabalha uma série de subterfúgios para instaurar alguma coisa na tela. Trata nações como criaturas coletivas com uma identidade, uma lógica, o que vai contra a globalização. Fala em Itália como Meca da pintura, a França como território do desamor, a Rússia como alguém em busca da felicidade. Tudo costurado por personagens que fazem um cruzeiro nas águas comuns do Oriente e o Ocidente, o Mediterrâneo.

Entender é o que há, diz alguém no seu filme feito de estrutura de arte pop, em que cores e movimentos se sobrepõem cumprindo uma agenda de transgressões.Um grupo precisa saber para onde foi uma parte do ouro desviado da Espanha para a Alemanha na II Guerra. Como se esse tesouro extraviado fosse a pista para entender o poder internacional da indústria financeira hoje, que cultiva tubarões predando cardumes num patrimônio que deveria ser de todos, o dinheiro, representado pelo oceano sendo singrado por um navio de luxo. A origem do atual pesadelo é lá na II Guerra, nos diz Godard. É preciso seguir o roteiro, decifrar a trama e entender como o mundo esfacelado da política das nações reuniu-se em torno de uma impossibilidade, as Nações “Unidas”, entidade que apadrinha a divisão territorial entre o individuo e as múltiplas nacionalidades, na área comum do capitalismo intensificado pela especulação.

Deve-se navegar até a origem, como se volta à geometria, para entender porque migrantes dão as costas para o lugar de onde vieram. Não havia outra solução, diz um personagem, justificando a fuga. No fundo, o cruzeiro marítimo pelo Mediterrâneo é uma circunvolução, um rodar pela mundo dividido entre Oriente e Ocidente, sendo que essas fronteiras não são geográficas, mas humanas e históricas. Esse rodar por Barcelona, Odessa, Argel, que tem tudo para ser turismo de luxo servido ás massas despossuídas de cultura se transforma, pelas mãos de Godard, na busca de um mapa perdido. Achá-lo é fundamental, não que vá mudar alguma coisa, mas para que as pessoas entendam seus papéis, já estão grudadas a eles sem poder enxergá-los, ou seja, entendê-los.

Descobrir o papel que desempenhamos buscando a raiz da atual situação, aparentemente “natural” ( e a câmara de Godard, o tempo todo, denuncia o desconforto desse mundo imerso no caos) é uma procura insana por meio de toda a arte difusa do espetáculo. A profusão de imagens digitais, das câmaras de segurança, das máquinas dos turistas, das lentes de fotógrafos profissionais é apenas essa pesquisa para saber de onde viemos, onde estamos e para onde nos leva essa viagem. Sabemos que ela volta ao seu início, mas precisamos ver qual a sua natureza e que ouro é esse desaparecido que precisa ser encontrado urgentemente por arqueólogos dos bastidores de uma guerra ancestral que dizimou o mundo num tempo que não mais pertence à História, mas ao Mito. É o rastreamento de um crime, que está na fonte do Mal vitorioso.

Godard faz tudo isso à sua maneira, ou seja, aborrecendo o espectador. Coloca falas transcendentes em cenas prosaicas, repete frases e faz citações de todo o tipo que só com o Google poderemos saber exatamente de onde elas vieram. Godard é um chute que desestabiliza o nosso olhar. Temos ganas de esganá-lo a cada sequência, mas saímos melhores do que entramos. Maldito mestre, que nos faz cavocar o que tínhamos escondido, achando que ninguém estava vendo!

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