17 de março de 2010

WOODY ALLEN: E NO ENTANTO, FUNCIONA!



Whatever works (2009), de Woody Allen, pode significar “Funciona, apesar de tudo”, ou, como foi traduzido, “Tudo pode dar certo” (tudo no sentido de qualquer coisa). Misteriosamente, contra todas as evidências, isso acaba acontecendo. Desde que haja uma carga de ingenuidade, um pacto entre a escassez e desigualdade de protagonistas, coadjuvantes e o público. Um choque de diversidades, um acúmulo de bizarrices que deságuam em estuários poéticos. Uma sinceridade brutal que em vez de afastar, aproxima. Um escritor como poucos ou quase ninguém. Um cineasta raro. E pelo menos um ator excepcional, convivendo com uma equipe de grandes talentos.

O que funciona, apesar de aparentemente tudo ter a chance de dar errado? Primeiro, o cinema. O filme não aposta em si mesmo, parece algo fora da ordem, sem nexo. Mas é só aparência. O gênio conhece o seu lugar: está a um passo do ridículo, em que a sabedoria toma café com a idiotia.

Segundo, o personagem Boris, interpretado por Larry David (o responsável pelo sucesso da série famosa onde Jerry Seinfeld acabou levando toda a glória), que fala para a câmara, ou seja, para nós, o público. É o único da história que sabe que estamos assistindo. O seu entorno não toma conhecimento disso. Em princípio, narrar o filme para o espectador, não funcionaria. Mas dá certo.

Boris foi acusado de ser um personagem inverossímel. Impressionante como a crítica desconhece o básico do espetáculo. O que pega não é a verossimilhança, mas o mistério do it works. Boris é físico especializado em mecânica quântica, chegou a ser indicado para o Nobel, tem síndrome do pânico, separou-se porque tentou suicídio depois de uma discussão com a mulher super-inteligente, mas sobreviveu. Manca de uma perna e odeia tudo e todos. Acaba se envolvendo e casando como uma moça do interior que não sabe nada e tinha batido na sua porta em busca de comida e teto.

As relações humanas é o terceiro item das coisas que tem tudo para dar errado, mas acabam chegando a bom porto. O suicida que encontra a nova mulher na médium que salva, involuntariamente, sua vida ao interceptar o tombo proposital da janela; o interiorano, membro da Associação Nacional de Rifles, que se descobre gay; a perua provinciana que se revela artista e casa com dois homens; a moça que no início se encosta no veterano para sobreviver a e acaba descobrindo o amor da sua vida. Tudo isso tem uma carga hilária, desconcertante e ao mesmo tempo poética.

É admirável a capacidade frasista de Woody Allen. Quando a perua fala em mènage a trois, o ex-martido exclama: “Eu sabia que não podia confiar nos franceses”, o que é uma referência à “traição" da França de não mandar tropas ao Iraque, um problema americano, entre tantos outros, que Allen curte com sua verve fantástica. Quando a divorciada recém vinda do interior descobre que o bibelô da sua vida, a menina que fugiu de casa, casou com um velho, desmaia. Boris comenta: “Mas ela casou com o pescador do maior bagre da minha terra”. “Ela estaria melhor casada com o bagre”, replica a mulher. Mais: “Gostaria de visitar um lugar divertido, afinal estamos em Nova York”, diz a provinciana. “Por que vocês não vão ao Museu do Holcausto?” sugere Boris.

Tudo isso é dito de maneira largada, sem nenhuma ênfase, o que dá extrema graça às cenas. A intensa carga de achados do script convive com a limpidez das imagens, a Nova York querida de Allen. As ruas, os parques, os carros, o museu de cera, os apartamentos, os jantares, os bares ao ar livre, os pubs, tudo se sucede com uma riqueza de detalhes encantadora.

Woody Allen é para quem gosta dele. Eu gosto muito. Não queria considerá-lo gênio, mas está difícil. O cara se supera a cada filme. Toda vez que ele começa a filmar, começo a imaginar como será. Esse com Larry David eu aguardava ansioso. Valeu a pena. Woody Allen: que bom que o cinema ainda funciona.

RETORNO - 1.Imagem desta edição: Larry David em ação. 2. Em menos de meia hora depois da primeira versão deste post, modifiquei o início do texto. Acho que ficou melhor. No fim, dá tudo certo.

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