27 de junho de 2007

O LIMBO É REAL



Nei Duclós


A chamada realidade é algo “fora” de nós. Um filme “baseado em fatos reais” é sempre uma armadilha, já que toda representação é uma obra interior, fruto da percepção. Nessa arapuca se enrodilhou a História por muito tempo, até que as escolas dessa ciência abriram inúmeras janelas para o conhecimento. O que chamam de micro-história, ou história das mentalidades, e seus desdobramentos, são, no fundo, uma forma de colocar no seu devido lugar a realidade consensual, aquela soma de eventos definitivos que formatariam nações e épocas.

O cinema pode ir mais fundo: abordar essa realidade pela ausência, ou melhor, conseguir desvendá-la colocando uma cortina divisória entre o que se passa no céu ou no inferno da realidade hegemônica das representações coletivas, e privilegiar o limbo, aquele não-lugar que a inocência (a dos cidadãos comuns) ocupa quando se vê desprovida de culpa e de batismo (o envolvimento direto com os “fatos”). O filme maravilhoso e imprescindível que é O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger, tem essa qualidade.

O que oculta (e por tabela, mostra) essa obra que arrebatou os críticos (com meu amigo Luiz Carlos Merten, do Estadão, à frente)? Ela esconde, para revelar, do protagonista Mauro, de 11 anos, o que se passou com os pais e o país. Mauro está envolvido na História oficial: a Copa de 1970, que aguarda como um sinal de que os pais irão voltar, conforme promessa feita antes da separação. O que não enxerga (e o que o filme só aponta em alguns insights) é a fonte da sua dor, ou seja, a repressão que se abateu no Brasil na primeira fase da ditadura, a dos militares. Isso é assunto para os adultos, que confabulam fora do quadro, olhando para a orfandade súbita do menino.

Mauro está no limbo: não passou pela circuncisão, ou seja, não é judeu (numa metáfora propositalmente inapropriada, já que o limbo é um conceito católico, mas que aqui serve como referência); não tem vida escolar, pois está só na casa do avô morto; não sabe seu lugar no time de futebol na rua e prefere jogar botão, onde o goleiro, a testemunha solitária do jogo, é o destaque; espera desesperado a volta da sua família, enquanto se ocupa de atividades efêmeras, como espiar as mulheres numa loja de roupas; sofre a presença de um desconhecido, o vizinho judeu do seu avô que o trata com secura e rispidez; faz o sinal da cruz imitando o goleiro do seu time, gesto que é punido com um safanão pela comunidade judaica. No céu ele não está, pois liga para sua casa em Belo Horizonte e ninguém atende; e nem no inferno, pois consegue se distrair com roupas e fotos antigas e faz amizade com a meninada do bairro. Está no limbo, sozinho, e essa é sua realidade.

Mas o limbo guarda a esperança de uma redenção (a volta dos pais). Enquanto essa não vem, resta-lhe o consolo da Copa do Mundo, quando fomos tricampeões. Mas a coincidência entre a vitória final no México e a notícia de que seu pai não iria voltar é o confronto mais memorável do filme, que faz assim uma denúncia pelo avesso, sem cair no lugar comum da catequese política.

Entre tantas qualidades, o filme ainda dá uma lição de como se deve filmar a repressão, por meio de uma cena de prisão de militantes que deixa no chinelo o que se fez até aqui. Costuma-se, no cinema nacional, pecar pelo anacronismo: sempre há a evidência de que pessoas e fatos atuais se interpõem no resgate da violência dos anos 60 e 70. Fica tudo muito falso, o que não ocorre com este filme, esmerado nos detalhes, eficiente nas ações, emocionante na costura de gestos e rostos.

O conceito de limbo está na pauta desde que o Papa confirmou parecer de uma comissão teológica (para a fúria dos conservadores) de que trata-se de uma hipótese, não um dogma. O menino Mauro, protagonista desse grande filme, navega na confirmação do seu isolamento e nos convence do dogma de sua danação. Do bairro do Bom Retiro (não por acaso, retiro nos remete ao limbo), ele parte para o exílio, órfão de pai, um guerreiro que enfrentou a realidade oficial. Descobriu que esse estado em que se encontrava, de solidão e amadurecimento, iria lhe acompanhar por toda a vida.

Obra de um país temperado pela dor e pela sofrida reinvenção da alegria, “O ano em que meus pais saíram de férias” insere-se na grande cinematografia nacional e internacional contemporânea. É como um goleiro, que não participa do jogo até ser convocado para o vôo. Quando pula no abismo, levantamos da arquibancada. Esse é o gol que merecemos, a vitória que nos redime, a taça que levamos pelo Tempo sem que ninguém tenha a oportunidade de roubá-la.


RETORNO - Imagem de hoje: Michel Joelsas( Mauro) em "O ano em que meus pais saíram de férias". O filme tem maravilhosos atores. Além de Michel, Germano Haiut (Shlomo, perfeito), Daniela Piepszyk (Hanna, muito mais do que uma promessa), Caio Blat (Ítalo), Paulo Autran (Mótel), Simone Spoladore (Bia), Eduardo Moreira (Daniel), Liliana Castro (Irene) .

25 de junho de 2007

O ANTI-VIDAS SECAS


Cinema, aspirinas e urubus, o premiado filme do pernambucano Marcelo Gomes, é como se o pai de família de Vidas Secas, sobrevivente na sua retirada em direção ao sul, encontrasse uma saída: o estrangeiro que chega com uma nova tecnologia, a aspirina (contra “todos os males”, ou seja, a solução final) e a dissemina pela população pobre usando um poderoso instrumento de marketing, o filme de publicidade comercial, ou seja, política.

O alemão Johann repassa para o retirante Ranulpho toda a tralha com que investiu no sertão (o mesmo cenário de Vidas Secas): um carro potente, a própria aspirina, o projetor, os rolos de filmes. O nordestino, até então azedo pela desesperança de morar num buraco e não conseguir sair dele, encontra enfim da felicidade, a herança que o estrangeiro lhe deixou em mãos. É um filme ideológico, que limpa a narrativa até o osso para poder usá-la em benefício de um determinado enfoque histórico e social.

O início do filme fornece a chave para decifrar o enigma. No sertão duro e cru, encontra um lugar a imagem do alemão que fugiu da guerra (seu rosto refletido no espelho do carro em contraposição à luz estourada do Cinema novo). Ele tenta fazer a vida vendendo a panacéia para os desesperados (supérflua, já que reconhece que os fregueses vão inventar a dor-de-cabeça só para tomar o novo remédio). Se Vidas Secas é denúncia (a miséria produzida pela exclusão social e o latifúndio), Aspirinas é pura propaganda (entregue-se ao que é estrangeiro para sair desse impasse).

E propaganda pesada, totalmente anti-Brasil. Em pleno Estado Novo, a agressão nazista recebe como resposta do governo Getúlio Vargas (jamais citado no filme) a declaração de guerra. Seria um governo soberano tomando posição no conflito mundial? Não, apenas isso: seria a intolerância, à moda nazista, chegando aos confins do país continente. Pois Johann vê-se encurralado pela decisão de o governo brasileiro “mandar para os campos de concentração” os alemães que estão no país. Sabemos que não foi nada disso. Getúlio impediu que os descendentes germânicos, que estava no Brasil desde 1824, continuassem a criar guetos racistas, onde ensinavam suas crianças apenas a língua do país de origem e jamais o português. As ações de intolerância, que existiram, não devem ser atribuídas às determinações oficiais.

