22 de abril de 2008

ACIMA DAS ÁGUAS


Nei Duclós (*)

Idéias fixas jamais cedem. Uma é a de que o Sul precisa ser um país à parte, já que o resto do Brasil não teve a “sorte” de ser colonizado por povos considerados mais nobres. Ou que devemos prestar tributo apenas aos ascendentes europeus, esquecendo os índios, que ensinaram a sobrevivência aos invasores, e com eles se confundiram, como notam Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro.

Um dia reagi às queixas dos paulistas sobre os nordestinos. Um empresário em Piracicaba colocava a causa de todos os males nas pessoas vindas de fora para trabalhar na construção civil. Agora elas roubam, matam e vivem nas favelas que antes não existiam, dizia o empresário. Perguntei: vieram de livre espontânea vontade? Por que acorreram em massa para cá? Não, foram chamados e conduzidos até o canteiro de obras.

Teria havido algum planejamento para aqueles trabalhadores? Uma agenda social e econômica para absorver os novos contingentes? Respondeu também que não. Você queria então que eles simplesmente voltassem? No momento em que o lugar lhes vira as costas, a responsabilidade não deveria ser repartida?

O hábito de culpar os adventícios faz parte do obscurantismo e está mais presente do que nunca. Vimos em “Zorba, o Grego”, o clássico de Michael Cacoyannis, como as pessoas da ilha de Creta se justificavam ao pilhar os pertences da francesa moribunda. Ela não era “daqui”, diziam, e os bens ficariam nas mãos do governo. Isso seria uma injustiça, pois os habitantes do lugar eram pobres e precisavam do saque. A xenofobia pode levar ao crime se ninguém despertar a tempo para o perigo.

As idéias fixas tornam nebulosa a percepção sobre eventos importantes. Abandoná-las pode gerar boas surpresas. Guga, por exemplo, que encerra sua carreira brilhante, oferece uma boa oportunidade de exercermos a liberdade do olhar. Sem tirar o mérito de que ele é soma e síntese da cidade que o gerou, Guga pode ser identificado com o fim do isolamento de Florianópolis e a inauguração de uma outra realidade. Tudo mudou depois que Guga ganhou o primeiro Garros. E mudou para sempre e de forma radical agora que ele abandona oficialmente as quadras.

Sua missão extrapola a afirmação dos limites que o geraram. É, antes, uma superação. Guga é ponte entre ilha e continente, é o amor por este lugar, para onde vieram todos, prisioneiros do encantamento da paisagem e do povo, e do seu arauto de raquete em punho. Esse amor ajudou a transformar Desterro e a lança para o futuro. Mais gente, novas soluções, talvez até a implantação dos velozes Trams, os bondes super modernos, que correm velozes pelas ruas de Amsterdam.

Não há motivos para achar que cada recanto deva impor suas qualidades por exclusão. Ninguém é melhor por motivo de raça ou origem, mas todos são ótimos por pertencerem a um projeto maior, complicado, contraditório e por isso mesmo gratificante. O que importa é se situar acima das divisões internas. Kirk Douglas chamava-se Issur Danielovitch Demsky. Era o mais americano dos atores. Aqui, 200 anos de permanência no país não bastam. Quantos séculos ainda são necessários para assumir a “nova” nacionalidade?

Tenha olho puxado, cabelo preto ou cor de cenoura, qualquer indivíduo do país, que vai para o Exterior, é identificado logo. É o jeito de andar, de falar, de viver. É isso o que somos, brasileiros. Puríssimos, como o sorriso de Guga, que navega acima de todas as águas.

RETORNO - (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 22 de abril de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense.

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