24 de março de 2010

PERSONA



Nei Duclós (*)

Somos personagens no teatro das percepções mutantes e, muitas vezes, inconciliáveis com nossa própria essência. Precisamos da aparência e seus sinais e, principalmente, de script. Ser autor do próprio roteiro requer fôlego e ajustes ao longo do tempo. Temos a ilusão de que publicamos nossas inúmeras versões nos eventos principais, mas elas se definem nos detalhes. Se você é visto num mau dia por alguém influente, assim será difundido para determinadas platéias. Por isso, dizem ser necessário nos preparar cada instante do dia, pois a Fortuna não avisa quando vai passar.

A forte intensidade das expectativas convive hoje com possibilidades reais proporcionadas pela tecnologia disseminada na sociedade do espetáculo (que inclui bem mais do que apenas a indústria cultural ou a do chamado entretenimento). Tudo parece estar à mão e nos vemos impulsionados para várias direções, certos de que seremos vistos conforme as máscaras que formatamos para cada ocasião, todas elas, acreditamos, girando em torno de um eixo imutável, a personalidade que adquirimos pelo hábito e com a idade.

O jogo é pesado e nos perguntamos então qual é nossa essência. Acredito que ela também dança conforme a música da época. Mudar de rosto nos anos 1960 significava sofrer o impacto de estímulos exógenos num ambiente coletivo formatado por uma herança educacional conservadora. Isso aconteceu de maneira mais ou menos igual para inúmeras pessoas. Quando lemos os depoimentos de quem começou a sentir e a pensar diferente de uma hora para outra, depois de ter acesso a portas até então desconhecidas do conhecimento, vemos as mesmas situações replicadas constantemente. Todos, no mínimo, acreditam ter apertado a mão de Deus.

Hoje, quando a proliferação de estímulos sobra, não existe mais aquela base que recebia e elaborava o choque. Há uma banalização geral, com resultados perigosos. O aceno de uma “cura” piora a situação. Isso nem é visto com nitidez e uma tragédia familiar pode destampar o caos obscurantista que permeia a vida nacional.

Para neutralizá-lo, nada como o bom e velho racionalismo. Temos a eternidade para sermos espíritos. Vamos aproveitar essa vida para formar uma concretude que nos falta. Precisamos ser reais, como um grande e portentoso jequitibá, e não enredados, como um cipó.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: obra de Ricky Bols da série "Some Girls na linha" 2. (*) Crônica publicada no dia 23 de março de 2010 no caderno Variedades, do Diário Catarinense.

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