Mas fica o não acontecido como verdade absoluta. O filme assim se insere na insidiosa calúnia histórica contra Getúlio Vargas, reforçada pelo envio de nordestinos para a Amazônia. Este seria mais um ato infame do governo, segundo a abordagem do filme. Para a selva se dirige o acuado Johann, depois de jogar seus documentos, passaporte incluído, na caatinga, sob a guarda das cascavéis. A maneira como o roteiro costura os campos de concentração à migração forçada para a Amazônia fazem de toda obra mais uma ferramenta para destruir a imagem e a herança de Getúlio Vargas. Sabendo que o filme foi generosamente cacifado pelas instituições do governo atual e do mercado financeiro, podemos também fazer nossa costura: trata-se de mais marketing contra a soberania nacional e a experiência getulista de 1930 a 1954.

Mas isso nem de perto passa pelos críticos, deslumbrados com o enxugamento das cenas, com a precisão dos detalhes, com a aparente grandeza da obra. Não se pode apontar o óbvio enfoque ideológico sob pena de estarmos cometendo “injustiça”. Ora, é apenas um filme. Ora, a narrativa se sustenta por si só. Ora, que história é essa de achar que se trata de mais uma peça publicitária anti-Brasil? Que mania de achar defeito em tudo!

Pois é apenas isso. Uma peça de propaganda muito mais poderosa do que os filmes do DIP. Estes, criavam a imagem de um governo sólido num país independente. Por mais criticáveis que fossem, eram peças transparentes, de propaganda oficial. Urubus vai mais fundo: é propaganda muito bem elaborada contra a histórica decisão de lutarmos contra o nazi-fascismo. Ao nos opormos a Hitler e Mussolini, não absorvemos suas ideologias nem suas práticas. Ao contrário: mandamos nossos compatriotas para lutarem na Europa. O sangue dos heróis serviu para retaliar o ataque nazista aos navios brasileiros (uma coisa que nunca me passou pela goela; para mim, foi tudo armação, para forçar o país a entrar no conflito). Mas em Aspirinas, serviu para perseguir inocentes. Até quando essas mentiras serão encaradas como coisa normal?


RETORNO - Imagem de hoje: Johann e Ranulpho, em direção aos seus destinos, em "Cinema, aspirinas e urubus".

24 de junho de 2007


CENA


Nei Duclós


Toda fachada é essência

Concreto exposto


A sala mostra o coração

da cama expulso


Toque na porta da frente

Anjos respondem


O resto: o quarto, a dor

Sofre o desmanche


Todo cheiro é refém

do teu regresso


A seda no corredor

Sonda o avesso


Vestes o que te falta

água ou veneno


Aproximo a etiqueta

do mesmo sonho


Tocas no preço

Sem ver as manchas


Custou-me a vida

largas estrias


Nas ruínas da torpe

Cenografia


RETORNO - Imagem de hoje: "Nublado", de Regina Agrella.

22 de junho de 2007

MY MONEY



Ontem mesmo eu vi num filme um mafioso falar em “my money”. É o jargão dos bandidos. Onde está o “meu dinheiro”? A bunfunfa não é dele, claro, mas ele se apropria. Se o governo petista aumenta em 140% a remuneração dos cargos comissionados é porque está usando mal o dinheiro público. Ninguém tem aumento de 140%. Nos últimos três anos, estive num emprego e, nesse período inteiro, recebi um aumento de 6%.

Mas não pensa assim Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência, professor de História da Unicamp e um dos resenhistas da seção de livros que eu editava na revista Senhor dos anos 80, dirigida pelo Mino Carta. Quando acusaram o governo de ter dado o aumento extorsivo só para que as finanças do PT aumentassem, já que os militantes reservam uma parte dos seus salários para o partido, disse Garcia: “Eu dou muito alegremente o meu dinheiro para quem eu quiser.”

É uma meia verdade. O dinheiro, especialmente o que foi inflado com o reajuste astronômico, vem das finanças públicas. Garcia tem razão em parte: ele dá o dinheiro que recebe do governo para quem quiser. Mas se esse dinheiro vem desse reajuste abusivo, continuaria com a razão? Ah, não é abusivo? Então o assessor faz como bem lhe aprouver.

Nunca entendi como funciona o cofre dos governos. Quem assume o cargo executivo tem plenos poderes sobre a boca do caixa? É só ir lá e pegar? Decidir aumento e pronto? O orçamento fica ao Deus dará? Não estou confundindo dinheiro para obras e dinheiro para o funcionalismo ou para os cargos comissionados. Estou falando nas decisões.

Pronto, vou ganhar um milhão de dólares por mês. É assim? Sei, existem os tribunais de contas, mas estes agem depois que o dinheiro foi gasto, não é mesmo? Maluf é acusado de desviar 200 milhões de dólares só de uma obra, a avenida das Águas Espraiadas. Como uma cifra astronômica dessas passa, se for comprovado que ele desviou mesmo, incólume pela imprensa, os tribunais, a cidadania em pânico?

Depois de efetuado o gasto, não adianta chorar. Não sei de ninguém que tivesse esbagaçado a grana do contribuinte de maneira imprópria, esfregar a bunda em alguma cela. Pelo menos num prazo considerado normal quando há punição, e não os poucos dias que o nababo fica encarcerado para depois sair nos braços advocatícios. Mas os cargos comissionados são outra coisa. Ou tudo é o mesmo? Assessor especial vai ganhar agora mais 140%. Fica como está? O dinheiro passa a ser dele?

Mas esses caraminguás são mixaria perto do escândalo do Banestado, por exemplo, quando tudo ficou por isso mesmo. Ou dos sucessivos escândalos da Previdência. Ou do famoso encilhamento, na República Velha, em que a ladroagem política tomou conta das finanças da nação, já que não tinha mais o Dom Pedro II (que morreu pobre) para atrapalhar. Não se trata de monarquismo, mas de decência. O Imperador poderia ter sido substituído por alguém pior. Mas enquanto esteve no poder, rédea curta nas finanças públicas.

Como disse de Dom Pedro II o Monteiro Lobato: "O juiz era honesto, se não por injunções da própria consciência, pela presença da Honestidade no trono. O político visava o bem publico, se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influencia catalítica da virtude imperial. As minorias espiravam, a oposição possibilitava-se: o chefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, defraudador, o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o mau cidadão enfim, e mau por força de pendores congeniais, passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num só deslize.”

Hoje é contrário. Aumentos abusivos, viagens nababescas, mais de um bilhão por ano em publicidade. Mas quem está no trono é um exemplo de virtude. Não é mesmo? Nada de saudosismo dos tempos de El Rey. É preciso andar para a frente. Relaxar e gozar.

RETORNO - Imagem de hoje: Lee Marvin na obra-prima de John Boorman, Point Blank (1967). Ele passa o tempo todo procurando "my money", a grana de um roubo que lhe foi tomada (trailer no you tube).

20 de junho de 2007

O INTELECTUAL INORGÂNICO



O conceito de intelectual inorgânico costuma ser mal aplicado. Ele seria independente, em contraposição ao intelectual orgânico definido por Gramsci, que, por sua vez, procura dar “coesão e consistência a uma classe” (as aspas são tiradas de artigo de Dênis de Moraes). Pode-se acrescentar: a um projeto viável, sintonizado com as necessidades de um grupo de pessoas ou mesmo de uma nação.

Tivemos excelentes intelectuais orgânicos, se formos buscar exemplos fora do universo marxista, como o primeiro Andrada, patriarca da Independência, Alberto Pasqualini, o mentor das leis trabalhistas, ou San Thiago Dantas, o inventor da diplomacia não alinhada para o Brasil. Tivemos também péssimos intelectuais orgânicos, como Roberto Campos, que justificou o desaparecimento do Brasil como nação soberana, ao aprofundar de maneira erudita sua ideologia pragmática e perversa. E intelectuais orgânicos catastróficos, como Plínio Salgado.

Mas há uma confusão aí. Gramsci usou outro termo para intelectual inorgânico. Seria o próprio intelectual tradicional, “que se conserva relativamente autônomo e independente, mesmo tendo desaparecido a classe à que pertencia no passado”. Estamos cheios de intelectuais tradicionais. Alguns horrendos (sobram exemplos, não cito para não me incomodar) outros excelentes (também não cito pois, por serem tradicionais, serão confundidos como direitistas).

Mesmo que tenha existido pessoas notórias e decentes como Florestan Fernandes, que usou o termo inorgânico para se referir a essa independência, prefiro outra linha de definição, para poder enquadrar Mangabeira Unger, que acaba de assumir seu posto ministerial, levando junto 80 postos comissionados, que serão remunerados conforme o aumento gigantesco de 140% outorgado ontem por Lula a esse tipo de cargo. São salários que vão de 1.900 a dez mil reais, um total o que pode bater na casa de um milhão por mês, ou 500 mil dólares.

O que seria, para mim, um intelectual inorgânico? Seria o cara que emite conceitos corretos, ou pelo menos coerentes, justos, equilibrados, ousados às vezes, mas tem uma prática oposta ao que prega (ou simplesmente pede para esquecer). Sua produção de pensamento não fede nem cheira diante dos fatos. Um bom exemplo é o Fernando Henrique Cardoso, tão coerente na sua longa trajetória acadêmica e que na hora do vamos ver sucateou o país. E Mangabeira Unger é outro, pois não há perigo de sua gestão no seu ministério estratégico ter alguma influência positiva sobre a nação, já que está contaminada na fonte.

Por ter considerado o primeiro governo Lula o mais corrupto de toda História do Brasil, Unger jamais poderia almejar qualquer cargo depois que aconteceu a reeleição. Sua denúncia se sintonizava com tudo o que pregava, mas sua posse enterra qualquer coerência que por acaso queira ter. Fica patético ouvi-lo justificar-se diante da seleta platéia no Planalto, fazendo aquelas carantonhas de Churchill. Fica parecendo mesmo o que é realmente: um sotaque gringo querendo assenhorar-se da essência da nação, exatamente o seu pensamento estratégico. Posso estar errado se ele conseguir alguma coisa na sua gestão. Mudar de estratégia às vezes pode ser benéfico. Mas nesse caso prefiro desconfiar.

Lula, como sempre, disse bobagem. Acha que o país só poderá ser uma grande nação se houver um pensamento estratégico para torná-lo grande. O problema é que essa estratégia já existe, estamos saturados de diagnósticos. Sabemos o que é preciso para que o país volte a ser uma grande nação. A solução não seria seu ministro de ocasião, que ele contratou para calar uma voz dissidente que tomava vulto pela erudição e coerência e para conseguir algum prestígio onde ele não tem nenhum, exatamente o da produção de pensamento.

O que precisamos é que a criação intelectual justa e coerente tenha realmente força nos destinos da nação. O que manobra e domina o Brasil é a pirataria financeira, são os juros, a dívida externa, fonte da desigualdade social e da perversidade do poder. Não adianta um discurso limpo, forte e justo se o comando está em outras mãos. O que existe é uma defasagem entre a estratégia ideal e a prática perversa.

Por estar contaminado na fonte de sua posse, Unger não está talhado para a missão. Faça a cara de mau que fizer. Não poderá jamais criar um “nexo entre teoria e prática”, como acontece aos intelectuais orgânicos.


RETORNO - Imagem de hoje: Churchill se esforçando para imitar a cara de mau de Mangabeira Unger.

18 de junho de 2007

MÁXIMAS DO CRESCIMENTO PERVERSO



Crescer é bom, o problema é como. Aparentemente, não há saída: ou você se submete às chantagens do império financeiro e político – o mesmo que impõe um boicote de mais de 40 anos a Cuba – ou pasta. Quem se opõe a essa situação ou propõe alternativas é tachado de retrógrado, obsoleto, incompetente. O golpe de 64 foi dado para nos entregarmos totalmente ao crescimento perverso. O mais grave é que ele se instalou nas mentes dos tais formadores de opinião , que tiraram a máscara e celebram alegremente o que foi feito no Brasil, à custa de mais desigualdade e entrega de soberania. Neste domingo, na Folha (o único jornal que consigo ler, apesar de tudo), uma reportagem de página inteira justificava o ano em que “crescemos” 14%, no auge da ditadura Médici.

O custo desse índice é colocado em segundo plano pela reportagem. Os golpistas gostam de dizer que aquele tempo foi uma guerra. Pois bem, um criminoso de guerra, Delfim Neto, chamado de professor pelo texto, pontifica o tempo todo, como se fosse o guardião do segredo do cofre. “O país não se endividou coisa nenhuma”, diz Delfim, na maior cara de pau. “As coisas pioraram depois, com a crise do petróleo”. Essa é muito boa. No momento em que Delfim e seus pares colocaram o país à mercê da pirataria internacional, com uma relação “virtuosa” (palavra muito usada por Roberto Campos, a atual unanimidade do pensamento econômico colonizado) entre dívida e exportações, ficamos então à mercê da brutalidade entre as nações.

Apostamos no cavalo errado, tivemos uma bolha de crescimento (ajudando a subornar a classe média), que explodiu logo em seguida. Delfim Neto diz que Geisel, ao assumir em 1974, “acertou” em se endividar ainda mais para não parar o país, pois senão seríamos “uma Bangladesh”. Vimos o resultado. Bangladesh é fichinha perto da hecatombe social que hoje nos devora. Mas Geisel errou ao “promover um plano muito ousado e desproporcional de investimento público”, diz Delfim. Tomei contato com os frutos dessa decisão. O empresário Luis Eulálio Bueno Vidigal, entre muitos outros, foi forçado a inchar sua planta industrial e com o segundo choque de petróleo, em 1979, ficou com o pincel na mão. Visitei as dependências vazias da fábrica de veículos ferroviários na Vila Leopoldina em São Paulo. Uma tristeza só.

A situação que vivemos hoje, de total dependência dos tais investimentos externos (pura especulação financeira que despeja dólar aqui para ganhar com o juro alto, o que torna o dólar “barato”) é resultado dessa política desastrosa que nos colocou no mato sem cachorro. Perdemos a soberania no parque industrial (e estamos perdendo no resto). Os pólos petroquímicos, por exemplo, uma idéia do nacionalista Bautista Vidal na época Geisel, caiu toda na mão de estrangeiros, como japoneses e alemães. Em nichos onde pretendemos saber alguma coisa, como foi o caso de Alcântara, o da indústria espacial, foi para o espaço com uma explosão mal explicada. Não temos direito à cidadania no mundo. Entregamos tudo e hoje tem gente que acha a fase militar da ditadura com alguns méritos.

Os militares tentaram compor nacionalismo com entrega do país via política econômica. Fizeram ao contrário de Getúlio Vargas, que fez política econômica com soberania. Deram com os burros na água. Tiveram que entregar o poder para o coronelismo dos grotões e os novos nababos da especulação financeira. Os militares deram o golpe em João Goulart (insuflados pela velha direita) iludidos que o trabalhismo no poder era ofensivo às Forças Armadas, uma ferida aberta pelo Corvo, Carlos Lacerda, naquele outro episódio mal explicado, o da morte do major Vaz, da Aeronáutica. A testemunha principal disse no Fantástico que Lacerda matou Vaz por acidente (foi se defender e acabou acertando o militar que era pago para protegê-lo) e deu um tiro no pé para tirar o seu da reta. Um atentado que mudou o país para sempre.

Agora estamos entrando em nova fase de ilusões. O total engessamento da economia é confundido com estabilidade (na época de Delfim, a inflação de 12% ao ano foi decidida por decreto). Na coluna de Mônica Bergamo (sempre entregando todas, com todas as letras) o mercado de luxo faz concessões nos preços, descendo do patamar de um trilhão de dólares a bolsa de luxo para apenas 900 bilhões. Um descaramento total.

Os americanos, de tanto disseminar o crescimento perverso pelo mundo, esquecendo suas raízes do capitalismo endógeno e bem sucedido, engendrado pela migração e o mercado interno, caíram na mesma arapuca. O caderno Dinheiro deste domingo, que traz o texto de louvação a 1973, publicou a matéria sobre os novos bilionários americanos. Deve ser o despertar do tal espírito animal dos empresários, de que fala Delfim justificando seus crimes. A má distribuição de renda atinge o coração do Império. Será que daqui a pouco haverá uma nova guerra de libertação por lá?

O que mais irrita é que economia, com a sacanagem geral do crescimento perverso, se transformou em matéria para iniciados. Você, como leigo, não pode fazer sua análise. Os formatrizes de opinião vão dar gargalhadas. Eles são modernos, eles são a coisinha da mamãe. Eles sim estão a serviço de uma ideologia. O que queremos apenas é o nosso país de volta.


RETORNO - Imagem de hoje: "Garoa", de Regina Agrella.

17 de junho de 2007

A AGENDA DO DIA


Nei Duclós

A agenda do dia se manifesta logo ao acordar. São como palavras que existem em espaços vazios da linguagem. Tens um discurso diário, mas há ranhuras nele, onde se acomodam, embrulhadas, futuras ações ainda encobertas. Abres o olho com a primeira claridade da manhã e repassas o diálogo interno do que se deve fazer. É preciso que existam instrumentos favoráveis para que tua carapaça, essa soma de tempo e matéria sob o comando de vontades nem sempre determinadas, possa levantar mais ou menos com uma direção.

Aparentemente é tudo muito corriqueiro. É preciso higiene, café, pão, fogo. Um estoque mínimo de tabaco, a única droga que sobreviveu, já que o álcool provou ser veneno, mesmo em doses chics, essas de vinho caro. Na primeira quadra do dia, completadas as tarefas do despertar, partes para o segundo capítulo, como se a agenda fosse o romance que escreves com tuas pernas pesadas, teu corpo esquecido, tua mente distraída. É o momento de pegar o carro e providenciar alguma coisa. Água de côco, laranja, iogurte, jornal e uma peça de resistência para o almoço que se aproxima.

Entre uma e outra manobra, se retorce nos cantos da agenda tua disposição de escrever alguma coisa, dizer algo que pinica na tormenta da idéia em permanente soprar. São sementes que queres espalhar pelo mundo. Talvez, quando acordas cedo, elas já tenham sido alinhavadas e esperas o retorno que tarda. Há indiferença no mundo e tua preocupação é não atrapalhar a vida alheia, apenas colocar a bola no canto e chutar em direção à meta. Há um estádio em compasso de espera. Ele está cheio de gente. Mas basta um ruído tosco para tudo desmoronar.

Há um fragor de serras elétricas no país em obras, ou em ruínas, o que vem a dar no mesmo. O barulho é a vida espiritual da nação. Marteladas, gritos e um alto-falante anunciando alguma coisa incomprável, um evento inassistível, uma promoção absurda. Mas tudo passa e a rede, velha, na varanda, aguarda o momento de mais uma contribuição para que rompas todos os recordes de concentração e devaneio. Vives no mundo da lua, que aqui costuma aparecer de dia. Imaginas visitas estapafúrdias, de criaturas voadoras dentro de bolhas de sabão de plástico. Olhos avermelhados te enxergam e depois se recolhem na nave que assomou na montanha. Tudo volta ao normal quando um bentevi faz algazarra para o beija-flor, que ainda insiste em navegar as plantas em absoluto isolamento.

Quando cai a tarde, um livro ou um filme te ajudam a passar as horas. Um compromisso, pessoal e inadiável, te leva novamente à tela em branco. Rabiscos do que sabes fazer inundam o espaço do dia que se esvai de maneira penosa, como alguém atropelado aguardando socorro. Há insistência dos hábitos da vizinhança: um colégio que entra e sai, uma bicicleta que procura o endereço de alguém que perdeu documentos, um carro ansioso diante das tartarugas da rua. E os caminhões, que despejam pedras para os jardins, ferros para as casas que se erguem por toda a parte, entregas a domicílio, bateção de portas de veículos detonados, palmas de vendedores ocasionais e oferecimentos de serviços da economia informal, cada vez mais presente.

No crepúsculo, já tens o dia ganho. Palmilhaste o sonho de viver mais um pouco, enquanto avalias o estrago que os dias fazem nos teus gestos. Cada vez fica mais difícil andar, se virar, se levantar. Então você promete: vou cortar decisões, enterrar desesperanças, alimentar temperaturas amenas. Mas é inverno e as nuvens não te deixam sonhar. Então, na cadeira de pano, refletes sobre o que ficou à margem, nas dobras deste destino incerto, aquelas palavras que se retorceram logo que acordaste.

Elas continuam lá. De vez em quando, chegam até a superfície. Um encantamento então te inunda. Há vida em universos escondidos! Há música nas rachaduras da rotina! Há vez para completarmos os planos sempre adiados. É assim que se manifesta o amor de ficar exposto ao gigantesco céu que enfim se descobre. Mesmo ameaçando trazer mais frio, ficamos tontos de tanta vida. Porque tudo é mistério e enxergas cada vez menos, mas há grandeza em teu abandono, força no teu vislumbre e poder na agenda que escreves todos os dias, de olhos semicerrados e o coração aos pulos.

Quando nada há para escrever, é aí que se manifesta o texto que dormia na parte mais funda das tuas roupas indomáveis.

RETORNO - Imagem de hoje: batizei de "O dia partido em Sampa". Foto de Helcio Toth.

16 de junho de 2007

A DESMORALIZAÇÃO DA ESCOLA


Virou moda: todo mundo adora tripudiar em cima das frases dos alunos que se submetem ao Enem ou aos vestibulares. Quem divulga as chamadas pérolas, com Enjôo Soares à frente, se sente no poder do conhecimento, pontifica sobre os pobres mortais, se destaca pela sua sabedoria, pelo seu conhecimento gramatical, seu pleno exercício de se achar o rei da cocada preta. Por acaso você viu alguém divulgar as melhores frases do Enem? As mais bem elaboradas? Não. Fazem tabula rasa dos estudantes, como se esta geração fosse de idiotas e as anteriores, de gênios.

O objetivo é um só: continuar sucateando a educação, desmoralizando-a de todas as maneiras. Tudo virou uma Escolinha do Professor Raimundo, aquele quadro humorístico que se repete ou se repetia em todos os canais, onde um professor sério servia de escada para alunos comediantes. Acabar com a educação pública para privatizá-la e destruir a educação brasileira, para melhor entregar o país, são obras da ditadura que nos governa há mais de 40 anos, reproduzidas e reiteradas todos os dias pelos chamados “formadores de opinião” (que pretensão! ninguém faz a cabeça de ninguém).

Acho tudo isso uma injustiça e uma sacanagem. Aqui, vou comentar algumas dessas frases, para provar que entre nossa nova geração temos autores de grande talento, que se manifestam de várias maneiras. Tive o cuidado de corrigir a ortografia, coisa que faço há quase 40 anos nas redações brasileiras (sempre como editor de texto, jamais como revisor). Por que todos os jornalistas que passaram pela minha caneta teriam mais direitos do que os estudantes ? Só a meninada erra ao escrever? Dá licença.


FRASES CERTEIRAS:

"A comunicação é de massa porque precisamos utilizar a massa cinzenta para compreendê-la". Frase maravilhosa, que peita o cânone da palavra “massa”, tão usada a partir do final dos anos 60, quando McLuhan virou febre.

"Os analfabetos nunca tiveram chance de voltar outra vez para a escola”. Nada mais verdadeiro. Temos analfabetos porque as pessoas, cedo, são jogadas na luta pela sobrevivência e não conseguem mais voltar a estudar. Qual o problema dessa frase?

“A principal função da raiz é se enterrar no chão." Alguma dúvida?

“O vento é uma imensa quantidade de ar”. Frase maravilhosa, perfeita. Sem nenhuma ironia. Vejam a consonância entre vento e imensa, vejam a palavra ar desmanchando a frase no final e se sintonizando, pela oposição entre som fechado e aberto, com a primeira sílaba de quantidade.

“O problema fundamental do terceiro mundo é a superabundância de necessidades.” O autor usa a palavra superabundância no contexto oposto ao uso comum. Isso é criação. E a frase está correta. Há excesso (superabundância) de demandas nos países pobres.

"A Previdência Social assegura o direito à enfermidade coletiva." Quem poderá discordar?

FRASES POÉTICAS:

"Onde nasce o sol é o nascente , onde desce é o descente." Descente foi usado de maneira proposital, de ser para baixo. Nenhum trocadilho com decente, apesar de, na forma original, estar grafado assim esta palavra. Mas sabemos o que o autor quis dizer, e o disse de maneira sonora e clara.

“A harpa é uma rosa que toca”. Imagem tocante, digna da melhor poesia. Tocar, no caso, tem duplo sentido: tocar pela emoção e tocar mesmo, tirar som de um instrumento.

“O Chile é um país muito alto e magro.” O país de Pablo Neruda deveria adotar esta frase. Define poeticamente a geografia de uma nação, ao mesmo tempo que denuncia o aperto do seu território num continente tão largo e comprido.

“A insônia consiste em dormir ao contrário”. Qual poeta não gostaria de ter esta idéia? Ficar acordado contra a vontade é o sono pelo avesso.

FRASES HISTÓRICAS

"Fidel Castro liderou a revolução industrial de 1917, que criou o comunismo na Russia". Quem gosta de atacar a revolução cubana deve ter se identificado com esta frase. A direita confunde as várias correntes da esquerda, onde tudo se parece, de Lênin a Fidel. A História é uma versão construída a partir das versões dos fatos. O autor da frase usou apenas o que os historiadores e ideólogos adoram usar.

"Ateísmo é uma religião anônima praticada escondido". Verdade. Houve um tempo em que era difícil confessar que Deus não existia.

"A capital da Argentina é Buenos Dias." O mundo hispânico se parece em todas as nações, segundo a versão ianque do mapa mundial. Abaixo do Rio Grande tudo é México.


Eu poderia ficar aqui indefinidamente defendendo o direito dos estudantes se manifestarem como bem entendem. Os jornalistas, políticos, humoristas se dão o direito de dizer qualquer coisa. Mas a meninada não pode. Por quê? Vamos acabar com isso. Não se trata de justificar o analfabetismo e a confusão nas escolas. Mas de alertar que essa campanha só serve para desestimular os estudantes. Vamos cuidar das salas de aula, dos professores, das políticas públicas para a educação. E vamos olhar com mais generosidade o que as novas gerações produzem, mesmo sob as piores condições. Ficar "denunciando" as frases é tripudiar.


RETORNO - Imagem de h0je: Escola Estadual da Penha, por Marcelo Min. Falam tão mal dos estudantes, mas ninguém vai lá consertar o estrago. É de doer.

15 de junho de 2007

A TRANSGRESSÃO SOB MEDIDA


Romper limites significa enquadrar-se em outros parâmetros. Exemplos não faltam. A revolução do comportamento serviu para adequar a indústria cultural às demandas das novas gerações. O movimento pela qualidade total acabou num engessamento de conceitos e hábitos, hoje repetidos como verdades incontestáveis, num discurso insuportável. Romper com o imobilismo estatal criou a monstruosidade neoliberal. Mandar tudo à merda serve como insumo literário. O naturalismo cevou o ambiente propício para a proliferação dos eco-chatos. A luta armada acabou dando sobrevivência a várias ditaduras. A inovação cinematográfica colocou de mão beijada uma série de soluções para filmes bem comportados. Não há, então, saída?

Claro que não. O universo, feroz e hostil, vive do conflito, desumano por excelência. Tudo o que o coração dita cai na vala comum. O segredo é continuar, mantendo azeitada a máquina de criar problemas. Os americanos dito progressistas é que mais me invocam com suas tentativas de transgressão. O filme O homem do ano, por exemplo, de Barry Levinson, com Robin Williams, Laura Linney, Christopher Walken, deita e rola sobre as eleições americanas depois do escândalo Bush. Mas tudo serve para enquadrar o sistema na sua necessidade de incluir as forças emergenciais, como os candidatos independentes, que acabam servindo de repasto para o bipartidarismo. Este, no filme, sai revigorado do embate, porque não há verdadeira liberdade de expressão nos Estados Unidos: tudo precisa ficar nos limites do Império.

Mas é fato que o filme se aproveita das margens largas das liberdades constitucionais e acaba sendo uma boa investida contra a babaquice das campanhas eleitorais. Robin Williams, que perde tempo fazendo dramas, está no seu melhor elemento: é uma gag hilária atrás da outra, ditas em ritmo de metralhadora giratória, arrancando risadas sinceras do elenco. Vi também outro filme em que ele atua, Segredos da Noite, um melodrama mal feito metido a ser de suspense, que nos estimula a evitá-lo. Por um tempo deixei de lado os filmes com o ator. Gostei de Bom, dia, Vietnã, do mesmo Levinson, mas A Sociedade dos Poetas Mortos é o que diz o título, mortal. Esteve na moda, mas passou.

Os comediantes enfrentam uma maldição: são compulsivos e, quando abastecidos de bons textos, de escritores ótimos que militam na indústria cultural, imbatíveis; mas quando implodem por necessidade de mostrar o quanto são bons atores fora da comédia nos irritam. A comédia possui drama, não precisa ir até a outra ponta para provar nada. Chaplin, que sabia de tudo, nos deu maravilhosas comédias dramáticas. Mas Jerry Lewis, por exemplo, que é um gênio, acaba fazendo filmes pífios quando se mete a chorar, a começar como O Rei da Comédia, em que perde tempo com Robert de Niro, ou a apenas distrair, como Três num sofá, filmeco dos anos 60 hoje esquecido.

Comédia é transgressão pura e simples. O drama é o enquadramento do personagem nos limites que devem se acomodar depois que houve o rompimento dos diques. "Faça-os rir, faça-os chorar", diz o ditado. Você conquista o público mandando tudo às favas e depois lembra que somos mortais. É o momento da lágrima. Mas há um problema: quando a comédia se atém à sua própria aparência, de apenas tentar fazer rir, normalmente gera coisas como aquelas idiotias dos anos 80, em que adolescentes americanos reprisavam suas gags escatológicas. Como Wayne´s world, ou American Pie, que já foram desta para a pior.

Prefiro a comédia que encerra em si o drama e não um comediante querendo nos emocionar com sua performance metida a séria. Robin Williams deveria insistir nesse vetor, que está quase abandonado hoje. O que existe de grande comediante na atualidade? Borat, o imbecil? Ainda não vi, mas adivinho o que seja. Jerry Seinfeld? Está aposentado. Jim Carrey? Péssimo. É melhor ator em drama do que nas suas horrendas comédias. Resta Robin Williams. E em O homem do ano (que recebeu a péssima tradução de O candidato aloprado) ele está realmente ótimo. Vale a pena.

ADENDO - Faltou dizer duas coisas deste filme. Primeiro, a crítica ao sistema informatizado de eleições, super exposto a fraudes. Segundo, o papel ocupado pelo Brasil no bestialógico do candidato: ele se refere ao nosso país como o lugar onde as freiras usam fio dental. É isso o que colhemos, depois de décadas sem soberania: a imagem de um país irresponsável, onde os corpos da cidadania estão disponíveis.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Robin Williams em "The Man of the Year". Ao fundo, uma transgressão das cores da bandeira americana, que nasceu de uma outra trasgressão (a guerra contra os ingleses) e é por isso que é representada por tiras, faixas - como as faixas de segurança e a roupa tradicional dos prisioneiros. 2. Aleksandro Vanin, repórter (e agora novo editor executivo) da revista Empreendedor, que editei por três anos, foi o grande vencedor do Prêmio Ethos de Jornalismo, com sua matéria de capa, "Novos negócios do clima". É uma novidade importante: por várias vezes, os jornalistas da Empreendedor inscreveram reportagens nos prêmios nacionais e sempre ficavam à parte. Desta vez, Vanin rompeu a barreira. Ganha o jornalismo, ganha a editora e ganha principalmente o jornalista esforçado e brilhante. Parabéns, Vanin!

14 de junho de 2007

RELAXA E GOZA


Por ter vindo ao mundo a passeio, a atual ministra do Turismo sugeriu aos passageiros retidos nos aeroportos relaxar e gozar e assim esquecer os transtornos (depois, pressionada pela repercussão, pediu desculpas). Deve ser o que ela faz o tempo todo. Bem relaxadinha, montada no dinheiro público, Marta Suplicy adora gozar com a nossa cara. Ela é a cara deste governo. No mesmo evento em que Martinha mandou os passageiros às favas, o presidente Lula disse que a imprensa vive mostrando o lado ruim de regiões com belezas naturais de forte apelo turístico, como é o caso dos estados nordestinos. Para ele, precisamos mudar nosso estado de espírito. Talvez seja então preciso manter o nível de orgasmo múltiplo para que o turismo vá em frente.

A imprensa só fala em morte, segundo Lula. Isso faz com o que o turista resolva ficar em casa. Mas as pessoas viajam mesmo com o noticiário ruim. O que realmente atrapalha não são as reportagens sobre os crimes, mas exatamente o que Marta fez pouco, o atraso nos aeroportos. Se eu for sair de férias e sou obrigado a dormir no chão frio de Cumbica, então dá licença, prefiro o sofazão da sala. Não dá para relaxar e muito menos gozar.

Viajei muito pouco de avião de um ano para cá. Mas por mais de uma vez fui obrigado a esperar demais, pegar avião de madrugada, ficar em dúvida se volto para casa ou sigo em frente. O que me segurou na determinação de voar foram os compromissos. Lula falou que os pobres precisam ter acesso aos vôos, o que é correto, mas esquece que o ar é limitado, já que não se pode coalhar o espaço aéreo com milhões de aeronaves, enquanto a viação férrea comporta um número infinito de passageiros.

Parece que agora vão fazer o tal trem bala entre Rio e São Paulo. Foram angariar fundos no Exterior. Mas para quê, meu Deus? Por que os coreanos, os espanhóis, os americanos precisam entrar com a bufunfa para permitir que eu pegue trem em vez de avião? É que nossa verdadeira moeda é a dívida. Vejam o crescimento de 4,3% no trimestre, em relação a 2006. Por que ele é tão significativo? Porque o crédito ficou fácil e farto, segundo o noticiário. Ou seja, o importante é que os índices apontem algum movimento, não importa o buraco que todos estamos cavando. Talvez seja para incrementar o turismo.

A comentarista econômica do Bom Dia Brasil tece longa consideração a favor do índice de 4,3% , dizendo que há 14 semanas o consumo cresce. Um pouco antes, na matéria sobre o aumento dos preços nos hortifruti, mais de uma pessoa disse: estou comprando menos. Claro, uma coisa nada tem a ver com a outra, segundo a lógica perversa das estatísticas. Trabalha-se com médias. Gostaria de saber onde estão as pessoas na faixa das médias. Pois gente real ou está nos que compram sem olhar o preço ou nos que contam moedas. O equilíbrio social não existe, é apenas um dado matemático, para insuflar o noticiário, que deverá ser mais otimista, segundo sugestão do próprio presidente.

