30 de setembro de 2008

NOSSO DINHEIRO


Nei Duclós (*)

Chega a enjoar a quantidade de vezes em que é usada a expressão “nosso dinheiro” quando se fala em recursos públicos recolhidos dos impostos. É a mesma nomenclatura da bandidagem. “Onde está o meu dinheiro?” diz o facínora, perguntando pela grana da vítima. Com uma diferença: o algoz reivindica o que nunca foi seu, enquanto o cidadão quer de volta o que não é mais seu (mesmo que, por lei, tenha de ser usado a seu favor).

Dá para entender porque se diz isso de maneira tão recorrente e de maneira impune. É porque todo dinheiro, num país desprovido da força legítima do Estado, está è deriva e, em tese, qualquer um pode se apossar dele, sob os mais variados pretextos. Tanto o assaltante quanto o cidadão se consideram expropriados de seus direitos. Os métodos divergem. Um usa arma, outro simplesmente protesta. Isso abre a guarda para a demagogia nas campanhas políticas ou na economia de auto-ajuda. Quando alguém fala em nosso dinheiro, está tentando ganhar apoio, ou seja, dinheiro.

Recurso público não é propriedade de indivíduos ou empreendimentos. O dinheiro pertence ao Estado e a mais ninguém. Não é mais seu, meu ou nosso. Senão, qualquer um poderia retirar do cofre coletivo o que bem lhe aprouvesse. Pode-se argumentar: sim, mas esse montante pertencia à sociedade, que foi injustamente aliviada do que é seu e agora está à disposição da corrupção oficial. Pertenciam. Esse é o ponto. A sociedade outorga ao Estado a função de dispor do caixa.

No momento em que você não reconhece o Estado como proprietário legítimo (governo é só o gerente) do dinheiro público, você terceiriza a responsabilidade de trabalhar a favor de um governo fundado na ética. No fundo, queremos a bufunfa de volta, pois aqui debaixo do colchão faremos melhor proveito dela.

O dinheiro é da nação, mesmo que exista gestão participativa. A sociedade pode decidir o rumo, lutar para diminuir o arrocho arrecadador, mas jamais poderá negar a natureza dos recursos que pertencem ao Estado. A não ser que se funde outro regime, sem a presença desse poder que paira, em tese, acima do círculo pessoal. Aí sim, o dinheiro vai pertencer a todo mundo. Ou seja, a ninguém.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 30 de setembro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Torre Eiffel, em Paris, foto de Daniel e Carla Duclós. Os franceses sabem o que fazer com o dinheiro do Estado francês.

29 de setembro de 2008

FONTES DA BOSSA


O levantamento teórico de Ruy Castro sobre a bossa nova aproveita os 50 anos do movimento para juntar tudo o que estava disperso. Sua coleção de livros/CDs publicados semanalmente pela Folha une-se ao seu clássico livro "Chega de Saudade" e tira a carga excessiva de crédito ao banquinho e ao violão, focando inúmeros vetores que fazem parte da revolução musical que representa o melhor do Brasil na modernidade.

Um desses vetores é a voz na canção brasileira, que encontra uma ruptura radical quando o microfone muda tudo, em artistas minimalistas como Mario Reis, recupera sua contundência vocal com Francisco Alves, desce o vale da doçura com Silvio Caldas e atinge o nível da grandeza em Orlando Silva, Lucio Alves, Dick Farney e tantos outros. Até chegar em Caetano e Roberto, apresentados no final deste domingo pela Globo, naquele horário em que o Programador do Traço cumpre seu objetivo de só colocar coisa boa quando todo mundo cansa de esperar algo que preste, desiste e vai dormir.

Roberto faz sentido cantando bossa. Veio dela. Seu primeiro compacto é de bossa (num dos lados ele dizia: “Moço, toca o balanço, toca o balanço seu moço senão eu não danço”). Faz sentido quando divide com Caetano o palco para homenagear Lucio e Dick em Tereza da Praia. Mostra o poder do seu canto em "Se todos fossem iguais a você", uma composição que faz Caetano tremer, pois Caetano, como ele mesmo destacou, generosamente, nos bastidores do show (soube pela imprensa) não tem os recursos vocais do Rei.

Ouvindo-o cantar bossa, entendemos seus grandes sucessos, a maioria deles sussurrados. Seu pianista Antônio Wanderley, ex-integrante do antológico Milton Banana Trio, e que faz parte da banda de Roberto há décadas, brinca dizendo que ele é um gênio, pois com dois acordes fez 400 sucessos. Aliás, é significativo que Wanderley (que teve o nome trocado pela imprensa e nos créditos do show para Benedito e não Antônio, como é de fato), um músico totalmente bossa nova, seja um dos maestros musicais de Roberto.

Mas Roberto tropeça (rei tropeça também) em Insensatez, que, acho, cantou em espanhol, mas deu a impressão que não sabia a letra. Tropeça também quando tenta criar o clima de “emoções” quando fica só com a platéia. Mas no geral se sai maravilhosamente bem, porque Roberto é amado exatamente por ter essa voz solar, que alcança tudo sem aparentar esforço e se derrama sem perder a forma. Não é pouco numa época de tantos vibratos ridículos, em que tanta gente fica fanha, se esganiça e espicha até a burrice extrema as notas finais das frases musicais. Roberto é clássico, da escola de João Gilberto, ídolo absoluto e presente o tempo todo no show dos dois.

Não é que Caetano queira imitar João, Caetano é João, sem deixar de ser Caetano. É emocionante compartilhar a grandeza desse artista que nos brinda com a madura longevidade do seu talento inimitável. A seriedade, a competência e a inteligência como canta é uma questão cultural. Caetano é a ruptura que resgatou muita coisa da tradição, sem abrir mão da ruptura. É vanguarda o tempo todo, até mesmo quando escande as sílabas para homenagear a banda, os músicos, tornando sua voz um instrumento significativo, mas coadjuvante. Em Caetano, é o arranjo, a harmonia, a melodia que contam. Por isso, quando é aplaudido, faz um gesto em direção aos músicos sacudindo a cabeça dizendo: é deles o mérito, é deles. E é pura verdade. A voz, em Caetano, torna explícito o que nossos ouvidos sentem, mas nem sempre identificam. Ele é didático em sua performance perfeita. E não vamos dizer mais nada. Basta dizer que canta. Ponto.

A fonte vem do que é profundo, cruza a pedra e se espraia no raso da Catarina. Tudo é fonte, desde a confecção oculta da água, do filetezinho que desce a montanha, do véu de noiva da cachoeira, do riacho, da lagoa, do rio-mar e do deus Oceano. Tudo é fonte, meu bem. Tudo isso é bossa nova, isso é muito natural.

RETORNO - Imagem de hoje: um Caetano e um violão. E basta.

28 de setembro de 2008

O ADEUS DO INDOMÁVEL


Em Cool Hand Luke (1967), no papel de um presidiário que se insurge contra a cadeia, Paul Newman conseguiu seu passaporte para a eternidade. Agora que não fará mais filmes, e está sendo lembrado pelo seus papéis mais afetados, como o jogador de sinuca de A cor do dinheiro, o gigolô de Gata em teto de zinco quente, o soldado de Exodus ou o bandoleiro simpático de Butch Cassidy, é melhor regular a transmissão para esta obra prima de Stuart Rosenberg, com George Kennedy como coadjuvante, fazendo papel do veterano que protege o garoto recém chegado, Newman, capaz de comer 50 ovos! De condenado a anos de prisão por ter desmontado, bêbado, alguns parquímetros na calçada, ele vira o mito rebelde que busca a liberdade de qualquer jeito e que deixa o sistema carcerário num beco sem saída: ou mata o indomável ou sucumbe com ele.

O filme é um cult. Vi quinhentas vezes. Veria mais quinhentas. Por que nos impressiona? Sem Paul Newman, sem a galeria de grandes atores, sem aquele roteiro, sem aqueles personagens, como o guarda No Eyes, sempre de óculos escuros e que era mudo e só se expressava por tiros de espingarda, ou o chefe da cadeia, interpretado por Strother Martin, que falava com voz estridente pedindo comunicação entre a direção e os apenados, ou a gostosona que se esfrega no automóvel na frente dos condenados a trabalhos forçados e que tem apenas um alfinete segurando o vestido, poderia ter sido apenas um clichê. Dias atrás vi um filme com o mesmo argumento, de um cidadão que comete crime leve e ganha pena pesada. Mas era uma porcaria.

Em Cool Hand Luke, tudo conflui para uma narrativa em favor da libertação humana diante da opressão. A interpretação perfeita desse ator de cara limpa, olhar de metal, gesto medido e carisma saindo pelo ladrão ganha o acompanhamento de uma direção segura, a narrativa enxuta e objetiva, e personagens e situações de grande complexidade e riqueza. Cool Hand Luke, que sempre esteve na rabeira dos filmes considerados, com o tempo torna-se cada vez melhor e periga, daqui a algumas décadas, se transformar no grande filme da nossa época, superando os mais famosos, soterrando todos os outros filmes de Paul Newman, pelo menos.

Não estou desfazendo do resto da carreira desse grande ator que nos deixa mais sós do que nunca. Só quero encontrar uma embocadura pessoal para abordar o grande pesar provocado por sua morte e enxergar neste filme sua performance mais perfeita, sua interpretação mais brilhante, seu personagem decididamente inesquecível. Talvez tudo o que a vida de Paul Newman quis expressar em 83 anos seja exatamente a do cara que foi ganhando cada vez mais correntes, sendo trancafiado cada vez com mais intensidade em solitárias, sendo humilhado, espezinhado, destruído de maneira total e que, assim mesmo, não se entregou e que mesmo na hora de morrer, sorrindo, escutou o barulho dos óculos escuros de No Eyes sendo quebrados.

Cool Hand Luke. Esse é o filme. Paul Newman. Esse é o cara que parte, deixando um recado libertário, longe das imposições do lugar comum e até mesmo do mercado, que tanto usufruiu do seu enorme talento.

RETORNO - Imagem de hoje: Paul Newman em "Rebeldia Indomável". As melhores cenas podem ser vistas no you tube. 2. Entre tantos destaques, um especial para Jo Van Fleet no papel da mãe de Luke. Absolutamente arrasadora, se me permitem a hipérbole. É ver e nem acreditar no que ela faz em poucos minutos. 3. Outra coisa: este filme inesquecível, como tantos outros ( Giant, Juventude Transviada, Appocalipse Now, Easy Rider etc.) TAMBÉM tem Denis Hooper. Mas que coisa impressionante, o Denis Hooper. Esteve em todos os filmes importantes em mais de 40 anos do cinema. Não é para qualquer um. Mas é batata: basta rever uma obra-prima e quem está lá, numa ponta, como coadjuvante, de qualquer jeito e forma? Ele, o Denis Hooper. Digam se estou errado. É loucura.

26 de setembro de 2008

ENTREVISTA PARA ALUNOS DO JORNALISMO DA UFSC


O jornalista e professor da UFSC Fábio Mayer me colocou na roda com seus alunos e o resultado do chat é o que está a seguir, com alguns cortes e correções. A foto é de uma redação antiga, daquelas das olivettis.

