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8 de janeiro de 2008
CRIMES DE AREIA
Nei Duclós (*)
O guardador de carros mexe com uma série de conceitos formadores da nacionalidade. Um deles é de que o detentor da carruagem estacionada tem à disposição um escravo para cuidar do veículo enquanto toma um banho de mar. Não é outro o motivo do estardalhaço que o motorista faz com o flanelinha depois de lhe repassar uns trocados. O falso servo escancara o sorriso e dispara uma série de cumprimentos da hora, desses em que as pessoas se soqueiam para demonstrar apreço (o velho aperto de mão foi substituído pela luta livre).
A essência da atividade é a chantagem. Ou você paga para estacionar na rua construída com o dinheiro dos impostos, ou seja, ou você compactua com mais uma privatização do espaço público, ou terá seu carro arranhado. É politicamente incorreto reclamar contra esse tipo de abuso, pois a idéia que se faz de distribuição de renda no Brasil é por meios ilícitos. “Meu cartão de crédito é uma navalha” dizia o celebrado Cazuza, arrancando manifestações de delírios de aprovação das platéias.
No fundo, paga-se o meliante para evitar aborrecimento. São apenas alguns poucos dias na praia, para que se incomodar? E assim, uma prática que se consolidou em metrópoles atulhadas chegou enfim à ilha, com a conivência geral. O recado é simples: você é um privilegiado por ter carro, por isso paga o pedágio da miséria. Joga-se com a culpa, pois conseguir atender uma necessidade é sintoma de conivência com o crime da má distribuição de renda, o que coloca o Brasil, potência econômica, no rabo das listas de qualidade humana. A nação é um colosso, mas inabitável.
Já que não existe nenhuma espécie de preocupação pelo ofício que se instala e que coloca centenas de pessoas sob o jugo de apenas um algoz, armado da mais completa cara de pau, então tudo pode. É permitido, por exemplo, jogar interminavelmente frescobol entre os banhistas. Em todas as outras modalidades esportivas, inclusive futebol de areia, existe uma quadra, mas os praticantes de frescobol escolheram o planeta inteiro como sua arena. O bate-rebate é como o pingo d´água das torturas. Como vingança, sempre imagino os jogadores usando a própria cabeça nas raquetes.
Quem leva qualquer espécie de bola para a praia e joga em local proibido para a prática de esportes tem apenas um objetivo: acertar os outros. Todos aqueles dribles, gritos, pulos, são pura encenação. A meta é atingir quem está fora do jogo, normalmente crianças, senhoras sentadas, anciãos desprevenidos. Certa vez, um pai “amigão”, que castiga a redonda para expressar proximidade com o “filhão”, chegou a pegar a bola, soltá-la miseravelmente e encher o pé em direção a um transeunte desavisado. Por sorte o petardo desviou-se rumo ao mar. Mas a vítima chegou a se abaixar, temendo o pior.
São crimes desconsiderados, já que não geram ocorrências nem vão parar na Justiça. Mas expressam o clima de violência embutida nos hábitos mais simples, como o de dirigir-se ao mar. Na areia, é possível ver como os cachorros sarnentos, abandonados e famintos, se refestelam no meio da criançada sem que ninguém os espante. Vivemos num país imóvel, que ao exercer algum movimento se estatela em estradas lotadas e ultrapassagens suicidas.
No Brasil, ninguém se mexe e quem se mexe leva chumbo. Por isso os flanelinhas fazem a festa e os boleiros atormentam multidões. Isso quando não ligam o som em alturas insuportáveis, para atordoar a cidadania.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neta terça-feira no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Regina Agrella.
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