19 de março de 2010

INJUSTIÇA E VINGANÇA: SIMONAL, UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA


Vi o documentário Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei, de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal. Trata do sentimento de injustiça e sua conseqüência nefasta, a vingança. Sem ser vingativo, o filme tenta reparar a injustiça sofrida por Simonal, acusado de ser informante dos órgãos de repressão na época da ditadura Médici (1970), num episódio que o jogou no exílio interno para o resto da vida. Consegue, em parte, mas o que se destaca é a tragédia brasileira provocada pelos dois lados da injustiça/vingança, o de Simonal e o dos seus adversários políticos.

Simonal, na época no auge da carreira, se sentiu lesado pelo seu contador e resolveu dar uma lição no ex-funcionário, que tinha entrado na justiça por reparos trabalhistas depois da demissão, provocada pela desconfiança do cantor que descobriu-se quebrado. Localizados por detetives, o contador dá seu depoimento ao filme, contando que foi torturado no Dops a mando de Simonal, mais tarde identificado como informante dos órgãos de repressão, acusação que só 20 anos mais tarde foi negada por um processo no governo federal.

Simonal não soube fazer uma gestão competente do seu dinheiro e gastou a rodo. Esnobou o presidente da Shell fazendo-o esperar uma hora e meia num aeroporto, o que lhe valeu a cassação do contrato que segurava seus gastos. Só com o dinheiro dos shows, seu estilo de vida extravagante não agüentou e as finanças exibiram um rombo razoável. Sentindo-se injustiçado, já que teve infância pobre e achava que merecia esbanjar tudo o que recebia, colocou a culpa no responsável pelas contas. Como o acusado não admitiu o desfalque, entrou na roda viva da repressão na época, em que tudo se resolvia no pau-de-arara.

Isso é o que mostra e sugere o filme, ao mesmo tempo que lamenta o ostracismo que o lamentável evento provocou na meteórica carreira de Simonal. Este, pressionado pelas circunstâncias, boicotado pelos colegas de profissão, sem saída, acabou se entregando à mágoa, à raiva, à bebida. Deveria (e isso falamos agora, depois do desenlace, pois sua morte ocorreu em 2000) partir para o Exterior, se concentrar na sua carreira, na sua voz maravilhosa, na penetração que tinha conseguido no mundo todo fazendo seus shows. Mas ficou no Brasil. Deveria ter optado pelo desterro, mas acabou desterrado em sua própria terra, cumprindo assim o diagnóstico preciso de Sergio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil".

Sua reluzente performance junto com Sarah Vaugham apontava para essa saída honrosa, o aeroporto. Quem segura uma interpretação, junto com a diva, do clássico sucesso The Shadow of your smile, teria meio caminho andado num recomeço longe do Brasil. Poderia voltar depois, quando as feridas tivesem cicratizado. Mas a condenação foi perpétua e Simonal entrou numa espiral de perdas.

No outro lado do balcão, vemos o sentimento de injustiça dos que perdiam amigos e parentes na repressão e tortura se manifestar com tudo em cima de Simonal. O ídolo era um prato feito, um alvo fácil. Exposto de maneira escancarada devido ao seu enorme sucesso, negro, debochado, relações públicas de uma multinacional, exibindo riqueza com seus três Mercedes, confessando que não acreditava nas virtudes da pobreza em entrevistas coletivas, não houve perdão para Simonal, que caiu na besteira de dizer que estava sim junto com o governo e seus esquemas policiais. Declaração feita, a mando do seu advogado, segundo a versão não contestado no filme pelo contador.

Vemos então manifestações de racismo e cinismo por parte de quem o ataca e quem o defende. Chico Anísio chega a dizer que Simonal não precisava do paninho na testa, marca registrada surgida, segundo a entrevista de seus filhos no documentário, numa noite que estava com dor de cabeça e teria feito uma simpatia para conseguir alívio; e quando foi chamado ás pressas ao palco, foi com o pano na testa e tudo. Por que não precisava? “Porque seu cabelo jamais cairia em seus olhos”, diz Anísio, de maneira infeliz.

Nelson Motta também debocha ao levantar a falsa hipótese de um Simonal fino e coerente, que deveria ter chamado uma auditoria especializada para verificar suas finanças. “Chamou a Arthur Andersen? Não, pegou três sujeitos e resolveu dar uma surra no suspeito”. Para Motta, alguém inculto como Simonal só podia mesmo partir para a ignorância. Mas o mais chocante são as gargalhadas para dentro, sinistras, de Jaguar, que cinicamente diz que o assunto está encerrado. Puidera, o principal interessado numa solução morreu em função mda perseguição que sofreu!

As feridas continuam abertas. Vemos isso hoje. Basta você emitir uma opinião fora dos padrões do poliiticamente correto para um monte de gente cair em cima. A tragédia profisional e pessoal de Simonal, vista depois da corrupção dos ex-corretíssimos, serviu para desmascarar essa turma. Hoje, nem vem que não tem. Estamos mais soltos, mais livres para dizer o que pensamos. E não foi porque eles "lutaram" não, já que são tão algozes quanto os que combatiam. Ninguém sabe o duro que todos nós demos para falar com liberdade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário