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2 de fevereiro de 2010
REINVENTAR A RODA
Nei Duclós (*)
Convívio implica alternância de papéis: num momento somos protagonistas, em outro, coadjuvantes. Mas como em terra de escravos todo mundo é senhor, para escapar do estigma, a moda é impor o papel principal, jogando fora os demais interlocutores. As mídias sociais são o paraíso desse estado de coisas: todos falam ao mesmo tempo e pouco se presta atenção ao que se diz fora de cada círculo, a não ser para negar ou bater.
Não existem mais calçadas, conhecidas como passeio público, em que se formavam as rodas da conversa. Nelas, mesmo que houvesse entusiasmo nas falas e urgência dos recados, com a algaravia natural produzida por grupos humanos, costumava existir um narrador rodeado de ouvintes. O carisma se exercia nesses espaços privilegiados onde se definiam idéias sobre tudo. Gerava um equilíbrio natural, pois o dito era submetido ao crivo dos que estavam na platéia. Estes, se revezavam na necessidade de declarar alguma coisa, nem sempre como contraponto ou reforço, mas como inauguração de novos vetores do assunto.
A presença física foi eliminada, já que tudo obedece à privatização predatória. Hoje existem bairros e até mesmo cidades inteiras em que as calçadas foram substituídas por um fiapo de laje ou grama entre a rua e as casas. É que nenhum centímetro de área urbana deve escapar da voragem da especulação. Das críticas ao gigantismo do Estado, herdamos apenas a demolição pura e simples do que era comum a toda cidadania. Sabemos o que significa praça atualmente: o não-lugar tomado pela exclusão e a miséria.
Assim, amontoados nos andares de alimentação dos shoppings, ou de pé em pisos de mármore (pois é preciso circular compulsivamente para comprar sem parar) fomos empurrados para a tela do micro, que aceita tudo. Ali, você se dedica diariamente a eliminar as mensagens não solicitadas, os convites insistentes, as manifestações bizarras ou os ataques sem sentido. É como defender uma pequena propriedade no meio do nada. A invasão vem por toda a parte, pois no império da força bruta, quem pode mais acha graça do resto.
Para reinventar a roda, não precisa caluniar o mundo digital ou o comércio selecionado das grifes. Basta aplicar a lei: o espaço privado não é público e vice-versa.
RETORNO – 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 2 de fevereiro de 2010, na caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Meninas brincando de roda, de Orlando Teruz (1902-1964).
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