P - Estamos em 10 pessoas aqui na aula, da terceira à sétima fase.
R - Ótimo, boa tarde a todos.
P - Quem está digitando é uma aluna, Annelize. Nos diga então, por que você decidiu ser jornalista?
R - Foi complicado. No fundo, e já tinha decidido quando estava na minha cidade. Cheguei até a tentar uma vaga na rádio local. Mas depois quando fui a Porto Alegre, não tive apoio de imediato para seguir a vocação. Então entrei na engenharia, mas saí. No ano seguinte, entrei para o então Curso de Jornalismo da UFRGS. Entrei por vocação.
P - Mas você não teve apoio de quem? Da família?
R - O curso eramuito recente, os pais estranharam. Mas insisti, entrei e logo depois fiz teste para a Caldas Junior e aí entrei como foca na Folha da Tarde. Depois que entrei, me apoiaram. Hoje é moda, não é mesmo? Naquela época, fim dos anos 60, era um curso muito desprestigiado.
P - E qual foi sua reportagem mais marcante?
R - Minha primeira reportagem foi até antes de entrar na FT. Foi para uma revista da Prefeitura. O tema era sobre influência da televisão na infância. Mais tarde, outras reportagens foram importantes. "Uma grande abertura musical", que foi capa da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, era a cobertura de show no ABC, patrocinado pelos metalúrgicos. Estava todo mundo lá, da Elis Regina ao Lula. Foi forte, gostei demais e obteve grande repercussão, inclusive na direção do jornal, que não gostou. A maior parte do tempo fui redator e depois editor. Mas fiz reportagens, sempre que podia e queria. A primera reportagem sobre o filme Pixote, de Hector Babenco, fui eu que fiz, para a IstoÉ. No resto foram coberturas em equipe. O acidente com o césio em Goiânia, por exemplo, vários repórteres envolvidos, eu editei da redação da IstoÉ de São Paulo. E por aí vai, é muita coisa.
P - Tem algum fato curioso que você queira contar pra gente sobre seu tempo de repórter?
R - Vários. Um dia fui entrevistar um figurão em São Paulo, a pedido de Mino Carta. O sujeito era colecionador de arte. Quando cheguei querendo entrevistá-lo ele levou um susto. Achou que era o imposto de renda. Um momento inesquecível da reportagem foi entrevistar, logo antes de ela morrer, a Lina Bo Bardi, arquiteta do Masp. Na sua enorme mansão, vendo-a tomar um licor, ela me falou durante horas. Lina fui um dos poucos gênios, pessoas realmente geniais, que conheci.
P - E como foi trabalhar com o Mino Carta?
R - Mino é uma universidade de jornalismo. Sabe tudo. E o mais incrível: com ele perto, as coisas realmente acontecem. Quando ele saía de fria, furava pauta, era impressionante. Mino é poderoso, no sentido de um pessoa cheia de energia, ético, e um sábio. Sua mais importante lição eu procuro sempre aplicar. Qual é essa lição? O segredo está na equipe. Parece simples, mas não é. Antes de trabalhar com o Mino, achava que o grande jornalismo era feito por ditadores de redação, os caras que mandavam os outros azerem de determinado jeito. Com Mino aprendi que é exatamente o contrário. Você convoca a redação, você pergunta e escuta a equipe, que sempre traz as melhores pautas. Quando, nas reuniões de pauta, ficávamos em silêncio, ele dizia: E então, nenhuma migalha de uma idéia? É que acontecia o seguinte: quem sugeria, fazia. O pessoal gostava de ter idéia, mas fazer dava trabalho. Mino conhece todas as manhas do jornalista. Aprendi com ele a fazer um veículo de comunicação a partir do zero Peguei mais tarde jornal e revista e fiz acontecer, claro que em dimensões infinitamente menores dos projetos em que trabalhei como funcionário.
P - Quais projetos?
R - Coisas pequenas. Veículos corporativos, como uma revista para a Fiesp focada no chão de fábrica, sem fotinho de diretor, sem oba-oba nem pauta imposta por ninguém. Nós fazíamos a revista e os industriais e seu entorno - designers, engenheiros, sociólogos etc. - adoravam. Fiz por cinco anos e fez bastante sucesso. Publicava reportagens de grandes repórteres da grande imprensa, gente que vinha da Gazeta Mercantil, do Estadão. Matérias curtas, mas significativas. Enxutas. Não tinha nada a ver com esses luxos que se fazem hoje. Na revista senhor do mino carta inaugurei as edições extras, tendo editado uma só sobre o plano cruzado.
P - E quais mudanças você vê no jornalismo atual e o do início de sua carreira?
R - Muito profundas. Quando cheguei na redação, existiam inúmeros jornalistas experientes, feras mesmo, que começaram a me ensinar. Ser editor, para alguém na faixa dos vinte anos, era impensável, a não ser que se tratasse de um Mino Carta, filho de jornalista famoso e grande jornalista que ele, Mino, sempre foi, que dirigiu a Quatro Rodas com 26 anos. Ou seja, se pastava bastante antes de ter algum poder, responsabilidade maior numa redação. Hoje vejo que nã é bem assim. Outra mudança foi a eliminação do copy-desk. Os problemas que hoje vejo no jornalismo são em grande parte por falta de copy, ou seja, daquele jornalista que se debruça sobre o texto do repórter e trabalha nele, para melhor. Os textos eram miais densos, intensos, sem as redundâncias de hoje. Praticamente hoje você lê a primeira e a segunda frase e acabou, o resto é suite de dias anteriores ou redundâncias mesmo. Isso não é regra, mas é na maioria dos casos. Claro que tem também muita coisa boa.
P - O que você considera que seja bom no jornalismo atual?
R - Profissão repórter, do caco Barcelos. Aliás, Paulo Francis dizia que não lia jornais, lia jornalistas. Acho em geral a folha melhor do que os outros veículos.
P - Você se incomodava em trabalhar com hard news? Tentava fugir da estrutura rígida da pirâmide invertida?
R - Quando precisei trabalhar, trabalhava. Mas acho que mesmo na hard news você pode ser mais denso, mais criativo do que simplesmente seguir o manual. Veja o caso do Wagner Carelli, grande jornalista que no inicio de carreira trabalhava no Estadão. Ele tinha ido fazer uma reportagem quando o edifício Joelma começou a pegar fogo. Ele ficou a tarde lá, no edificio em frente e pegou tudo, que os outros não pegaram, pois cortaram o acesso a todos os edifícios em volta e ele ficou praticamente só na cobertura, sem concorrência. Aí ele estava escrevendo a matéria da forma tradicional, quando uma grande jornalista chegou por trás e disse: por que vc está colocando no pé do teu texto esse detalhe dos pés do governador descendo do helicóptero no teto do edifício em frente para ver o incendio? por que você não abre com isso? Foi o que ele fez. Foi capa do Estadão com a abertura criativa dele, soprada por uma jornalista veterana.
P - Legal! Como assim "mais denso"?
R - Mais denso quer dizer mais bem escrito. Você precisa exigir mais do teu texto. Não pode simplesmente deixar correr, mesmo que haja urgência. Precisa se treinar em conseguir mais. Mas isso deve ser permitido e incentivado pelo editor, pela direção do jornal ou revista ou noticiário. Quando dirigi por alguns meses o telejornal da record, em 1992, eu pedia para reescrever a cabeça, o lead da notícia. Era um escândalo. Diziam que não havia tempo, que eu era da escrita, que não sabia como funcionava a TV. Aí eu dizia: reescreve. Eles reescreviam. Mas eu dizia: reescreve e de novo! Precisa ser assim. Com o tempo o cara pega a manha e deixa de se entregar aos jargões que surgem.
P - E durante a ditadura, como foi fazer jornalismo?
R - Bem, acho que continuamos na ditadura, não me leve a mal. Mas quando a ditadura precisou dos militares para fazer o jogo sujo (a partir de 1985 não precisou mais) a censura era de fora para dentro. Hoje é de dentro para fora, existe a auto-censura. Naquela época, qualquer um censurava. O delegado da esquina ligava para o jornal proibindo publicação disto e daquilo. Hoje você está proibido de fazer um monte de coisas numa empresa de comunicação. Falar mal da publicidade, por exemplo. Atacar os apaniguados da direção, entre outras coisas
P - Foi por isso que você decidiu fazer blog?
R - Sorte que tem a internet, que é território livre, e o espaço da crônica, onde há mais jogo de cintura, mais liberdade para escrever. Sim, eu estava entalado com décadas de ditadura, precisei jogar tudo para fora, a censura milenar das nossa vida. Deu certo, fiquei feliz. Mas a imprensa te ignora. Jamais saiu uma só linha sobre o Diário da Fonte, que mantenho no blog desde 2002, analisando tudo, especialmente mídia. Ignorar é uma forma de censurar. Costuma-se incensar blogs comportamentais cools, mas blog que tenha o perfil e jornalismo, não. A não ser que faça parte da turma.
P - Que mudanças você acha que ocorreram no imaginário da figura do jornalista com a internet?
R - Muito profundas. Tudo veio á tona. O que era gaveta deixou de ser. E a sedução de poder publicar tudo o que vc escreve é maravilhosa. Quem se dispôs a isso, deixou de ser travado. Porque uma redação tradicional trava. Um jornal na internet, se for bem feito, liberta.
P - Você considera o blog como um novo gênero da literatura?
R - Não, blog é ferramenta. Lá você pode fazer o que quiser, escrever de maneira tradicional ou fazer experimento. Há uma confusão na área. Muita gente ainda acha que blog é uma espécie de anotações marginais a televisão, que se pela de medo da internet, trata blog e site como coadjuvantes. Mas não precisa ser, estar em segundo plano. Blog é vanguarda, é uma ferramenta up-to-date. Cabe tudo. Você pode criar um novo gênero de literatura usando a ferramenta blog, mas o blog não é um novo gênero literário.
P - Quantos blogs você tem?
R - um só, o http://outubro.blogspot/. E um site www.consciencia.org/neiduclos. No site coloco os melhores textos do blog.
P - No seu blog, você faz literatura ou jornalismo?
R - Publico poemas contos, crônicas. Mas também artigos sobre economia, política, história.
P - Você considera mais fácil fazer jornalismo ou literatura? O que você prefere?
R - Literatura sem dúvida, ma o jornalismo foi abraçado por mim em 1969, tem quase 40 anos. Aprendi a fazer tudo nele. Então gosto muito de jornalismo, mas literatura é meu fraco, meu forte. Os dois não são fáceis. Literatura é jogo pesado. Você não escreve porque tem "facilidade" de escrever. Acho que foi Chico Buarque que disse: quem tem facilidade de escrever é locutor. Os dois te exigem tudo, mais de uma vida. Acho reportar uma tarefa árdua, produzir um texto final coisa de enlouquecer, escrever um romance um desafio, dar sentido a um livro de poemas uma barra, escrever e selecionar teus contos, outra, não deixar-se envolver pela aparente facilidade da crônica também é complicado. Tudo é difícil, por isso é gratificante.
P - Como foi a sua transição da máquina de escrever para o computador? Na literatura essa transição é mais fácil ou mais difícil?
R - Escrever direto na máquina de escrever foi bem complicado. Eu estava acostumado, antes de entrar no jornalismo, escrever a caneta! Mas me acostumei. Quando cheguei no computador achei tudo uma baba. Para quem pastou na Olivetti, um micro é um bálsamo. Nunca mais aquela dureza de tecla, aqueles papéis amassados, aquelas correções torturantes a caneta em cima das pretinhas. Na literatura fica ótimp. Escrevi literatura em computador muito mais do que produzi em máquina de escrever.
P - Ruy Castro e Marcos de Sá Correa criticam a denominação Jornalismo Literário. O que você acha disso?
R - Gosto de Jornalismo Literário. Acho que eles tem o cuidado de dizer que no jornalismo você pode ser tão criativo quanto na literatura, só que agora não deixam. Foi-se o tempo em que os textos eram verdadeira peças de literatura, como na Realidade e mesmo nos jornalões diários. Acho que pra eles é jornalismo ponto, sem o literário. Faz sentido. Mas eu não desgosto da expressão, acho boa
P - Você acha que alguma publicação impressa atual conserva esta característica de texto solto?
R - A publicação toda? deixa ver. Talvez a Caros Amigos. Mas em geral o que existem são exceções, ao longo dos jornais sempre tem alguém arriscando.
P - E você acha que se o jornalismo se declarar parcial, em vez de manter a postura imparcial, ele ganha mais credibilidade?
R - Gostei de ler esses dias a diferença (não sei se existe) entre isenção e neutralidade
O jornalista precisa ser isento, não se deixar contaminar pela opinião das fontes. Mas não precisa obrigatoriamente ser neutro. Você faz uma reportagem policial isenta, mas não neutra, por exemplo dedica ao facínora alguma coisa especialmente pesado, e cobre a vítima de uma doçura que você realmente está sentindo. É só um exemplo.

24 de setembro de 2008

O BRASIL FORA DE SI


O título é uma sacanagem. Quis dizer: o Brasil fora de suas fronteiras, mas funciona melhor assim. O mote é o discurso inaugural da ONU de ontem, que, como sempre, desde que Oswaldo Aranha fez o primeiro discurso em 1947, ficou a cargo de um brasileiro. Neste caso, do presidente Lula, que disse um monte de obviedades anódinas, desmascaradas hoje na Folha pelo Clóvis Rossi. A reportagem do jornalão diz que Lula “pediu ontem, na abertura da 63ª Assembléia Geral da ONU, maior participação de órgãos multilaterais na regulação dos mercados financeiros. Ele fez críticas ao que chamou de anarquia especulativa".

Rossi foi no osso: “O presidente Luiz Inácio Lula da Silva acertou no diagnóstico, mas errou no timing, em seu discurso de ontem na ONU.Lula disse que chegou a hora da política. Sempre foi hora da política, mas os políticos, inclusive Lula, demitiram-se da tarefa de pensar e executar políticas públicas que contrariassem os mercados, ainda que minimamente”. E arremata: “Não foram só as grandes financeiras que foram para o brejo. Junto com elas foram o FMI, o Banco Mundial, o G8 e cia. limitada. Você tem lido alguma idéia, uma que seja, vinda dessas instituições antes onipresentes nas crises?”

Converso com a enciclopédia José Antônio Severo, que tem um currículo que já beira a biografia histórica, e ele me fala das happy-hour com o presidente do Uruguai Julio Sanguinetti, que adorava bater papo ao cair da tarde sobre assuntos variados, especialmente as guerras no Cone Sul do século 19, especialidade de ambos. Esse é o Brasil que conta, a de cidadãos brasileiros que tratam estadistas estrangeiros com maior consideração (sem falar abobrinhas) e vice-versa. Severo é de 1943, foi criado na era Vargas. É cidadão do mundo. Foi, entre outras mil coisas, diretor da Gazeta Mercantil Sul americana. Trabalhou no Uruguai, em Miami, em Nova York, editou o Jornal da Globo e escreveu vários livros, entre eles um que está na boca do forno e que vai ser um estouro (detalhes daqui a algum tempo, paciência).

Outro brasileiro internacional é o diplomata Flavio Helmold Macieira, que me foi apresentado pelo Paulo Paiva, jornalista mineiro (e, portanto, mundial) que trabalha em Brasília. Flavio acaba de publicar artigo sobre o Brasil no mundo, mais precisamente "Perspectivas para o Brasil no Cenário Internacional”, que está neste endereço. Macieira, civilizadíssimo, é bala: formado em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense/RJ (UFF) e mestre em Relações Internacionais pela Universidade da Cidade de Dublin (Irlanda). Foi Assessor da Divisão das Nações Unidas em 1992 e trabalhou como Conselheiro da Embaixada em Paris em 1994. Foi nomeado Ministro de Segunda Classe, por merecimento, em 1999, e nomeado Ministro-Conselheiro da Embaixada em Berna em 2003. Já em 2007, tornou-se Grande Oficial da Ordem de Rio Branco e Ministro de Primeira Classe. Atualmente é Chefe de Gabinete da Secretaria-Geral do Ministério das Relações Exteriores.

Veja como ele vê o país, com grandeza: "O Brasil é um país com uma capacitação razoável, por sua capacidade produtiva, sua população, pela área de que dispõe, por seus recursos naturais, por sua matriz energética em expansão, sua produção fantástica de alimentos, seu agronegócio, pelas empresas que estão se multinacionalizando, por sua democracia representativa, pelas parcerias que temos, ao mesmo tempo, com o norte e com o sul, por sua tradição de pacifismo, por seu principismo jurídico internacional, pela defesa de princípios fundamentais de civilidade internacional de não interferência, de igualdade entre os estados e de princípios da solidariedade. É preciso não ter medo do futuro e administrá-lo da forma que for possível.”

Descubro que está sendo produzido um documentário sobre Oswaldo Aranha. Veja o belíssimo video promocional . Detalhes neste endereço. O título é "Oswaldo Aranha - O Voto e a Revolução". Escrito e dirigido por Julio Wohlgemuth. Trata-se da "primeira produção audiovisual de longa metragem sobre Oswaldo Aranha (1884-1960), um homem que mudou os rumos do país. O documentário que se justifica por ter sido Aranha uma personalidade fundamental do seu tempo (as revoltas regionais do início do século 20, a Primeira Guerra Mundial, a Coluna Prestes, a Revolução de 1930, a industrialização brasileira, o comunismo e o nazi-fascismo, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial, o Pan-americanismo, a partilha da Palestina, etc.)".

RETORNO - Imagem de hoje: Aranha (no centro) chama o presidente Roosevelt de tchê loco. Com todo o respeito. Mútuo.

23 de setembro de 2008

BILAC


Nei Duclós (*)

Nepotismo, prostituição infantil, violência urbana: nada escapa ao cronista Olavo Bilac na carioca Gazeta de Notícias. Na virada do século 19 para o 20, ele denuncia os exploradores sexuais de crianças de sete e oito anos, ironiza os oligarcas que empregam as famílias nas bocas do Senado e da Câmara, se insurge contra as quadrilhas em ação na Revolta da Vacina. Bilac tem o dom da palavra clara, sem esse azedume que tomou conta da literatura brasileira nos últimos tempos, fruto da desconfiança dos autores em relação aos leitores.

Pois só pode ser isso: quem escreve, hoje, tem medo de ser confundido com as gavetas sinistras onde foram colocadas idéias e posturas. Como vivemos sob opressão constante, o truque foi jogar na vala comum o que não se enquadra nos novos cânones, para assim, lampeiros, os denunciantes se confraternizarem no limbo da correção impoluta. Esse expediente garante grossas fatias dos projetos milionários, que oficializaram alguns lugares comuns do modernismo para excluir o que aparentemente se opõe a ele.

Bilac, por exemplo, é colocado como o modelo do poeta ultrapassado, aquele que importou modismos da França e compôs ladainhas para senhoritas e madames em salões encerados. Bilac é um assombro de domínio do idioma e tem o que perdemos miseravelmente: a música das palavras, que é, no fundo, a sua essência. Exatamente o oposto dessa literatura metida a besta que domina o país, com suas escatologias primárias, seus pseudo-rompimentos de linguagem, suas certezas datadas, suas portas fechadas ao talento fora do circuito (uma situação marginal que, às vezes, é empalmada pelos espertalhões, que fingem assim ser avessos ao sistema, quando o servem).

É preciso ter coragem para enfrentar o medo de ser enquadrado. Clareza é fundamental para sair de cima do muro e se horrorizar diante da destruição do tecido social, quando as cidades são dominadas por facínoras, que aproveitam a insurgência coletiva para destruir o último poder reservado à cidadania (o direito de ir e vir, de sobreviver). O “correto” é dourar a pílula e justificar a brutalidade usando o álibi perfeito da sede de justiça. Se esse equívoco precisar de um monumento, basta olhar em torno.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 23 de setembro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense.

21 de setembro de 2008

RODADA DE MATE



Nei Duclós

Por que se vive, gaudério?
Mistério não tem resposta
Vir ao mundo é o que basta
Não nascer é a morte certa

Esse final que antecede
Nosso viver tão escasso
É o susto antes do parto
Que a memória carrega

Levamos isso nas costas
O medo ancestral do nada
Não dispor de corpo ou alma
Morrer sem chegar a hora

O berço é uma desforra
Contra o destino madrasto
Quando sorvemos num trago
Tudo o que a vida comporta

Nenhum avesso nos leva
Para o limbo que nos gera
E nem assusta a passagem
Que um dia nos espera

Pois se um rebanho se solta
Como revanche na guerra
Não há tropeiro a galope
Que impeça a força do berro

Por que se vive, gaudério?
Pergunto só pelo hábito
A resposta está na roda
Para deixar de ser gado

19 de setembro de 2008

O CINEMA EM BUSCA DAS ORIGENS


Todo filme é sobre cinema. Um longo caminho (2005), dirigido por Yimou Zhang e com Ken Takakura e um elenco de atores amadores, não foge à regra. A morte, nessa obra, é representada pela ausência da indústria audiovisual na vida dos personagens. O velho, que depois de perder a mulher se recolhe a uma aldeia de pescadores, não tem sequer televisão. Sua tela, a natureza, que atrai sua atenção durante horas, é a extrema solidão de um mundo sem cinema. Ele só existe porque está sendo filmado por Yimou, cineasta deslumbrante de vários sucessos.

O personagem Takata, que ao se recolher exclui o filho do seu convívio, quer resgatar essa relação familiar tarde demais. O filho, que sofre de doença terminal, nem aparece, portanto está praticamente morto. Subsiste sua memória, um vídeo sobre sua paixão pelas óperas chinesas. E estas, recolhidas numa aldeia distante e no presídio, só existirão no momento em que forem filmadas.

A história é sobre o longo percurso do protagonista para conseguir filmar uma ópera prometida pelo cantor. Como ele conseguirá seu objetivo? Por meio do cinema. Só quando ele grava um depoimento para o diretor da prisão, sobre sua necessidade de focar a ópera com determinado intérprete, que está preso, é que as portas se abrem. Mas a operação se complica. O cantor, por sua vez, precisa ver o filho, de cinco anos, que nem chegou a conhecer.

Takata então vai até a aldeia e fotografa o menino, para mostrar ao pai. O velho precisava da ópera para resgatar uma relação perdida. Como acontece o desenlace ( a doença terminal enfim vence a batalha) no meio da viagem, seu intento perde o sentido. O que resta é apenas mostrar as fotos do garoto para o pai presidiário.

A responsabilidade de filmar escapa assim do indivíduo e é empalmada pela coletividade, pois agora todos os que se envolveram com a história do velho querem que ele consuma sua intenção. Ele cede diante das pressões e o que vemos então é a ópera filmada. Mas filmada por quem? Pelo protagonista, sim, mas principalmente por Yimou. O cineasta assume o papel da coletividade e faz do seu cinema uma arte coletiva.

Yimou busca as origens do cinema, seu sentido. Para que fazer filmes? Para que a coletividade se enxergue e assim não morra. Para que serve um cineasta? Para instrumentar a sociedade com essa arte completa, o cinema, e assim garantir a identidade, a herança. Já que a relação entre pai e filho se esgarçou, já que a família se perdeu, já que não somos mais nações, mas amontoados de gente em luta pela sobrevivência a qualquer custo, resta ao cinema recuperar esse convívio e isso só se consegue por meio da imagem e do som, por meio da sétima arte.

É complicado esse enfoque? Acho que não. Por que ninguém fala nisso? Ficam malhando o resultado, dizendo que é um melodrama. Dá licença. Yimou mata a pau. Fez obras imperais como aquele das adagas voadoras, que é excelente, apesar de estar a serviço da grandiosidade da China moderna, mas fez também “Nenhum a menos”, sobre a saga da professorinha que vai em busca do aluno perdido. Yumou saiu do cinema de autor para o megablockbuster. Nesse longo caminho, voltou às suas origens de cineasta. É o que ele faz. Tinha perdido o foco, concedido demais. Usou seu prestígio para fazer de novo uma obra de autor. Benvindo de volta à casa, gênio.

ALTERNATIVAS AO GAUCHISMO


Nei Duclós

Neste vinte de setembro, quando se comemora mais um aniversário da Revolução Farroupilha e o povo gaúcho vai às ruas para celebrar uma identidade baseada em valores, princípios e feitos históricos, e não em raça ou religião, teremos que pensar em alternativas para esse movimento cultural vitorioso, que se espalhou pelo Brasil como um parâmetro, como baliza, como marco de pedra no deserto de soberania. Sim, alternativas, pois o tradicionalismo está sob cerrada oposição, sendo desmascarado, atacado, denunciado de todas as formas, já que, segundo essa onda que se avoluma, tudo não passa de uma patifaria barata de estancieiros escravistas que mantiveram a peonada na soga e inventaram toda essa enganação só para continuarem a pão-de-ló.

É preciso arrancar esse pendão dos ares, dizer que não houve herói nenhum, era tudo pau mandado, que a coragem não existiu, que a luta pelo território nacional foi só um detalhe sem importância, que o Rio Grande do Sul é mais, muito mais do que isso, que é preciso atentar para a diversidade, a alteridade, a complementaridade, a alternatividade e outras ades afins. Por isso vou elencar aqui algumas opções para que a gauchada pare de uma vez de se fresquear com essas pilchas, boleadeiras, acordeons e tudo o mais. Vamos às opções.

CAIPIRISMO CHIC – Soube que a dupla Zezé di Amargar e Cagando fez o maior sucesso em Porto Alegre. Cobraram os tubos e saía gente pelo ladrão para ver os dois rebolentos caipiras chics guincharem no palco. Essa é uma boa alternativa ao gauchismo. No lugar de termos grandes artistas que começaram humildemente no nativismo e que hoje são autores de primeira grandeza, que transcenderam suas raízes porque nelas tiveram apoio quando nasceram, e alcançaram altos níveis de criação, que são lições para as novas gerações de músicos, compositores e cantores, teríamos, como existe em São Paulo uma plêiade de gritadores mirins a se esgoelarem pela amada . O bom é que assim os gaúchos poderão usar aquele chapéu texano, fivelonas viadas nos cintos, calças apertadinhas na bunda e outros quiprocós. Seria o fino.

NOJO-DI-EU ACADÊMICO COOL - Em vez de guascas largados, sinceros, expansivos, solares, em vez de brio, de fidelidade, de grandeza, teríamos milhares e milhares de rostos mofinos em postura meio oblíqua, a mijar versinhos Paulo-leminskianos cheios de trocadalhos do carilho, com boquinha de nojo-di-eu, a citar Gramsci. Todos morariam em Nova York ou Londres e viriam ao Rio Grande do Sul só para fazer palestras pagas regiamente pelo governo para desancar o Getúlio Vargas. Isso dá um dinheiro!

GUEVARISMO CHAVISTA NUESTRO – Como todo mundo sabe, o portunhol é o brasileiro que tenta falar espanhol, para gargalhada geral da Cucaracholândia. O traje para essa tendência, que substituiria de vez o gauchismo, seria o poncho e conga eliminadora de fronteiras, para que todos os hermanos possam passar a mão na bunda das chicas sem que ninguém reclame e todos considerem o máximo de integração latino-americana. Multiplicaríamos os royalties para Itaipu, deixaríamos que Chávez tomasse conta do Acre, que o Chile fizesse do Pantanal uma estância de recreio, e que a gringalhada pegasse de vez a Amazônia, pois sem gaúcho armado todo mundo acha que pode invadir o Brasil.

YOUTUBISMO MILITANTE - Eliminando o gauchismo, a programação de todas as rádios só difundiriam o grelo militante das madonas pops, as televisões só diriam a cada segundo “aí, galera”, os jornais só programariam a banda londrina de última geração que exige mil toalhas de linho nos camarins só para limpar o ranho gerado pelo fog inglês. E até mesmo o mais oprimido peão teria vez de dizer “com certeza” no you tube. As paradas cívicas seriam eliminadas, por obsoletas, e teríamos apenas as grandes surubas da diversidade, quando meia dúzia de energúmenos celebram o fato de exibir publicamente o fiofó.

Assim todos ficariam satisfeitos, não é mesmo? À parte isso, viva o 20 de setembro! Viva Bento Gonçalves! Viva O General Netto! E me passa o mate antes que eu te dê mais uns cascudos.

A PROFECIA DA VIDA MANSA


Quando falam que tens futuro, e apontam caminhos para chegar lá, é porque querem conduzir teu destino. Qual é o futuro dos dois jovens de classe média baixa londrina (Colin Farrel e Ian McGregor) no filme de Woody Allen, O sonho de Cassandra (2007)? É o tio milionário Howard (Tom Wilkinson), ídolo da irmã, mãe dos rapazes, que não cansa de usá-lo como modelo contra o marido perdedor, enfartado e dono de restaurante. Na mitologia grega, Cassandra é a a belíssima troiana amaldiçoada por Apolo, que não conseguiu faturá-la e por isso determinou que suas profecias jamais teriam credibilidade.

Nada mais adequado: o sonho de ascensão social por meio do dinheiro fácil, a mais recorrente profecia da ditadura especulativa, mostra as vísceras e faz suas vítimas, exatamente as pessoas que acreditaram nela. Não importa que cabeças lúcidas tenham avisado que tudo estava pôdre e iria explodir, as pessoas embarcaram assim mesmo. Essa é a maldição de Cassandra: avisar e não conseguir mudar nada. E esse é o papel dos falsos profetas, as Cassandras de araque e pelo avesso: predizer um mundo ideal que vira um monte de estrume em pouco tempo.

É proibido falar mal de Woody Allen. Nesta avalanche de mediocridade que toma conta da indústria audiovisual, em que temos de ver uns 30 filmes por mês para que escape um ou dois, é preciso aguardar cada lançamento dele com ansiedade. Allen nunca nos decepciona. Ele não tem apenas o dom, tem a técnica, o que é muito mais difícil. O que encanta nele são as âncoras cinematográficas históricas que usa. Com o auxílio de Philip Glass, que cuidou da música, ele faz misérias com uma produção barata, enxuta, sensível, brilhante. Sabe o barco que sai do cais ao som de uma música ao mesmo tempo épica e romântica, e que nos enleva, nos seduz para uma narrativa boa de ver? Tão simples assim.

Sabe Hitchcock? Está todo em Woody Allen nesse filme. O Pacto Sinistro entre os irmãos e o tio bandido (você mata o desafeto que eu te proporciono uma boa vida); a sala escura pré-assassinato onde toca o telefone, como Disque M para Matar; a perseguição dos algozes contra a vítima nos becos ao som de efeitos sonoros de arrepiar, como tantas vezes vemos nos clássicos do mestre de suspense. Tudo são referências, jamais plágio. Vejo cineastas mediocres plagiando sem parar e se achando gênios. Woody Allen tem competência, sabedoria, talento, clareza de propósitos. E conhece cinema como poucos.

É encantadora a objetividade das seqüências. O diálogo entre o casal de personagens se refere ao campo inglês. Na cena seguinte, lá estão eles no pic-nic, no lago, na relva. A atriz marca encontro com o pretendente, que vai assisti-la numa sessão de fotos num balneário. O apaixonado abana para a mulher de longe. A câmara faz um travelling e se fixa num hotel. Corta para a cena da cama. Tudo muito despojado. Parece fácil de fazer, mas não é.

Dois ou três filmes por mês? Às vezes nem isso. Ultimamente, temos tido sorte aqui nas locadoras do norte da ilha. Vi Efeito Dominó, de Roger Donaldson, com Jason Statham, muito bom. Ambientado nos anos 60, reporta o maior roubo a bancos na Inglaterra. A capa do dvd mostra o carismático Jason de arma na mão. Parece um trhriller de blockbuster, mas é um tremendo filme. Não sabia que a história se passava naquela época e estranhei que não via nem celular nem computador em cena. As pessoas faziam apontamentos em folhas de papel, em cadernetas. As chantagens usavam fotos de papel e filmes de celulóide, imaginem. Hoje, com a proliferação digital, já vai direto para a rede e pronto.

Os dois filmes abordam a necessidade de enriquecer, o sonho da grana abundante, a aposentadoria precoce. É a profecia da nossa época. Deposite sua grana em nossos inúmeros produtos de investimento que nós cuidamos de multiplicá-la. Você vai viver de rendas, virar um aristocrata. Na hora em que os bancos e seguradoras começam a pedir falência, você vê o tamanho do estrago. Não vá escutar aquele tio que parece tão bem sucedido e não passa de um gangster. Cuidado com as falsas Cassandras.

RETORNO - Imagem de hoje: os protagonistas de "O Sonho de Cassandra" no veleiro do mesmo nome, símbolo do status que eles queriam ter.

17 de setembro de 2008

A CRÔNICA EM BRANCO


Nei Duclós

Lourenço Diaféria, que morreu de infarto no dia 16, terça-feira, é um cronista clássico. Faz parte de uma linhagem criada por escritores como ele, que não vieram do romance ou da poesia, como Machado de Assis ou Olavo Bilac, mas que se dedicaram apenas a esse gênero literário essencialmente brasileiro, nascido no jornalismo pátrio, e que é um reduto tradicional da liberdade de pensamento. Numa reportagem, editorial, cobertura, entrevista, o jornalista sofre muito mais limitações do que o livre-pensar da crônica. Diaféria é da mesma espécie de Rubem Braga, que não precisou voar para outras paragens e fez da crônica seu ganha-pão e sua transcendência. Mas, ironia total, ele foi marcado exatamente por uma crônica em branco, que não existiu, mas foi publicada.

Eu estava lá, posso contar. Trabalhei na Folha por dois anos e meio na segunda metade da década de 1970. Diaféria era o chamado boa-praça, sempre sorridente, de grande talento, querido por todos. Nós, metidos a revolucionários, que fazíamos parte da troupe do editor Tarso de Castro, achávamos até que ele era leve demais, pois estávamos em plena ditadura civil-militar. Nem sabíamos a porcaria em que ia se transformar o país nos anos seguintes. Deveríamos era agradecer aos céus por termos perto, todos os dias, o cronista da cidade, com uma popularidade que testemunhei pessoalmente, pois nesse momento o mundo explodiu.

