9 de março de 2010

CAMERON E BIGELOW: CÓDIGOS DA DOR, A BOMBA LACRADA




O Oscar 2010 terminou com a vitória de Kathryn Bigelow, diretora de The Hurt Locker, que tinha sido desprezado, lançado direto nas locadoras e tardiamente incluído no circuito dos cinemas, de onde pulou para a seleção e a dupla vitória (filme e direção). Seu ex-marido, James Cameron, diretor de Avatar, grande promessa da noite, saiu lambendo as feridas. De que tratam as duas obras? Sobre a dor provocada pela sinuca de bico onde os americanos se meteram com sua civilização voltada para a guerra. Duas abordagens opostas, que invadem a reflexão contemporânea, já que reflexão não precisa de convite.

The Hurt Locker significa uma dor intensa impossível de ser adiada. O filme trata dos esquadrões especializados em desarmar bombas na guerra do Iraque e a demência que isso provoca. A câmara no ombro e diálogos obsessivos revelam personagens insanos palmilhando o território conflagrado e tentando justificar a invasão, como se a liberdade estivesse fazendo uma visita ao fundamentalismo obscurantista. Mas sabemos do que se trata: do armário lacrado (locker) onde a dor, o ferimento, a mágoa (hurt) estão encerrados. Trata-se de uma bomba que não pode ser desmontada. Não há especialista que dê conta.

Por ser completamente tomado pelo seu ofício, o oficial que desarma bombas torna-se prisioneiro da atividade e dela não consegue sair, mesmo depois de ter voltado para a família. A vida doméstica não faz sentido para quem está treinado para não deixar que os artefatos expludam destruindo tudo ao redor. Ele testa a adrenalina metendo a mão na massa de maneira desassombrada, surpreendendo e enlouquecendo seus companheiros. Quando um dos seus parceiros é gravemente ferido, o acusa de espichar o limite até o extremo só para satisfazer a vontade de ação compulsiva.

A história desse soldado louco é a representação da ação americana no Oriente Médio. Massa de manobra da política e da indústria petrolífera, as Forças Armadas desenvolvem no front uma percepção corporativa do conflito. Tudo se resume a bombas, explosões, tiros, luta pela sobrevivência. Não há enfoque político, território pantanoso onde a farda aparentemente não se mete. Há o envolvimento institucional com a tal liberdade, mas o que impera é o espírito de grupo, ou de corpo, onde a obediência cega às ordens é o único valor diante de um inimigo que se mistura a uma população pacífica.

Avatar é sobre o fim do militarismo tradicional americano, que por sua vez é retratado no filme de Bigelow. Propõe a substituição por outro tipo de conflito, fundado na transfusão genética, nas ciências ecológicas, na devoção à natureza, mas sem abrir mão do poder destrutivo das armas modernas. No fundo, quer que o velho coronel turrão que adora mandar queimar tudo e promete pagar a primeira rodada depois da batalha seja substituído pelos jovens voluntariosos que engrossam as fileiras ecológicas da luta contra o desmatamento e a o aquecimento global. É uma maneira de escapar do lugar onde estão metidos hoje: uma arena onde, por comparação, o inferno não passaria de uma colônia de férias.

O inferno de James Cameron é fazer parte de uma nação imperial que invadiu o mundo matando o Outro. Lançando mão de todos os chlichês do vídeogame, da série Guerra nas Estrelas, do faroeste (como a doma de pássaros gigantes), ele tece sua aventura fazendo sonhar quem que está acorrentado, a civilização em estado terminal representado pelo mariner de cadeira de rodas. No seu lugar está o mestiço capaz de façanhas heróicas e que dispõe do corpo de maneira renovada, pois chupa toda a energia dos nativos, os hominídeos com orelhas de morcego e rabo.

Os avatares são criaturas hibridas usadas para invadirem o núcleo adversário que detém a força dos recursos naturais, futuro para civilizações doentias que precisam de terra, planta, água e tesouros minerais. O exército que aparece destruindo tudo é o americano, mas Cameron finge que é uma tropa mercenária, como se fôssemos acreditar nisso. Os hominídeos seriam seres moralmente superiores, mas não passam de sub-raça (“baratas”, diz o coronelão) dedicada à magia e que imita a ferocidade dos bichos.

Os animais que aparecem em Avatar são inventados, já que os tradicionais - leões, rinocerontes, elefantes – estão no index politicamente correto. A saída foi criar bichos que cruzam aparências distintas para que a saga mantenha a rotina dos filmes americanos, em que a natureza é sempre ameaçadora, e seus habitantes precisam ser exterminados, ou no mínimo devem obedecer a um líder branco, tenha ele o disfarce que tiver.

Ambos os cineastas trabalham a dor encerrada em casulos indevassáveis. Sabemos que por mais bombas que sejam desmontadas, ou por mais fofos que pareçam os habitantes da floresta, prevalecerá a dor de participar do extermínio. A dor tem um código ainda não decifrado. Quem sabe eles começam admitindo a existência de outros países? Eis aí um bom caminho para deixar de ver a Terra como o lugar nefasto que precisa ser enquadrado.

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