O Brasil é pura perda de tempo. As câmaras e os flashes iluminam a cara de um deputado estadual (ou vereador), que, aproveitando a exposição na mídia, faz longa pergunta a um dos acusados do escândalo da moeda verde, os caras que pagavam as licenças ambientais para construir seus megaprojetos. O acusado escuta com o cenho carregado, atrás de sua barba hirsuta e então começa a negar veementemente. Dali a pouco, cenas de suspeitos sendo levados para fora das celas por seus advogados. Já sabemos onde tudo isso vai dar.

Mas precisamos mudar nosso estado de espírito. Uma boa notícia é que a revolução de 1924 no Rio Grande do Sul será enfim filmada. Eis um grande assunto para o cinema. O roteiro é de Tabajara Ruas, baseado no romance “Os Senhores da Guerra”, de José Antonio Severo, que irá dirigir o filme. Vai correr bala. Depois não digam que não avisei.


RETORNO - 1. Imagem de hoje: Namorados, de Marcelo Min. Para variar, fotaça. .

12 de junho de 2007

BABEL, DE IÑÁRRITU E ARRIAGA



A indústria do cinema nos confunde. A maioria de suas produções são asneiras, ditadas pelo marketing criminoso. Filmes que podem ser sintetizados pelos protagonistas andando ou correndo em direção às câmaras enquanto, atrás deles, uma barreira de fogo inunda a tela. Bobagens fruto da mente crua dos produtores, que apostam na imbecilidade do público. Depois vêm os filmes encomendados. Vários lobbies participam desse vetor cinematográfico: a CIA, o FBI, o serviço secreto americano, a Marinha, o Exército, os advogados etc. pagam por fora para que atores, diretores e roteiristas obedeçam (às vezes, convictamente) aos ditames das corporações. Não é teoria da conspiração: veja como tremem de emoção os atores encarnando a repressão do Império. A emoção vem da grana preta que levam, não das convicções ideológicas.

Para se opor a essas barbaridades, nasceu e cresceu o cinema alternativo, que se alimenta do experimentalismo, dos grandes mitos do cinema do passado e da necessidade de romper barreiras econômicas e políticas para chegar ao público. Quando o cinema é de Alejandro Gonzáles-Iñárritu e do roteirista Guillermo Arriaga, que tinham já nos dado dois grandes filmes, Amores brutos e 21 Gramas, o alternativo migra para a grande indústria. Os dois gênios mexicanos chegam agora ao absoluto esplendor com Babel, o filme que não cabe num resenha, pois ousa participar da espiral de formação da obra humana que procura atingir a a divindade. Soa exagerado? Sim, ainda mais quando se sabe que tem Brad Pritt na parada.

Tudo não passaria de uma enorme campanha publicitária a favor de grandes astros, grandes produções, grandes coisas. Mas não é. Trata-se de uma obra-prima. É um filme sobre pais e filhos, um mergulho radical no mundo reunido na mesma torre, a indústria da comunicação, que enfeixa poderes e exclui povos e gerações. Você já viu, fora da pornografia, algum filme sério sobre adolescentes japonesas surda-mudas com grande gana sexual? Ou um filme em que essas adolescentes estão ligadas a um pequeno episódio no interiorzão do Marrocos que acaba virando um case internacional? Duvido que você tenha visto um casamento mexicano, testemunhado por duas crianças americanas, com desfecho trágico no meio do deserto da fronteira, do jeito que é narrado pela dupla de gênios.

Pois esses episódios estão ligados na já célebre arte dos dois de cruzar as seqüências de maneira demolidora, para que o espectador não se acostume à linearidade narrativa, que no fundo não passa de imposição de idéias e comportamentos. Tem muita gente metida a espertinha fazendo estripulias nas câmaras e tentando ser o que não são, achando que experimentam, mas não passam de redundantes. Um filme burro que vi esses dias trouxe o diretor D.J. Caruso se definindo como um misto de Hitchcock com John Cassavetes. Cate-se, bobalhão. Iñarritu e Arriaga, ao contrário, têm pleno domínio dos seus ofícios.

Eles conseguem ser cada vez mais contundentes na montagem narrativa. Desta vez, em vez do cruzamento caótico de situações, há uma composição seqüencial definida por cenas chaves, que delimitam os trechos, ou capítulos, da história. A partir desse tipo de cena, se desenrola em flash black, os acontecimentos que deságuam nela. Isso é feito de maneira segura, levando o espectador à complexidade das relações entre pessoas, governos, povos e nações. O detalhe é que a dupla cinematográfica não aposta no tiroteio desenfreado, nos personagens irreais de valentões e covardinhos. São pessoas comuns envolvidas em detalhes que se apresentam, por força das idéias fixas e dos interesses em jogo, como grandes trapalhadas globais, capazes de gerar ainda mais injustiça.

É absolutamente tocante a interpretação dos atores. Brad Pitt, um quarentão detonado, precocemente envelhecido, faz o pai arrependido de ter deixado as crianças em casa enquanto procurava uma saída conjugal com sua esposa, interpretada por Cate Blanchet. Esta, é o retrato do desespero diante do marido e do mundo. Rinko Kikuchi, a adolescente em crise, e Adriana Barraza, a babá mexicana que cruza a fronteira carregando as crianças americanas, e nisso encontra sua desgraça, estão extraordinárias em seus papéis. Todo mundo foi indicado para o Oscar. Deveriam ter levado.

O episódio marroquino é bíblico: lá entram Abrahão (o sacrifício do filho), Caim e Abel (a maldição do favorito), incesto, perseguição, fuga. O garoto que apontou o rifle contra os turistas, de joelhos, diante do policial, confessando sua culpa, é um dos grandes momentos cinematográficos da atualidade. Veja Babel, do cineasta Inãrritu e do roteirista Arriaga. É um filme que faz falar as pedras.

"Se queres ser compreendido, escuta", diz Iñárritu no final. Ele dedica o filme a seus dois filhos.

RETORNO - Imagem de hoje: Brad Pritt, o pai arrependido, em "Babel".


EXTRA - COMENTÁRIOS EM DESTAQUE

Duas pessoas escreveram comentários que merecem destaque. Um deles é Clovis Heberle, autor de um blog que resgata suas viagens seminais pelo mundo e que daqui a pouco sairão em livro (ei, editoras, acordem). Clovis me enviou sua mensagem por e-mail. Aqui está o que ele disse:

"Sou leitor constante do teu site e do blog, imantado pela clareza dos argumentos, o raciocínio lógico, o estilo elegante e a força dos textos, tanto no elogio quanto na crítica. Ao terminar de ler As Verdades Definitivas, pedi ajuda ao Aurelião para exprimir o que senti, e achei uma boa definição, que vale também para o conjunto da tua extensa obra: Lucidez: penetração e clareza de inteligência; perspicácia; acuidade. Lúcido: que luz; resplandecente, brilhante, luzente."

