Nei Duclós
Cascudo é esse da foto, com pele de lixa, que grudava nas redes de pesca do meu pai, inimigo número 1 da espécie. Apesar de sua correção como pescador de carteirinha, ele não suportava a presença dos bicharocos. Considerava perda de tempo, pois o excesso de exemplares tirava espaço dos grandes lutadores de carne saborosa, como o surubi e o dourado, afastando-os das armadilhas pacientemente elaboradas.
Naquele tempo, rede era permitida. Não havia ainda a evidência de que a natureza fosse incapaz de responder à altura das nossas agressões. Vivíamos a inocência pré-ecológica, apesar de seguirmos lições valiosas dos mais velhos, que não permitiam abusos no acampamento. Nos fins-de-semana, éramos convocados para usar a tralha acumulada contra traíras, jundiás, piavas, lambaris. Meu pai colocava o barco de fibra de vidro na garupa do Candango, orgulhoso de seu veículo que dispunha de uma novidade, a tração nas quatro rodas, juntava a gurizada e mais um ou dois compadres e se mandava.
Gostava de estender o espinhel entre as duas margens do arroio, com grandes anzóis, afiadíssimos, iscados de peixe ruim de comer, como os bagres, que são só ferrão,couro e cabeça. Os dourados comiam de tudo e de vez em quando as bóias afundavam, para alegria do pescador. Ele se aproximava remando ou, quando necessário, impulsionado pelo motorzinho de popa de cinco cavalos de força. Às vezes, era premiado com o grande estardalhaço de algum predador bom de colocar na brasa.
Levava também junto a rede de três panos, ou seja, com três camadas de malhas, duas maiores, por fora, e outra menor, por dentro. Nada escapava da giganta. O objetivo era pegar aqueles surubis com mais de 30 quilos e que só acreditavam vendo. O problema é que aparecia mais cascudo do que qualquer outra coisa. Tinha também outra praga, os grumatãs, ou corimbatás, e que são péssimos, pois se alimentam de barro. Não comem isca de carne, escapam do espinhel e se enredam para nos dar trabalho. Mas não tanto quanto os cascudos.
Distribuíamos generosamente os grumatãs. Já os lixentos não escapavam da mortandade. Meu pai mandava tirar todos das malhas e depositar nas margens dos rios, onde formavam verdadeiras montanhas. Não adiantava dizer para ele que era a suprema maravilha, bastava colocar na panela fervente. Aí era só desnucar e puxar. No miolo, vinha aquela carne branquinha que parecia galinha. Esse tipo de argumento não o convencia. Ele simplesmente queria se livrar do tormento. Considerava cascudo prejudicial por se alimentar do que apodrecia no fundo do rio.
Certa feita, ninguém teve paciência para tirar a cascudama no acampamento. Decidimos então levá-los com rede e tudo para a cidade. Depois de uma tarde inteira de trabalho, conseguimos juntar dois sacos grandes de estopa com aquela carne de primeira embalada em couro de terceira. Sabendo que se tratava de uma iguaria, nunca provada por determinação paterna, decidimos distribuir os bichos para a população ribeirinha. Foi uma festa. Todos nos agradeciam a bênção
O convívio com a natureza oferecia tanto a traíra, muito considerada, quanto os cascudos. Assim como tinha por-de-sol e espinhos, banhos inesquecíveis e micuins. A natureza não é cheia de boas intenções. O que existe é essa força de tudo o que está vivo e luta para ficar assim. É o que deixa lembranças muito mais fortes do que qualquer máscara sentimental. Memória é emoção quando conta a verdade.
Aprendi com meu pai a perseguir os grandes reis das águas e deixar de lado as pragas do rio. A maneira como isso foi feito estava errada. Mas o que vale é retribuir ao tempo a medida exata do que ele nos proporciona, para que possamos manter a integridade nesta época de retaliações e escapatórias. No fundo, a rede nem estava nas nossas preferências. O melhor mesmo era molhar a linha e esperar o momento certo de fisgar a presa.
O que tirávamos do arroio, com exceção dos cascudos, comíamos. Ainda não era moda rasgar a boca do bicho e devolver ao ambiente, só para tirar fotografia. É uma opção mais adequada à escassez crescente da natureza. Mas isso não fazia parte daquele mundo perdido, marcado pela abundância e o desperdício.