Todos conhecem a história. Diaféria fez uma crônica sobre o sargento herói que salvou uma criança de um poço de feras no zoológico, as tais ariranhas, lontras gigantes ou lobos do rio. O cronista celebra a coragem do homem que salvou a vítima, mas que não resistiu às mordidas, e faz uma comparação com as estátuas dos heróis militares. Disse que o sargento sim merecia ser homenageado e não os que posavam nas praças públicas imobilizados em metal. A época era de patriotadas infames, de grande hipocrisia, pois sabíamos o que a ditadura fazia e ao mesmo tempo tínhamos que aturar o álibi perfeito proporcionado pela memória dos heróis. Ou seja, a tirania se escudava na imagem legítima dos nossos heróis de guerra para manter a opressão. Diaféria, o boa praça, o texto leve, sempre sorridente, tocou na ferida. E foi punido exemplarmente.

Lembro sua cara transtornada pela injustiça que sofreu, pois foi preso e processado. Em retaliação, Tarso de Castro publicou o espaço do cronista totalmente em branco, o que foi considerado uma ofensa ainda mais grave pelos ditadores. Na redação, choveu telefonemas dos leitores. Todos diziam a mesma coisa: “Se Lourenço Diaféria sair, suspendo minha assinatura ou então, deixo de comprar o jornal, pois eu só tenho a Folha na minha casa para ler o cronista”. Fiquei impressionado pelo carisma, a penetração, o prestígio, a grandeza do nosso herói dos textos diários. Mudei complemente meu conceito. Eu sempre lia sua crônica, mas pessoalmente tinha preconceitos, que sumiram nesses dias. Diaféria era o cara e nós, uns apagados escribas insubordinados, mas submissos.

Infelizmente, esse episódio foi fatal para Diaféria. Ele continuou produzindo, sempre bem, sempre bom, publicou vários livros de crônicas, mas nunca mais foi o mesmo. Era diferente. Não se tratava mais do cronista da cidade, querido e festejado na ascendente Folha de S. Paulo. Era uma pessoa marginalizada, contra a qual se desencadeou a fúria do tempo, a injustiça contra o talento, o horror contra o sorriso e a emoção. Agora Diaféria partiu e ficamos a sós, com sua obra. Um cavalheiro, um homem do bem, de olho claro e riso aberto, a nos ensinar o convívio decente e humano numa redação, lugar de rilhar os dentes.

Ele passou pela vida e deixou seu legado. Primeiro, o do escritor determinado e de fôlego, que soube ser fiel às suas origens e sua cidade. Segundo, a pessoa corajosa que fez da crônica sua trincheira. O exercício da liberdade, em Lourenço Diaféria, é o tesouro que agora compartilhamos. Também virei cronista, seguindo o seu exemplo. E tenho liberdade para escrever graças a Lourenço Diaféria, que na hora decisiva soube combater o bom combate.

A CRISE É DE VERGONHA


É incomensurável a cara de pau dos analistas da atual “crise” financeira, como se não soubessem que sabemos extamente o que são: beneficiários de uma economia podre, que sucateou as nações, intensificou o trabalho escravo, jogo no lixo as vitórias do socialismo, fez tabula rasa das conquistas econômicas e sociais sob o capitalismo sob o controle de grandes estadistas. Ou seja, transformou tudo nessa josta que virou uma fedentina geral de países em sucata e que disputam o butim, como na Bolívia, aos socos e pontapés, ou como no Iraque, em que uma potência luta contra miseráveis para garantir o respeito que o mundo já não lhe devota mais.

Um dos analistas chegou ao cúmulo de dizer que a estabilidade por longos anos gerou a atual instabilidade. Como se a gente acreditasse nessa pax econômica, que nada mais foi do que a crescente exclusão de populações inteiras e a superconcentração de renda na mão de meia dúzia de nababos, enquanto se suborna de maneira descarada as classes médias ou as pobres ascendentes, como acontece no Brasil do “sortudo” Lula. E agora, presidente, onde foi sua proverbial sorte, para onde vai seu sorriso debochado, no momento em que as bolsas de valores perdem horrores, enquanto os Estados Unidos contrariam todas as suas pregações pró-mercado e fazem o que fez o velho Getulio, estatizam tudo para garantir a sobrevivência. Ué, onde foi parar o deus Mercado?

Não há limites para a cara de pau. Vieram aqui e roubaram o patrimônio público, cacifados pelo Bndes e por essa vergonhosa política de juros, que remunera na estratosfera o capital especulativo, entrega a soberania, sucateia o que acumulamos em décadas e ainda dá lições de moral sobre o Estado, a burocracia do estado e não sei o que mais. Quadrilhas tomaram conta do estado e já roubam a futuro, pois se assanharam com essa coisa do pré-sal, só imaginando as tetas que iriam sugar, os novos veios de ouro à disposição da malandragem internacional, os que nada produzem e jogam o dinheiro alheio no lixo.

E aí, bundinha bem sucedido, para onde vão teus rendimentos em juros estratosféricos? Não por acaso o governo atual, e também os anteriores, fazem os bancos se locupletarem com imensos lucros, pois vivem nesse mundo fictício que está fazendo água. Pergunto: e a ditadura política, a falsa democracia, fruto dessa especulação, será que vai ceder? Ou a tirania vai mudar de base, se sustentar por outros meios, como acontecia antigamente, quando os tubarões dos megatrustes do aço e do petróleo (e não das montanhas de dinheiro falso como agora) davam todas as cartas?

A crise é de vergonha na cara. Falta coerência, falta espírito público, falta generosidade, falta cultura, falta conhecimento, falta desprendimento, falta coragem. São tudo uns ratos. Assumam que se locupletaram com essa ciranda e não venham agora com suas análises frias e fajutas, achar que “está tudo confuso” como diz esse pernicioso Delfim Netto na Folha.

Não está nada confuso, está super claro: o governo americano está estatizando seguradoras, bancos de investimentos, imobiliárias, para evitar que tudo vá para as cucuias. Mas o problema é que já foi, quando, no lugar de ceder às pressões das lutas populares, inventaram essa globalização assassina, só pelo prazer que eles têm de matar.

Chega, caralho.

ALIANÇA


Nei Duclós

Morrer não tem importância
A frase final me escapa
A despedida me cansa

Viver não tem importância
Tudo é tempo perdido
Maturidade, infância

Nascer não tem importância
Só seremos depois
De não sermos sempre

Lutar não tem importância
Há um abismo na hora
De arriscar a lança

O amor não tem importância
Somos inútil grão
Num relógio de areia

Sofrer não tem importância
Tudo vai passar
Por cima da esperança

Sonhar não tem importância
De um castelo no ar
Só resta o esboço

A última resistência
É o destino que damos
Às palavras sem substância

Não me refiro ao sal, ao sopro
Nem à água
Que impregna a montanha

Mas ao gesto que assumimos
Diante do mal
E seus exércitos

É quando nosso grito
Vale o peixe que colhemos
É quando nossa vida
Tem o trigo que plantamos
É quando um país morto
Ressurge, âncora

Dizer tem importância
Desde que se nasça
Morra, viva, lute
Ame, sofra, sonhe
Feito sangue
Tatuado numa aliança

RETORNO - Imagem de hoje: Arco do Triunfo, foto de Daniel e Carla Duclós.

13 de setembro de 2008

PEDRA NO REGATO


Nei Duclós (*)

Pedra lisa, quase transparente, brilha no fundo de um regato, aquela porção de água pura que desce a montanha tecendo a aventura. Mais preciosa que ametista, mais vistosa que pepita, mais valiosa que diamante bruto. Perdida entre tantas, se deposita sem esperança de ser colhida. Tem apenas a beleza exposta no barulho da pequena correnteza, mudando de lugar conforme a chuva, ameaçando despencar na primeira cascata e que se encolhe ao toque quando a descobrimos quase sem querer, numa curva tomada pelo pedregulho.

A mão em forma de luva despenca para apanhá-la antes que flutue, ou suma, ou faça qualquer coisa louca, típica das criaturas do sonho. A mão cruza o filete de água em movimento perdendo a direção. A prata do sol, filtrado por nuvens pálidas, gera a confusão do gesto feito de improviso. O resultado é apanhar pó do leito do riacho, milhões de partículas que por instantes escondem o objeto de desejo, agora impossível de ser localizado diante da escassez dos cinco sentidos.

A paisagem conspira para manter a prenda grudada ao seu ambiente. Quer evitar que ela sofra de súbita demonstração de assombro e depois seja depositada no fundo da mochila, na parte inacessível dos bolsos, no forro de jaquetas abandonadas e por lá fique para sempre, exilada da missão que a natureza, portanto, o destino, lhe reservou. Se o viajante tem pressa, e está ali para bater recordes, ou simplesmente foge do iminente despencar do dia, se quer alcançar a cabana mais próxima antes que a coruja pie, então o tesouro será preservado.

Mas se quem estiver passando for mulher, tudo muda. A pedra é vista como a âncora de um amor que está por vir, o fetiche de uma declaração eterna, o início de um namoro, o presente que jamais se esquece. Mas há um problema: mulher não colhe a pedra, e sim a recebe de alguém que talvez ainda nem saiba que foi escolhido. É preciso então desafiar os planos e gerar uma artimanha. Torcer o pé para chamar o príncipe, envolto em brumas lá adiante. Mal sabe ele que já está sendo encaminhado para a gruta, o ninho, o momento fecundo. Por um milagre, ou talvez porque a mulher saiba gritar em direção do amado sem que ninguém mais escute, ele se precipita para ver o que é. A princesa finge a dor e dirige o olhar pânico para a água.

É quando ele vê, no fundo do rio, a pedra mais valiosa do que dobrões de ouro. Sem atinar direito, pega o que está sendo ofertado pela liquidez do entardecer. Pois agora ficou claro que pássaros, folhas, ciscos, pétalas estão carregando o espírito do rapaz para dentro do mistério. Ele acha que ninguém pensou antes no que surge em sua mente tomada por um breve susto. Assim como colhe a pedra, a estende em direção à moça, já refeita do tombo e pronta para receber a esperada aliança.

É assim que funciona esse expediente maroto que o amor prega nos garotos expostos à esperteza feminina. A pedra colhida no fim-de-semana, quando todos fingiam divertir-se, é o fundamento de uma relação que deve perdurar. Porque é impossível evitar. Assim como existe a certeza de que tudo passa e que o romantismo foi pura perda de tempo dos nossos ancestrais, há também o inevitável arranjo dos pares que jamais tomam caminhos opostos e se unem para uma vida a dois, contrariando os fuxicos, as tendências e até mesmo as celebrações de bodas intermináveis.

Mais do que uma festa ou um bolo de 50 andares, um para cada ano da relação, o que existe é a pequena cesta de vime em frente ao espelho do quarto. Lá, entre agulhas, lantejoulas, brocados, fotos, jaz a pedra lisa colhida um dia no fundo de um regato em flor. A mulher pega a prenda, aperta-a contra o coração e sorri. E lembra a cara de espanto do futuro marido, quando lhe alcançou a jóia. Era o rosto dos predestinados. Os que foram ungidos pelo privilégio de compartilhar o amor na longa trajetória sobre a terra. Ele sabe que participa de uma viagem sagrada, que nasceu num entardecer na serra. Foi quando o brilho da pedra única transformou o regato numa fonte de sentimentos que costuram uma civilização perdida.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-se-semana, na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: o romântico rio Sena, foto de Daniel e Carla Duclós. 3. Regina Agrella informa: a Revista de Fotografia SFC, em parceria com a Focus, está divulgando projeto de assinatura gratuita. A Social Foto Clube, revista cultural e de incentivo a fotografia está com nova proposta para voltar à circulação, porém apenas para assinantes e será inteiramente gratuita, sem nenhum custo para recebê-la. Entretanto, para que este projeto possa se viabilizar, há necessidade de comprovar ao público anunciante que há pelo menos 15 mil assinaturas de leitores. Para os interessado em assinar, entre nesta página.

