23 de outubro de 2007

BONS SENTIMENTOS

Nei Duclós (*)

O estímulo aos bons sentimentos entope a mídia de amor, amizade, alegria, esperança. Mas fecham-se as cortinas dos comerciais e o noticiário assoma com as estatísticas do trânsito. As mortes em série nas estradas e ruas revelam a tendência coletiva ao suicídio, que é a maneira mais prática (só depende de um agente) de eliminar qualquer tipo de convivência. Talvez o transtorno não seja a existência do Próximo – sempre no lugar errado, concorrendo em todos os detalhes – mas nossa impossibilidade de lidar com o obstáculo irremovível, nós mesmos.

Longe de mim cair na tentação de terceirizar a culpa de todos os males ao foro íntimo da população desarmada (ou inerme, como queria a literatura antiga de caserna). Mas imagino que jogar uma carreta na contramão na descida da serra não seja a vontade de matar quem está na frente, mas algo que se situa um passo a menos. É a determinação de sumir do mapa, mesmo à custa da vida alheia, de se livrar do País continental, que nos cerca com sua inviabilidade crônica.O Brasil não oferece o refresco de cruzarmos a pé a fronteira para espairecer no estrangeiro, com raras exceções.

Não somos muito afortunados em lugares habitáveis no abraço geográfico com os inquilinos do continente. Ou é um rio que está lá como foi feito na Criação (com mais sujeira, menos água e menos peixe). Ou existe apenas a mata fechada onde mora o Medo da natureza intocada e feroz. Ou temos de enfrentar as linhas imaginárias que abraçam interesses, aí sim, armados até o pescoço. Difícil (mas não impossível) é encontrar um lugar de fronteira que seja aprazível. O que vigora são as ameaças de lugares cheios de transgressões.

Sem saída, a não ser pelo aeroporto, quando vemos que estes sofrem também de precariedade endêmica, há um desespero no afunilamento da fuga para um lugar fora daqui. Vemos os brasileiros enfrentarem o deserto, os muros, os guardas para colocar o pé ilegalmente na América. Chove casos de brasileiros assassinados no Exterior, como a cumprirem uma sina de suplícios sem solução à vista. Afora as vitórias comerciais, o Brasil participa do concerto internacional das nações com as partes mais frágeis: a criança nos mercados sinistros, homens e mulheres em todos os tipos de prostituição, a migração ilegal de massa na mão de grossa bandidagem.

A overdose de bons sentimentos parece assim ficar restrita aos ditames das trocas de favores entre produtos e consumidores. O álibi seria estimular o Bem para que o Mal, provocado, claro, por pessoas como nós, ceda finalmente. Se você sorrir no trabalho, abraçar sua companhia, brincar com a garotada e comprar o mundo sem que a conta apareça jamais na tela, então é porque há uma chance de salvação. Basta inventar esse Outro que aparece nos reclames – o pai amigão, a dona de casa com carinha de 15 anos abraçando uma filharada, os vovôs sem as responsabilidades da sua experiência e sabedoria, e pronto.

A violência e a indiferença somem por encanto. Pelo menos até o final do feriadão, ou mesmo nos dias normais, em que um acidente atropela o outro, como se o recado do nosso desespero precisasse de replay.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 23 de outubro de 2007, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Meninos da República, por Marcelo Min. Leia a reportagem de Marcelo e Luciana Benatti sobre o abandono da infância no país dos bons sentimentos.

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