10 de fevereiro de 2009

ROBINHO E O GATO DE ALICE


Vimos um bom primeiro tempo no amistoso Brasil 2 x Itália 0, mas o que me chamou a atenção foram as distorções consolidadas da crônica esportiva. “Fazer graça”, por exemplo. É o nome dado pela mídia para a criatividade dos craques. Vamos aos exemplos da partida desta terça-feira, dia 10.

Robinho atrasa a bola, com um pé, para o outro. A bola, nesse repique surpreendente, em que cada pé funciona como um jogador à parte, vai direto para Ronaldinho, que recebe e devolve de calcanhar. Criaram espaços, desestabilizaram a concorrência. Principalmente Robinho, que depois (ou antes, não lembro) driblou os zagueiros e chutou cruzado, fazendo gols. E driblou como? Inspirado naquele velho jogo de rua que os malandros oferecem para os passantes. Todos conhecem: oferecendo três opções, que são terçadas em frente de todos com as mãos, o jogador desafia os espectadores a adivinhar em qual lugar está a prenda. Normalmente ele sai ganhando.

Acontece o mesmo com Robinho: ele passa um verniz em cima da bola propondo a adivinhação. Em qual lugar vai ficar a bola? Em lugar nenhum, pois a percepção alheia, driblada pela manipulação do craque, acaba vendo apenas os detalhes, que somem, do gato da Alice. Lewis Carrol, de Alice no País das Maravilhas, contou a história do gato que mostrava apenas o sorriso, a cauda e assim por diante. Era impossível pegá-lo.

Trata-se de futebol em estado de arte. Pois bem. A crônica esportiva chama de fazer graça. Isso quando a jogada dá certo. Quando dá errado (pode acontecer) então chamam de irresponsabilidade. Mas a acusação de irresponsabilidade já está implícita na definição de fazer graça. Se o cara, em vez de ser um craque no pleno domínio do seu ofício, é apresentado apenas como um palhaço, está armada a tragédia. Se o craque, como é o caso de Robinho, ainda se mete numa enrascada, como aconteceu recentemente, acusado de assédio na Inglaterra, então ele precisa de “orientação” como disse o Galvão Bueno (pronto, falei) logo depois de um lance que saiu errado. É a maneira de tocaiar o jogador, preparar uma armadilha de urso para ele, ligar sua atuação em campo com uma infelicidade na vida pessoal.

Já me falaram para só ver o jogo e escutar pelo rádio, eliminando o som da TV. Não tenho rádio e acho um desaforo tirar o som da televisão. A TV precisa mudar, abrir o leque de opções e não ficar sempre com os mesmos caras, por décadas a fio, dizendo asneiras. Olhaqui: Robinho e Ronaldinho Gaúcho não fazem graça, seus admiradores do bezerro de ouro Roberto Carlos (nossa, como Falcão sente saudade do poste que chutava sempre na barreira!). Eles exercem a criatividade, encontram soluções para as jogadas e por isso são craques. São inventores e não pernas-de-pau.

Custei a descobrir o que a crônica esportiva quer dizer com técnica. É o talento, mas falar em talento está proibido. Dominar os fundamentos do futebol, como o chute, o cruzamento, o drible, a bola em curva, a defesa no ângulo é só para pessoas vocacionadas. Um tosco de nascença jamais vai aprender coisa alguma. Precisa ter nascido para isso. Então o cara desenvolve o seu talento, que é sempre potencial. Tem vocação, ou seja, tem queda para o futebol. Técnica é outra coisa: esquemas de jogo, defesa, ataque, volante, coisa para treinador e jogador experiente. Mas quando o cara consegue tirar a bola do adversário sem “fazer graça” aí e ele é bom de técnica. É um jogador técnico, dizem. O resto deve ser poeta.

Outra distorção é a chamada jogada ensaiada. Que importância tem se a jogada é ensaiada ou não? Talvez até tenha, mas do jeito que falam é como se chegassem a uma conclusão filosófica da mais alta intensidade, que tudo explicaria, desde a criação do universo até o destino de Poseidon. "Jogada ensaiada!" diz um. E o resto repete: "Jogada ensaiada!" Grande merda. Para que tanto estardalhaço para um troço desses? Porque explicaria o lance? Qual o sentido da euforia de proclamar que a jogada foi ensaiada?

Acho que é isso: tudo tem que ser ensaiado no futebol, assim fica explicado tudo, tintin por tintin. Como advertia Garrincha ao tirar um sarro da preleção na Copa na véspera de um jogo contra os russos. "Mas os russos sabem disso?" perguntou ele, depois de inúmeras hipóteses levantadas. Ou seja, o adversário vai se comportar conforme nossos ditames? Se depender da crônica esportiva, vai.

Quando Robinho ou Ronaldinho Gaúcho “fazem graça”, estão contrariando todas certezas da mídia dita especializada, há tempos envolvida numa gigantesca manobra de desconstrução da nossa cultura. Ser brasileiro, dar aquele drible que ninguém no mundo jamais dá, não pode, fica feio. O negócio é sermos uma nação de postes a dar caneladas, para a alegria dos zidanes da vida.

Ah: graças à graça, ganhamos de dois a zero. Elano também esteve ótimo. Mas a Folha disse que foi graças ao time "italiano" do Dunga. Como a maioria dos jogadores que estiveram em campo são de times italianos, então está explicado. O Brasil, claro, não tem nada a ver com isso. "Tivemos que inventar o Brasil", disse Tom Jobim,"porque o Brasil não existia". Agora eles cuidam de desinventar. Mas não conseguem. Uma pedalada e pronto. O Brasil continua lá, firme.

RETORNO - Imagem desta edição: o sorriso do gato da Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. O futebol é quântico, a crônica esportiva acha que o mundo é sustentado por quatro elefantes.

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