EXTRA: RUY CASTRO É A BOSSA NOVA

Já está nas bancas mais um volume da coleção sobre Bossa Nova da Folha de S. Paulo, escrita e produzida por Ruy Castro. Desta vez é João Donato. Ruy Castro é a bossa nova. Se todos os integrantes do movimento, de uma forma ou outra, renegaram o termo, coube a Ruy Castro consolidar o movimento por meio de seu trabalho de escritor, intelectual, jornalista e civilizador. Ruy Castro explica porque Carlos Lyra é da Bossa Nova, porque João Donato é da Bossa Nova, porque Dick Farney é da Bossa Nova, por mais que tenham esperneado.

O conceito pertence hoje a Ruy Castro, brasileiro do primeiríssimo time. É dele que emana esse mar musical que vem do Brasil profundo, a nos lembrar quem somos de verdade. E ele desempenha esse papel da maneira mais apropriada possível: com um texto enxuto, preciso, generoso, brilhante. Como se nem estivesse aí, com o espírito carioca da fase áurea, a nos dizer que não é preciso elogiá-lo, pois elogio, acrescento, é a palavra mais feia que existe. Quando me dizem que elogio alguém, fico uma fera.

Eu abordo a sintonia entre um autor e a divindade, o que é outra coisa (o resto, tanta coisa, deixo de fora, e essa exclusão é a paulada mais profunda que posso dar). Elogio é para os medíocres. O que devemos fazer é tocar Ruy Castro e agradecer pelo seu trabalho de décadas a favor do que perdemos por enquanto, mas que jamais perderemos de fato.

ACROSS THE UNIVERSE: CHEGUE JUNTO


Nada mais é inesquecível, tudo está na mão. A memória era um lugar, hoje é lugar nenhum. Faz parte do consumo. A cena esquecida do filme perdido está no You tube. E o resgate do passado, feito agora, acaba sendo tratado como pão adormecido. É o caso do impressionante Across the Universe, a comédia musical que nasce clássica, lançada em 2007. É tratada como um amontoado de clipes, como diluição das músicas dos Beatles, como "mais do mesmo" dos anos 60, quando não é nada disso. É uma obra-prima, com todas as letras. Mas ficar impactado com o filme não pega bem. A moda é negligenciar a obra alheia.

É, como dizia o cronista Olavo Bilac dos inimigos de Eça de Queiroz, se transformar num desses “esmerilhadores de defeitos, caçadores de senões, que passam a vida a catarem imperfeições nas obras-primas como quem anda a catar caramujos nos rosais”. Volto ao cronista Bilac nos próximos dias, pois esse tema vale mais de um post (mas não resisto em comentar também seu terrível perfil de Carlos Gomes, o maestro ingênuo que sofreu na mãos dos medíocres e bandidos até morrer miseravelmente; ou do projeto de José do Patrocínio, que se meteu a fazer um gigantesco balão de alumínio e com isso torrou todo o seu patrimônio).

De que trata Across the Universe? Da genialidade dos Beatles, que romperam todos os rótulos e se transformaram nos criadores absolutos da nossa época. Dizer que Beatles é rock é o mesmo que enquadrar Mozart ou Schubert. O fogo perene do talento maior em canções, poemas e melodias de absoluto esplendor, costuram uma história de amor ambientada em dois continentes nos anos 60. O que está em pauta não é a reiteração dos velhos clichês da contracultura, ou do romantismo velho de guerra, mas a projeção, para o tempo infinito, de uma obra musical que é a síntese dramatúrgica do humano transformado culturalmente pela tecnologia.

Beatles não é utopia, é reportagem de um tempo mau, para usar a expressão favorita de Plínio Marcos. Não é poesia água-com-açúcar, é invenção de vanguarda de alta voltagem. Basta ver e ouvir Joe Cocker (you tube) interpretando Come Together, que no filme celebra a aparição do personagem Jo-Jo, homenagem a Jimi Hendrix, amante de Sadie, uma representação de Janis Joplin. Cocker canta maravilhosamente e em poucos segundos assume vários personagens, de vagabundo do metrô a motorista da máfia. Come Together (o link é a análise de Daniel Duclós sobre a letra dessa canção) é toda a poesia de transgressão, de William Blake a Ezra Pound, zipada em algumas estrofes e ambientada nos cruzamentos da criação que nos conquistaram nos anos 60 e 70, da guitarra ao teatro.

O que encanta e seduz é a fidelidade à criatividade original (pela primeira vez o universo musical e visual dos Beatles deixa de ganhar uma reprodução cinematográfica fake). É, ao mesmo tempo, uma releitura e uma recriação fiel ao original, sem ser redundante, sem pagar o mico de virar pastiche do que estamos acostumados a ver e ouvir. As canções têm alta voltagem narrativa e servem para gerar conflitos, emoções e celebrações entre os protagonistas.

A direção é de Julie Taymor (Frida), recebeu uma indicação ao Oscar Figurino, de Albert Wolsky ; o roteiro é de Dick Clement e Ian La Fresnais, baseado em estória de Julie Taymor, Dick Clement e Ian La Fresnais . Com Evan Rachel Wood (Lucy) Jim Sturgees (Jude)
Joe Anderson (Max Carrigan) Dana Fuchs (Sadie) Martin Luther (JoJo) T.V. Carpio (Prudence) Bono (Dr. Robert) Eddie Izzard (Sr. Kite). Vejam e ouçam. É de arrepiar.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de Across the Universe. A história nasce nos bailinhos bem comportados, rompe junto com a guerra e chega até os protestos e ao salto psicodélico. Uma viagem cultural no tempo, atualizado numa obra inesquecível. Para quem acha tudo mais ou menos tem uma excelente crítica do Alexandre Werneck na revista Contracampo. É um texto fortíssimo que debulha o filme como se ele fosse uma espiga de abobrinhas. Os críticos da Contracampo são tão profundos, originais e criativos que quando os leio fico quieto. Vai meter com uns caras desses.

12 de setembro de 2008

O MASSACRE DOS CASCUDOS


Nei Duclós

Cascudo é esse da foto, com pele de lixa, que grudava nas redes de pesca do meu pai, inimigo número 1 da espécie. Apesar de sua correção como pescador de carteirinha, ele não suportava a presença dos bicharocos. Considerava perda de tempo, pois o excesso de exemplares tirava espaço dos grandes lutadores de carne saborosa, como o surubi e o dourado, afastando-os das armadilhas pacientemente elaboradas.

Naquele tempo, rede era permitida. Não havia ainda a evidência de que a natureza fosse incapaz de responder à altura das nossas agressões. Vivíamos a inocência pré-ecológica, apesar de seguirmos lições valiosas dos mais velhos, que não permitiam abusos no acampamento. Nos fins-de-semana, éramos convocados para usar a tralha acumulada contra traíras, jundiás, piavas, lambaris. Meu pai colocava o barco de fibra de vidro na garupa do Candango, orgulhoso de seu veículo que dispunha de uma novidade, a tração nas quatro rodas, juntava a gurizada e mais um ou dois compadres e se mandava.

Gostava de estender o espinhel entre as duas margens do arroio, com grandes anzóis, afiadíssimos, iscados de peixe ruim de comer, como os bagres, que são só ferrão,couro e cabeça. Os dourados comiam de tudo e de vez em quando as bóias afundavam, para alegria do pescador. Ele se aproximava remando ou, quando necessário, impulsionado pelo motorzinho de popa de cinco cavalos de força. Às vezes, era premiado com o grande estardalhaço de algum predador bom de colocar na brasa.

Levava também junto a rede de três panos, ou seja, com três camadas de malhas, duas maiores, por fora, e outra menor, por dentro. Nada escapava da giganta. O objetivo era pegar aqueles surubis com mais de 30 quilos e que só acreditavam vendo. O problema é que aparecia mais cascudo do que qualquer outra coisa. Tinha também outra praga, os grumatãs, ou corimbatás, e que são péssimos, pois se alimentam de barro. Não comem isca de carne, escapam do espinhel e se enredam para nos dar trabalho. Mas não tanto quanto os cascudos.

Distribuíamos generosamente os grumatãs. Já os lixentos não escapavam da mortandade. Meu pai mandava tirar todos das malhas e depositar nas margens dos rios, onde formavam verdadeiras montanhas. Não adiantava dizer para ele que era a suprema maravilha, bastava colocar na panela fervente. Aí era só desnucar e puxar. No miolo, vinha aquela carne branquinha que parecia galinha. Esse tipo de argumento não o convencia. Ele simplesmente queria se livrar do tormento. Considerava cascudo prejudicial por se alimentar do que apodrecia no fundo do rio.

Certa feita, ninguém teve paciência para tirar a cascudama no acampamento. Decidimos então levá-los com rede e tudo para a cidade. Depois de uma tarde inteira de trabalho, conseguimos juntar dois sacos grandes de estopa com aquela carne de primeira embalada em couro de terceira. Sabendo que se tratava de uma iguaria, nunca provada por determinação paterna, decidimos distribuir os bichos para a população ribeirinha. Foi uma festa. Todos nos agradeciam a bênção

O convívio com a natureza oferecia tanto a traíra, muito considerada, quanto os cascudos. Assim como tinha por-de-sol e espinhos, banhos inesquecíveis e micuins. A natureza não é cheia de boas intenções. O que existe é essa força de tudo o que está vivo e luta para ficar assim. É o que deixa lembranças muito mais fortes do que qualquer máscara sentimental. Memória é emoção quando conta a verdade.

Aprendi com meu pai a perseguir os grandes reis das águas e deixar de lado as pragas do rio. A maneira como isso foi feito estava errada. Mas o que vale é retribuir ao tempo a medida exata do que ele nos proporciona, para que possamos manter a integridade nesta época de retaliações e escapatórias. No fundo, a rede nem estava nas nossas preferências. O melhor mesmo era molhar a linha e esperar o momento certo de fisgar a presa.

O que tirávamos do arroio, com exceção dos cascudos, comíamos. Ainda não era moda rasgar a boca do bicho e devolver ao ambiente, só para tirar fotografia. É uma opção mais adequada à escassez crescente da natureza. Mas isso não fazia parte daquele mundo perdido, marcado pela abundância e o desperdício.

11 de setembro de 2008

A EXPERIÊNCIA


Nei Duclós (*)

Ele entrou com um gravador na mão e foi logo instalando em cima da minha mesa. Tentei ser gentil, mas o seu jeito de andar, se abaixar e pegar os fios era terrível. Na hora em que alcancei a mão no telefone ele fez um movimento tão brusco para me impedir que acabou caindo em cima do lixo. Não riu, só fez uma careta. Levantou-se, puxou o paletó, sempre com aquela expressão torcida. Estava tentando sorrir, lá da maneira dele, só que eu não pude adivinhar, na hora, o que era. Imediatamente começou a me mostrar.

