27 de junho de 2007

O LIMBO É REAL



Nei Duclós


A chamada realidade é algo “fora” de nós. Um filme “baseado em fatos reais” é sempre uma armadilha, já que toda representação é uma obra interior, fruto da percepção. Nessa arapuca se enrodilhou a História por muito tempo, até que as escolas dessa ciência abriram inúmeras janelas para o conhecimento. O que chamam de micro-história, ou história das mentalidades, e seus desdobramentos, são, no fundo, uma forma de colocar no seu devido lugar a realidade consensual, aquela soma de eventos definitivos que formatariam nações e épocas.

O cinema pode ir mais fundo: abordar essa realidade pela ausência, ou melhor, conseguir desvendá-la colocando uma cortina divisória entre o que se passa no céu ou no inferno da realidade hegemônica das representações coletivas, e privilegiar o limbo, aquele não-lugar que a inocência (a dos cidadãos comuns) ocupa quando se vê desprovida de culpa e de batismo (o envolvimento direto com os “fatos”). O filme maravilhoso e imprescindível que é O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, tem essa qualidade.

O que oculta (e por tabela, mostra) essa obra que arrebatou os críticos (com meu amigo Luiz Carlos Merten, do Estadão, à frente)? Ela esconde, para revelar, do protagonista Mauro, de 11 anos, o que se passou com os pais e o país. Mauro está envolvido na História oficial: a Copa de 1970, que aguarda como um sinal de que os pais irão voltar, conforme promessa feita antes da separação. O que não enxerga (e o que o filme só aponta em alguns insights) é a fonte da sua dor, ou seja, a repressão que se abateu no Brasil na primeira fase da ditadura, a dos militares. Isso é assunto para os adultos, que confabulam fora do quadro, olhando para a orfandade súbita do menino.

Mauro está no limbo: não passou pela circuncisão, ou seja, não é judeu (numa metáfora propositalmente inapropriada, já que o limbo é um conceito católico, mas que aqui serve como referência); não tem vida escolar, pois está só na casa do avô morto; não sabe seu lugar no time de futebol na rua e prefere jogar botão, onde o goleiro, a testemunha solitária do jogo, é o destaque; espera desesperado a volta da sua família, enquanto se ocupa de atividades efêmeras, como espiar as mulheres numa loja de roupas; sofre a presença de um desconhecido, o vizinho judeu do seu avô que o trata com secura e rispidez; faz o sinal da cruz imitando o goleiro do seu time, gesto que é punido com um safanão pela comunidade judaica. No céu ele não está, pois liga para sua casa em Belo Horizonte e ninguém atende; e nem no inferno, pois consegue se distrair com roupas e fotos antigas e faz amizade com a meninada do bairro. Está no limbo, sozinho, e essa é sua realidade.

Mas o limbo guarda a esperança de uma redenção (a volta dos pais). Enquanto essa não vem, resta-lhe o consolo da Copa do Mundo, quando fomos tricampeões. Mas a coincidência entre a vitória final no México e a notícia de que seu pai não iria voltar é o confronto mais memorável do filme, que faz assim uma denúncia pelo avesso, sem cair no lugar comum da catequese política.

Entre tantas qualidades, o filme ainda dá uma lição de como se deve filmar a repressão, por meio de uma cena de prisão de militantes que deixa no chinelo o que se fez até aqui. Costuma-se, no cinema nacional, pecar pelo anacronismo: sempre há a evidência de que pessoas e fatos atuais se interpõem no resgate da violência dos anos 60 e 70. Fica tudo muito falso, o que não ocorre com este filme, esmerado nos detalhes, eficiente nas ações, emocionante na costura de gestos e rostos.

O conceito de limbo está na pauta desde que o Papa confirmou parecer de uma comissão teológica (para a fúria dos conservadores) de que trata-se de uma hipótese, não um dogma. O menino Mauro, protagonista desse grande filme, navega na confirmação do seu isolamento e nos convence do dogma de sua danação. Do bairro do Bom Retiro (não por acaso, retiro nos remete ao limbo), ele parte para o exílio, órfão de pai, um guerreiro que enfrentou a realidade oficial. Descobriu que esse estado em que se encontrava, de solidão e amadurecimento, iria lhe acompanhar por toda a vida.

Obra de um país temperado pela dor e pela sofrida reinvenção da alegria, “O ano em que meus pais saíram de férias” insere-se na grande cinematografia nacional e internacional contemporânea. É como um goleiro, que não participa do jogo até ser convocado para o vôo. Quando pula no abismo, levantamos da arquibancada. Esse é o gol que merecemos, a vitória que nos redime, a taça que levamos pelo Tempo sem que ninguém tenha a oportunidade de roubá-la.


RETORNO - Imagem de hoje: Michel Joelsas( Mauro) em "O ano em que meus pais saíram de férias". O filme tem maravilhosos atores. Além de Michel, Germano Haiut (Shlomo, perfeito), Daniela Piepszyk (Hanna, muito mais do que uma promessa), Caio Blat (Ítalo), Paulo Autran (Mótel), Simone Spoladore (Bia), Eduardo Moreira (Daniel), Liliana Castro (Irene) .

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