Cascudo é esse da foto, com pele de lixa, que grudava nas redes de pesca do meu pai, inimigo número 1 da espécie. Apesar de sua correção como pescador de carteirinha, ele não suportava a presença dos bicharocos. Considerava perda de tempo, pois o excesso de exemplares tirava espaço dos grandes lutadores de carne saborosa, como o surubi e o dourado, afastando-os das armadilhas pacientemente elaboradas.
Naquele tempo, rede era permitida. Não havia ainda a evidência de que a natureza fosse incapaz de responder à altura das nossas agressões. Vivíamos a inocência pré-ecológica, apesar de seguirmos lições valiosas dos mais velhos, que não permitiam abusos no acampamento. Nos fins-de-semana, éramos convocados para usar a tralha acumulada contra traíras, jundiás, piavas, lambaris. Meu pai colocava o barco de fibra de vidro na garupa do Candango, orgulhoso de seu veículo que dispunha de uma novidade, a tração nas quatro rodas, juntava a gurizada e mais um ou dois compadres e se mandava.
Gostava de estender o espinhel entre as duas margens do arroio, com grandes anzóis, afiadíssimos, iscados de peixe ruim de comer, como os bagres, que são só ferrão,couro e cabeça. Os dourados comiam de tudo e de vez em quando as bóias afundavam, para alegria do pescador. Ele se aproximava remando ou, quando necessário, impulsionado pelo motorzinho de popa de cinco cavalos de força. Às vezes, era premiado com o grande estardalhaço de algum predador bom de colocar na brasa.
Levava também junto a rede de três panos, ou seja, com três camadas de malhas, duas maiores, por fora, e outra menor, por dentro. Nada escapava da giganta. O objetivo era pegar aqueles surubis com mais de 30 quilos e que só acreditavam vendo. O problema é que aparecia mais cascudo do que qualquer outra coisa. Tinha também outra praga, os grumatãs, ou corimbatás, e que são péssimos, pois se alimentam de barro. Não comem isca de carne, escapam do espinhel e se enredam para nos dar trabalho. Mas não tanto quanto os cascudos.
Distribuíamos generosamente os grumatãs. Já os lixentos não escapavam da mortandade. Meu pai mandava tirar todos das malhas e depositar nas margens dos rios, onde formavam verdadeiras montanhas. Não adiantava dizer para ele que era a suprema maravilha, bastava colocar na panela fervente. Aí era só desnucar e puxar. No miolo, vinha aquela carne branquinha que parecia galinha. Esse tipo de argumento não o convencia. Ele simplesmente queria se livrar do tormento. Considerava cascudo prejudicial por se alimentar do que apodrecia no fundo do rio.
Certa feita, ninguém teve paciência para tirar a cascudama no acampamento. Decidimos então levá-los com rede e tudo para a cidade. Depois de uma tarde inteira de trabalho, conseguimos juntar dois sacos grandes de estopa com aquela carne de primeira embalada em couro de terceira. Sabendo que se tratava de uma iguaria, nunca provada por determinação paterna, decidimos distribuir os bichos para a população ribeirinha. Foi uma festa. Todos nos agradeciam a bênção
O convívio com a natureza oferecia tanto a traíra, muito considerada, quanto os cascudos. Assim como tinha por-de-sol e espinhos, banhos inesquecíveis e micuins. A natureza não é cheia de boas intenções. O que existe é essa força de tudo o que está vivo e luta para ficar assim. É o que deixa lembranças muito mais fortes do que qualquer máscara sentimental. Memória é emoção quando conta a verdade.
Aprendi com meu pai a perseguir os grandes reis das águas e deixar de lado as pragas do rio. A maneira como isso foi feito estava errada. Mas o que vale é retribuir ao tempo a medida exata do que ele nos proporciona, para que possamos manter a integridade nesta época de retaliações e escapatórias. No fundo, a rede nem estava nas nossas preferências. O melhor mesmo era molhar a linha e esperar o momento certo de fisgar a presa.
O que tirávamos do arroio, com exceção dos cascudos, comíamos. Ainda não era moda rasgar a boca do bicho e devolver ao ambiente, só para tirar fotografia. É uma opção mais adequada à escassez crescente da natureza. Mas isso não fazia parte daquele mundo perdido, marcado pela abundância e o desperdício.
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