Pôs as mãos no meu pescoço, mas preferiu apertá-lo depois que conseguiu arrancar o meu colar. Parou quando eu comecei a tossir e a ficar roxa. Sentou na mesa enquanto eu me recompunha e procurava o lenço na bolsa. Acendeu o cigarro, tragou fundo e ficou me olhando. Fiquei mal por alguns minutos. Quis ir ao banheiro mas ele não deixou. Não fez nenhum gesto, nem franziu nada. Continuou fumando. Fazia um jogo claro, caçador, não permitia que eu bancasse a desentendida. Tinha deixado a porta encostada e sabia que eu, na primeira oportunidade, me jogaria para o corredor.

Comecei a ficar apavorada porque ele parou de fazer loucuras e ficou curtindo comigo, esperando, talvez, que eu assumisse o que já estava claro. Não pude nem sentir pena de mim, tão apavorada e confusa que eu estava.
- É tu que atende os telefones? perguntou.
- Do meio-dia até as duas eu fico de plantão, respondi, com excitação. Aquela pergunta tinha me feito bem, me dava alguma chance.
- E no resto do dia?
- Tem mais três pessoas.
- Me diz uma coisa, disse, depois de um suspiro e chegando um pouco mais perto de mim. Todos os que telefonam estão querendo mesmo se matar? Isso saiu no jornal. É verdade?
- Bem, suspirei também, tentando dar um rumo para minhas palavras. Parecia que eu tinha achado um furo nele, um ponto de ligação com a maioria dos casos. Já começava a pensar que ele era um necessitado de nossa ajuda, do nosso Pronto Socorro Espiritual.

Ele não deixou continuar. Passou o cigarro para a mão esquerda e com a outra começou a me bolinar. Babava no meu ouvido que eu devia fechar a porta a chave, pois podia chegar alguém, desses teus colegas, com um revólver na mão, isso não seria bom para ninguém, pois tinha também um revólver e ia matar todo mundo que ficasse na frente dele. Respirava depressa, atropelando meu corpo, minha cuca. Eu já estava completamente pirada, não sabia mais o que fazer, pensava em morrer logo, porque me meti nesta barra, essas coisas. Fui me levantar para fechar a porta, mas estava paralisada. Tirou a mão de mim e explicou que não era nada disso do que eu estava pensando. Que tinha visto a notícia sobre nossa agência no jornal e que resolveu fazer uma experiência. Estava absolutamente normal na aparência e nos gestos, eu é que parecia uma louca daquele jeito, me mordendo, tremendo toda.

- Não vai ter um chilique agora, não é?
Parecia um professor. Pegou a garrafa de água que estava em cima da mesa, pôs no copo e me deu, com cortesia. Levei um susto quando o telefone tocou. Pegou meu braço numa chave, tirou o telefone do gancho , ligou o gravador. Repousou todo o corpo nas minhas costas, pôs o telefone na minha orelha, afastou meu cabelo para eu ouvir bem. Escutei uma vozinha do outro lado do fio, era de adolescente, voz de menina. Fui responder quando outra voz ao meu lado respondeu, metálica:
- Não tem ninguém aqui. Isto é uma gravação.
Clic do gravador. Blam do fone no gancho. Fiquei sem respirar. Fechei os olhos e vi a menina que fui, de vestido vermelho, rolando num precipício, num poço, num barranco sem fim.
Abri os olhos. Tudo continuava igual. Ele estava encostado na parede. Acendeu outro cigarro.

II

- Como é seu nome? perguntou e eu comecei a ficar com raiva de toda aquela situação. Meu braço doía muito, mas assim mesmo bati com a mão na mesa, me levantei e comecei a andar para a porta. Ele fez um barulho atrás de mim e senti o cano do revólver na nuca. Mas eu já estava mais à vontade, e resolvi apresentar outro lance. Suspirei para dar a impressão de estar de saco muito cheio, voltei para a cadeira, peguei meu cigarro na bolsa, acendi e disse:
- Vem cá, ô débil mental, qual é a tua?
Ele ficou meio roxo com a pergunta, mas continuei:
- Porra, arrebentar a vida desses coitados que telefonam para cá é muita covardia. Vem cá, tu apanhou do teu pai?
Tinha resolvido partir para cima dele, podia se amedrontar, entrar pelo cano comigo, com gravador, experiência e tudo. Ele continuava meio roxo, me olhando de lado. Parou de fumar. Tremeu todo quando o telefone tocou de novo, mas o barulho o recompôs, deu uma espécie de sorriso cheio de triunfo enquanto se atirava no aparelho. Atendeu dizendo bem depressa: “Não tem ninguém aqui, isto é uma gravação”, batendo o telefone e rindo sem parar. Tossia e coçava a cabeça com o revólver. Dei um pulo em direção à porta, mas um tiro arrebentou o vidro antes que eu encostasse a mão nela. Fiquei parada vendo o corredor vazio, os vidros pequenos indo em direção à escada, brilhavam parecendo pingos de água no sol.

Houve um silêncio, parecia que meu ouvido ia explodir com aquele peso no ar. Ele apertou meu pescoço com o braço e me arrastou para a cadeira.
Quando o telefone tocou mais uma vez, senti o revólver na minha fronte. Me apertou bem, estava suando. Disse baixinho que ia me matar.
- Tentou fugir de mim, eu sou um cara legal, ninguém pode fugir de mim.
Pôs a mão no meu ouvido, tapando o bocal e repetindo que ia me matar. Fechei os olhos e esperei. Ele disse:
- Pode atender agora.
Ia me deixar falar, posso dar um aviso, meu coração estava batendo demais, incômodo demais.
- Alô, disse eu, trêmula.
- Que brincadeira é essa? respondeu a mesma voz de menina. Pensei que fosse uma coisa séria esse negócio aí.
- Pois é, respondi, ele engatilhou a arma, levantei os olhos para aquela testa suada, tensa, excitada.
- Você está se sentindo mal?
Não respondi, engoli e tentei ser natural:
- Não, sabe o que é, fui me desculpando e me flagrando que, por vício estava tentando ser agradável com a consulente. Você é que deve estar com algum problema.
- Por quê você mudou de assunto? perguntou a menina e eu tive vontade de rir, pois me lembrei que deveria ser assim que eu falava quando tinha 12 anos, daquela maneira “dura”, pensando que estava impressionando muito, com a mão na cintura, toda metida.
- Por quê então você telefonou? gaguejei. Só para saber como era?
Não ouvi mais nada. Senti medo que ela tivesse saído correndo, como toda criança, que estava passando um trote e eu ali, desperdiçando minha última chance.
-Não é, voltou a voz e eu quase fiz um ahh: de alegria. Continuou dizendo:
- Queria era dizer uma poesia que eu fiz hoje, mas ninguém me deu bola. Meu irmão disse que eu era uma imbecil, só sabia ficar em casa e não tinha de me escutar. A mãe fez a comida e se mandou. Isso que ela prometeu me dar atenção depois do almoço. O pai, então, só faltou dormir em cima da mesa, nem ouviu o que eu disse. Não sei porque tanto onda com um poeminha, não leva nem dois segundos, quer escutar? Ou vocês também estão sem tempo?
Limpei o suor que me descia na cara, vinha lá da testa, me dando sensação de lágrima. Pensei que ela ia me perguntar se eu estava chorando. Eu estava emocionada com aquela vozinha, as pretensões dela e sentia inveja por ela ser livre daquilo tudo, de trabalhar, de atender pessoas loucas, de gastar amor com desconhecidos, para acabar assim, nas mãos de um assassino.
- Perdeu a língua? disse ela, bem desafinada. Você sabe que eu já fumo? Como é, vai me escutar ou não?
- Pode dizer, consegui responder, num arranque. Imediatamente ela falou do amor dela que não vinha e que ficava esperando sempre no terraço, rimava trança com dança, terraço com abraço, amor com dor. Não consegui entender direito porque eu já estava soluçando alto, pedindo que o cara me matasse de uma vez.

RETORNO - 1. (*) Conto publicado no final dos anos 70 no jornal Movimento e, nesta semana, no espaço Literário do Comunique-se. Faz parte do meu livro de contos "Mágico deserto", ainda inédito. 2. Imagem de hoje: desenho/pintura de Ricky Bols.

10 de setembro de 2008

O BATE-PRONTO DE SINISTRUS JOE


Estava precisando de um estoque de respostas desaforadas para enfrentar a pressão dos cretinos. Fui procurar um especialista no ramo, Sinistrus Joe, que de tanto sofer na mão dos malas acabou se recolhendo num puxadinho grudado em grande menir numa praia escondida aqui na ilha de Santa Catarina. Ele me recebeu friamente, como sempre, e foi logo me perguntando o que eu viera fazer ali. Joe era exímio no olhar “tu-por-aqui?”. Disse então o que eu queria e ele me propôs um jogo. Eu faria as perguntas cretinas e ele daria todas as respostas. Como tenho um bom acervo saindo pelo ladrão, de tanto que me enchem o ouvido, disparei:

- Joe, como estás pançudo. Por que engordaste tanto?
- Porque comi tua mãe e ainda não digeri.
- Estás trabalhando?
- Não preciso mais. Entrei na lista do mensalão.
- Lembro de ti sem cabelo branco.
- É que na época eu não pintava.
- Escrevendo muito?
- Parei com isso. Agora estou te imitando, virei analfabeto.
- Mas tu não eras poeta, porque escreves tanta prosa?
- Porque rimava com pateta. Agora rimo com gostosa. Falando nisso, como vai tua namorada?
- Não achas que precisas caminhar?
- Não. Meu objetivo é rolar. Daqui a um ano consigo.
- Estás lançando livro novo?
- Não. Vais ter que comprar o velho.
- Blog não é coisa para adolescente?
- É verdade. É a chance que eu tenho de ser malcriado.
- Lembra do Fulano, aquele que foi teu chefe?
- Lembro que ele deu um desfalque. Por que pergunta, estás na folha de pagamento dele?
- A porta do teu carro está aberta, por que não fechas?
- Não tinha notado. Mas fica tranqüilo, da próxima vez prometo evitar teu pânico.
- O senhor é daqui?
- Não, eu sou de lá. Vim para cá só para te encher o saco.
- Já se aposentou?
- Ainda falta trabalhar uns três anos na minha especialidade, o de comedor de cu. Depois me aposento, mas vou continuar na ativa, se te interessa saber.
- Foste para o Sul?
- Claro. Lá pelo menos os animais não falam.
- Quando chegaste e quanto tu vais?
- Cheguei para dar trabalho e vou à merda. Quer ir junto?

Me dei por satisfeito. Memorizei todas e vou aplicar logo que tenha oportunidade. Mas no momento em que me retirava, escutei um psiu. Era Joe:
- Tchê, escritor. Tu anda armado?
- Eu não, ta louco? É proibido e não sei lidar com isso.
- Então manera nas respostas. Senão eles vão te pegar.

É verdade. Mas decidi que iria responder assim mesmo. Depois, era só se dar o trabalho de sair disparando.

RETORNO - Imagem de hoje: quadro de Botero.

