26 de abril de 2011

RAF E PINGO


Nei Duclós (*)

Pingo foi um cachorro lendário no folclore doméstico por ter sido o melhor perdigueiro que meu pai teve. Quando foi atropelado na frente de casa, o homem duro que jamais chorava encerrou-se no quarto para soluçar, com lágrimas que ninguém viu, a perda de um parceiro do primeiro time nas andanças pelos campos, paixão de toda uma vida do ex-combatente que só pegava em armas para matar perdiz. Em homenagem a esse exemplar jamais igualado, todos os cachorros que tivemos com aquelas pintas marrons ou pretas no pelo branco ganharam o mesmo nome de batismo. Às vezes, quando eram dois, o outro era chamado de Duque.

A cachorrada sobrava em casa, pois, fora da sua missão principal, a caça, não serviam para nada, a não ser para tomar espaço na casa de muitos moradores. Nela confluíam todas vidas da época e hoje, todos os vetores da memória. Só quando havia barulho de cartucheira, de cheiro de pólvora, de movimento de jipe cheio é que eles se alvoroçavam para algo que transcendia aquela modorra.

É quando saíam para os espaços infinitos dos campos, onde, quando eram moços, afastavam toda e qualquer ave que estivesse por lá, para desespero dos caçadores. Só depois de muito treino e algumas surras eles conseguiam fazer o serviço corretamente, não sem antes passar pelo obrigatório ritual de estragar a caça. Trazer o bicho na boca sem mastigá-lo e depositar aos pés ou nas mãos do dono era uma arte que talvez só o primeiro Pingo dominava com perfeição. Mas não só de perdigueiros era feita a fauna canina.

Tínhamos o Raf, policial que fazia a segurança, já que seus colegas de quatro patas eram uns moleirões e festejavam quem se aproximasse. Raf tinha o porte do sujeito preocupado com os intrusos e respeitava as crianças como se dele fossem. Ou não. Já não lembro direito. Talvez fosse tão inoportuno quanto os outros e ajudavam a fazer a algazarra que deixava os adultos loucos e competia com o barulho da criançada.

Não havia naquele tempo essa paixão pelos pets, pelo menos de nossa parte, ferozes petizes indomáveis. Os cachorros faziam parte da rotina, misturados à bagunça geral. Eram tratados, escovados, vacinados e tudo mais. Mas também sofriam com a indiferença geral daquela vida urbana tão próxima da natureza. Tínhamos o rio perto demais, o campo em todo fim-de-semana, as árvores em carreira pelas calçadas, a maioria cinamomos que davam frutinhas ótimas para usar no bodoque e acertar os vira-latas que passavam.

Essa experiência, de tantos cachorros fazendo presença nos nossos espaços, me deixou um pouco avesso a ter hoje um em casa. Já tive, não quero mais. A gente se apega, eles envelhecem e acabam morrendo. Ainda mais que a morte de Raf me deixou traumatizado. No galpão vazio, ele finou-se e lá ficou até o recolherem. Foi trazido de arrasto por alguém e depois colocado numa carroça para ser enterrado longe. Nosso quintal não tinha lugar para cães mortos. Nem nosso coração, duro como o animal que era carregado.

Não choramos, como fez nosso pai quando perdeu o primeiro Pingo. Mas ficou um travo amargo do cão policial que se foi de maneira tão inglória, diante dos nossos olhos abismados com a primeira manifestação da morte.


RETORNO - 1.Imagem desta edição: A Caçada, de Paolo Uccello (obra que ilustra a capa do livro O Mundo Como Ideia, de Bruno Tolentino).2. (*) Crônica publicada no jornal Momento de Uruguaiana.

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