9 de setembro de 2008

FALSO PACIFISMO


Nei Duclós (*)

A ascensão do candidato democrata Barak Obama na campanha eleitoral americana coincide, no cinema, com uma série de filmes que pretendem enterrar a era Bush, a tirania gerada a partir do atentado de 11 de setembro de 2001. Existem filmes que se dedicam aos bastidores da mídia e da política, como "Leões e Cordeiros", do militante Robert Redford, uma denúncia do oportunismo alimentando os conflitos fora das fronteiras. Ou "War, Inc.", de Joshua Seftel e roteiro de John Cusack, baseado no livro sobre economia de choque da jornalista canadense Naomi Klein, um escracho contra a manipulação corporativa da guerra do Iraque. Mas o tema mais recorrente é a volta dos bravos rapazes de um front duvidoso para a América arrasada economicamente.

Dois filmes, com antecedentes ilustres, marcam essa tendência: “Stop Loss – A Lei da Guerra” (2008), de Kimberly Peirce, sobre o Iraque, e “Harsh Times -Tempos de Violência” (2005), de David Ayer, sobre o Afeganistão. Seus modelos são antigos sucessos, como “Nascido em 4 de julho” (1989), de Oliver Stone e “Amargo Regresso” (1978), de Hal Ashby, sobre o Vietnã. Ex-combatentes desamparados mergulham em pesadelos e horrores. Se a guerra não se justifica (Vietnã), ou se é “necessária” (Iraque), o que essas obras destacam são a sobrevivência dos valores da América em meio aos erros imperdoáveis dos mandatários.

No fundo, os motivos da carnificina não importam. Os Estados Unidos continuam enviando tropas para onde bem entenderem, já que as críticas coniventes acabam reiterando o que pretensamente condenam. O que vale é cuidar dos rapazes, para não desmoralizar o sistema, acima das gestões presidenciais. Os mariners que se afogam em álcool e violência no filme de Kimberley Pierce precisam de apoio, de colo. Não se deve dar as costas para os heróis, senão eles fatalmente vão morrer no final, como acontece com o personagem Jim Davis, interpretado por Christian Dale em “Tempos de Violência”. É preciso encontrar motivos para a América não perder seu foco, o de exemplo mundial de correção, poder e ética.

O perigo é a produção de filmes como “No vale das sombras” (2007), de Paul Haggis, com Tommy Lee Jones e Susan Sarandon. A história do bom rapaz que virou torturador, um assassino de cidadãos desarmados no Iraque, e que ao voltar é assassinado pelos companheiros de quartel, é uma denúncia difícil de engolir, para os padrões imperiais. Significa que o mal está dentro de casa e não fora dela. Que existem interesses que passam por cima da cidadania e transformam pessoas pacíficas em bandidos.

O mesmo David Ayer, que em Harsh Times pune o protagonista suicida incapaz de retomar a guerra num novo ambiente, a Colômbia, volta à carga num impressionante relato sobre a polícia de Los Angeles, “Os reis da rua (Street Kings)”. A exemplo de “O Poderoso Chefão III”, de Francis Ford Coppola, que aponta o sistema legal como a maior de todas as máfias, a nova obra de Ayer coloca o herói americano a serviço involuntário de grandes interesses. O verdadeiro poder que joga todo mundo na lama tem a cara inocente das pessoas confiáveis. Eles abanam do palanque e fingem identificar alguém na multidão. É o velho truque dos demagogos.

Quando apontam, sorridentes, para o indivíduo virtual, que não existe, estão enxergando apenas a massa de manobra para o que jamais confessam inteiramente. O talento deve dar o flagrante com antecedência para não lamentar depois que o estrago está feito.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 9 de setembro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: John Cusack em War, Inc., filme totalmente baseado (sem dar o devido crédito) em livro de Naomi Klein. 3. Os bonzinhos que não passam de safados se aproveitam da atual onda do relativismo, onde tudo pode. Juliana Duclós, ao fazer no seu blog excelente análise sobre desenhos infantis, detona essa tendência com seu post "O bom é do bem. E o mau é do Mal.". Vale a pena ler. A data é desta terça-feira, dia 9/11/2008. 4. Tem dia em que mais 300 páginas deste blog são visitadas. No topo das preferências estão os textos que tem como título a pergunta "O que é?". Democracia, reportagem etc: assim difundo conceitos pessoais sobre temas clássicos. Em compensação, só meia dúzia, valiosa e valorosa, comenta. Os outros acessam e não deixam pistas. Assim não vale. Retorno é fundamental.

8 de setembro de 2008

UMBU, SOLITÁRIA ESTRELA




Nei Duclós

Umbu, solitária estrela
No descampado universo
Procura arrimo na cerca
No braço seco de pedra

É feito nós, penetras
Na criação que faz festa
Céu azul que se despe
Grama assumindo sépia

Hirtos, somos o pânico
No pampa que nos invoca
Troncos tortos de pássaros
Galhos formando garras

Esse é o aceno do tempo
Que de repente se cala
Um lenço no pastoreio
Um olho preso no nada

Única lenha que sobra
Porque ao fogo se nega
É como tropa de espera
De uma terra teimosa

Árvore que nunca se dobra
Plantada em rincão deserto
Somos nós essa quebrada
Onde gaudérios se aquietam

É ali, na curva da estrada
Que confluem os fantasmas
Retinem ruído de esporas
Rodeiam cuias amargas

São a sombra dos antigos
Que reforçam sentinelas
Um rosto velando lanças
Um brilho feio de adagas

RETORNO – Imagem de hoje: mais um lance do fotógrafo maior da fronteira, Anderson Petroceli.

NOITE DE GALA NO DIA DA PÁTRIA


Todos viram o que aconteceu. Graças ao Galvão Bueno e seu acólito, o presidente da República, que fritaram a seleção antes de Dunga entrar em campo com sua equipe, o Brasil fez três a zero no Chile num estádio lotado e ascendeu para a segunda colocação das eliminatórias. Por ser noite na Pátria, os oportunistas assumem o papel de feitores de escravos que puxam a orelha dos negros, obrigando-os a tomar uma “atitude”, a palavra mais repetida pela transmissão da Globo. Atitude um bom cacete. O Brasil jogou o fino, com o talento dos seus jogadores e a estratégia vencedora de Dunga.

É que os brasileiros ficam de braços cruzados em campo, como disse Lula na véspera do jogo, ao contrário desses fenômenos, os argentinos, tão admirados pelo traidor do Palácio do Planalto. O vendilhão emitiu opiniões de pinguço de arquibancada antes que a seleção canarinho, capitaneada por Dunga, campeã da Copa América e medalhista olímpica em Pequim, mostrasse mais uma vez a hegemonia do futebol brasileiro.

Foi um formidável sete de setembro. Data esquecida pela mídia e vilipendiada pelos ignorantes de sempre, que costumam resgatar o anedotário de Dom Pedro I antes de proclamar a Independência, o dia maior do Brasil que trazemos dentro de nós foi homenageado pelos jogadores. Talvez tenha sido o hino nacional mais difícil de cantar em toda a história. Os craques fecharam os olhos e se concentraram na letra, enquanto esses energúmenos, os chilenos, vaiavam e gritavam, demonstrando falta de respeito com os pentacampeões do mundo.

O ódio ao Brasil é inoculado desde o berço nessas nações que nos rodeiam (depois falam em “America Nuestra, sin fronteras”, essa idiotia anti-nação). O futebol chileno, velho freguês, não tem competência para nos enfrentar por falta de território e talento. Insuflados por uma imprensa pagã, a platéia adorava o bezerro de ouro fictício de uma pretensa hegemonia (queriam liderar a tabela depois de nos vencer, quá quá quá). Era só ver como chegaram rodeando sobre o próprio eixo, para imitar Robinho, sem saber que nosso genial craque apenas confunde a percepção do adversário e sua dança não é nenhuma firula.

Os chilenos e todos os países castelhanos querem ocupar o papel da Argentina, o de segunda força do futebol do continente. Pois sabem que jamais chegarão às nossas alturas. Por isso clonam a correria dos portenhos, mas estes dispõem da precisão do relógio cuco, então às vezes se sobressaem, para deslumbre dos cafagestes, mas são capazes ficar 15 anos sem ganhar nada, como aconteceu desde 1993 até Pequim. Os chilenos não são do ramo. Querem ser o que jamais vão aprender a ser. Jogam futebol como produzem pêssegos inchados, vistosos por fora e com gosto de isopor. Ou como os vinhos deles, cada vez mais intragáveis à medida em que ganham fama.

Nosso problema não são os outros, mas nós mesmos, os que aqui dentro cospem na seleção, que estava por um fio. Lula chegou a elaborar uma volta de Luxemburgo, patrão do filho dele, presidente, no Palmeiras. É assim que se comportam os falsos estadistas brasileiros. Sorte que a pressão presidencial teve uma resposta à altura do goleiro Julio César, que subiu no meu conceito e não tomou nenhum gol na partida contra o Chile. “Por que não emigra para a Argentina, já que gosta tanto deles? Talvez o país melhore”, disse o goleirão, para aplauso de quem não engole traições de primeira ou última hora.

Porque é isso que são, traidores, vendilhões da Pátria. Entregaram o país de mão beijada e são os primeiros a abandonar nossa representação maior, a seleção pentacampeã, à própria sorte quando surgem as primeiras dificuldades. Se você está na estrada ao lado do motorista, e o trânsito está ruim, chove e venta, você não vai ficar malhando o cara do volante, você vai dar força para ele, vai apoiá-lo, vai confiar. Você não está no comando da seleção, portanto torça por ela. Seja patriota e não faça pouco do suor abundante dos corpos dos jogadores, que se matam em campo.

Jogo da seleção não é futebol, é compromisso. Ainda mais no sete de setembro. Três a zero na noite de gala do dia da Pátria.

RETORNO - A imprensa fritadora e anti-Brasil não se dá por achado. Assim como Galvão Bueno e seu assecla, o Falcão, se atribuíram todos os méritos da vitória de Dunga, dizendo que a equipe tomou atitude depois de ser cobrada (por eles, o donos da verdade), o que é de um oportunismo canalha sem fim (jamais fazem autocrítica, jamais dizem: estávamos errados!), temos também o exemplo do enviado especial a Santiago pela Folha de S. Paulo. Vejam o que o cara escreveu antes do jogo: " A seleção brasileira põe em jogo hoje, em Santiago, contra o Chile às 22h, o limite do técnico Dunga e da mediocridade." Pois o limitado "gaúcho" (como eles tem medo dessa palavra! como debocham!) venceu com folga e deu show. O que disse então o rapaz da Folha?

Vejam: "Nada como um jogo contra o Chile para fazer a vida do técnico Dunga bem mais fácil. Contra seu maior freguês sob o comando do treinador gaúcho, o Brasil venceu ontem, em Santiago, a seleção chilena por 3 a 0...". Ou seja, a vitória antes do jogo era uma questão de vida ou morte, contra esse portento, o Chile (Valdívia, essa coisa fofa, foi tratado com respeito pela reportagem ). Depois do jogo, era, claro, favas contadas, até a vovózinha fazia. Ué, Dunga continua sendo medíocre? Ora, vão cagar pedra.

Se Dunga tivesse colocado três atacantes contra a Argentina em Pequim, seria fritado da mesma forma (vejam, ele deixou a guarda aberta!). Não admitem a derrota de um técnico lutador, que na partida seguinte pode vencer, dar a volta por cima porque tem competência e não é o animal tosco que pintam. Galvão Bueno disse que o Brasil há tempos não ganhava com um placar desses. Em Pequim ganhamos partida por cinco a zero, mas isso não conta, claro. Pulhas.