"No Diário da Fonte, escreveste uma excelente crônica sobre a idiotice da nossa classe média que, sem $$$ para ir aos Alpes, às Montanhas Rochosas ou até mesmo a Bariloche, corre para a Serra (catarinense e gaúcha) na esperança de ver NEVE. Uma de tantas coisas que me incomodaram nos 35 anos trabalho em rádio, TV e jornal era, a cada inverno, ver a mobilização de equipes para cobrir a queda de neve (que, com o aquecimento do planeta, não dá o ar da graça desde 1994). Frustrados, repórteres e fotógrafos têm que se contentar com aquelas materinhas "de ambiente", com os hotéis cheios de babacas paulistas, cariocas, mineiros e nordestinos (afora os nossos conterrâneos) que, mais uma vez, não viram a neve. Poderiam ter poupado a sua graninha e batido queixo em Campos do Jordão, Petrópolis ou qualquer cidadezinha do altiplano mineiro ou paulista, onde no inverno também faz frio. Ver a neve é um de tantos aspectos da nossa colonização cultural do qual o mais visível é o mito do White Christmas, com papais noéis enxarcados de suor ao sol de dezembro naqueles trajes vermelhos criados pela Coca Cola. Não é um delírio? Abraços."

O outro comentário é de

Caro Nei,

Em primeiro lugar meus cumprimentos pela lembrança da pena do competente Julio Monteiro Martins. Julio nao é apenas contista, poeta, romancista e docente da Universidade de Pisa. E' também o fundador da melhor revista literaria do Web italiano: www.sagarana.net. Nao existe nada igual no pais, nem mesmo os periodicos de literatura mantidos pelos grandes titulos do jornalismo italico conseguem igualar a elegancia e a alta qualidade das propostas de Sagarana.

Em segundo lugar gostaria de comentar com voce o fenomeno Chavez porque estive na Venezuela por um periodo de tempo suficientemente longo e em situaçao de observador privilegiado. Nao entro no mérito dos exageros retoricos do personagem, quero apenas lembrar que a Venezuela, sob o governo de Chavez, conseguiu enfrentar o problema da falta de soberania nacional e lançar as bases de um processo de libertaçao da miséria politica que aflige o Brasil e todos os demais paises da area do Mercosul.

Na Republica Bolivariana da Venezuela nao seria possivel um ato como aquele cometido pelo criminoso Fernando Henrique Cardoso, que assinou a doaçao de quase 60.000 hectares de Amazonia aos EUA com a finalidade criaçao de uma base militar interessada na utilizaçao de misseis com ogivas nucleares. Nao seria admissivel na vida politica venezuelana um gesto como aquele do delinquente Menem que entregou aos Estados Unidos uma area de territorio argentino na Patagonia, quase igual à brasileira, para a construçao de uma outra base militar. Sabe por que? Porque a Constituiçao da Venezuela proibe a "doaçao ou cessao de partes do territorio nacional para atividades militares de paises estrangeiros ou coalisoes dos mesmos".

Jamais possui' uma copia da Constituiçao Brasileira na minha biblioteca mas achei um cantinho para a Constituiçao da Republica Bolivariana da Venezuela porque ela propoe com coragem os limites claros de um estado soberano, coisa que nem a arrogante Uniao Européia pode permitir-se.

Poderia falar do programa de supermercados populares e do abastecimento associado ao trabalho das muitas cooperativas engajadas na luta para produzir alimentos a pouco custo. Poderia falar da assistencia médica de base dentro das periferias mais pobres do pais, onde voce, por exemplo, realiza um exame de olhos e leva para casa os oculos que necessita de maneira gratuita (aconteceu comigo). Mas prefiro dizer a voce o seguinte: se tivesse vinte anos a menos iria viver na Venezuela.

Não posso desculpar a idiotice dita pelo Chavez em relaçao ao Congresso Brasileiro. Mas, posso desculpá-lo em relaçao à cassaçao da concessao da emissora que, durante anos sempre gozou de total liberdade para realizar programas onde as instituiçoes politicas venezuelanas e os símbolos eram enxovalhados. Nem no Brasil permissivo das todo-poderosas redes de televisao isso seria tolerado. Um abraço."


Agradeço aos dois pelos belos textos sobre o Diário da Fonte. Ao Alberto respondi o seguinte: "Obrigado pela sua competente intervenção, Alberto. As evidências apontadas por você dão banho no que se faz por aqui. Implico demais com o Chavez porque o acho oportunista, fanfarrão e perigoso. Está fazendo o jogo dos americanos, colocando lenha da fogueira, militarizando o país e tentando nos envolver. Aqui se cometeram crimes porque o Brasil optou, depois dos desastres de 1964, 1968 e 1984, por um caminho mais prudente. A tragédia é que os bandidos aproveitaram essa experiência popular para tomar conta do butim. Ficamos no mato sem cachorro.

Chavez ficou imobilizado no golpe de 2002. O povo o devolveu ao poder. Mas me parece que ele atribui a si mesmo todos os louros da vitória e está cometendo graves erros estratégicos. Vai colocar fogo na mata. Aí, salve-se quem puder.

À parte minhas posições, te agradeço pela contribuição ao debate, fundada na tua experiência pessoal e muito bem apresentada no teu comentário. Volte sempre, pois precisamos de tuas luzes."

10 de junho de 2007

O PLANETA É FILHO DA AMÉRICA




O mais brilhante e perverso lance de marketing político da atualidade é Uma verdade inconveniente, o documentário de Al Gore que levou o Oscar. Brilhante porque Al Gore se coloca no miolo dos acontecimentos, assume a postura de protagonista de uma luta que parece ser a favor da Terra, mas é simplesmente uma poderosa campanha de esclarecimento anti-Bush – e, de quebra, anti-outros candidatos democratas, como a ex-primeira dama Hillary Clinton, que já está a campo de olho nas próximas eleições presidenciais.

E brilhante porque, ao usar o prestígio, o alcance e a duração do cinema, consegue ser convincente. Seu acervo são os insights da cultura acumulada da comunidade científica para, num tom didático, explicar porque devemos nos preocupar com o aquecimento global. Isso torna o documentário (uma longa conferência com recursos da multimídia) também perverso, ainda mais porque fica evidente a apropriação de soluções que, no fundo, não dizem respeito a todos os povos, mas sim aos votos que ele precisa para chegar onde quer, a Casa Branca.

De cara, na primeira cena, Al Gore se apresenta como o ex-futuro presidente americano. Isso atrai simpatia para quem venceu a eleição e não levou, quando a família Bush deu aquele golpe de estado que desgraçou o mundo, via contagem fajuta de votos, como denunciou Michael Moore em Fahrenheit 9/11. Seu objetivo é retirar o ex dessa constatação. Na seqüência, ele usa as pesquisas científicas para colocar todos os ovos na mesma cesta, sua campanha política. Os cientistas citados, na maioria, são “friends of mine”. Ele é o amigo dos cientistas, portanto irmão da verdade. E se transforma também em irmão da virtude, pois compara o planeta a um filho que corre risco de vida (e não de morte, porque morte não corre risco).


O planeta é como o filho atropelado, que precisa de atenção total e de cuidados. A metáfora é contundente: Al Gore usa o exemplo do próprio filho, que sofreu um acidente grave aos seis anos. A virtude também se expressa na saga familiar. Ele teve a manha de ir até a fazenda onde foi criado para mostrar que os pais deixaram de plantar tabaco, ou seja, de ajudar a produzir cigarros, que provocam câncer, segundo estudos divulgados a partir de 1964. Sua irmã mais velha, que fumava, morreu dessa doença. O episódio familiar serve para ilustrar a necessidade de mudar os hábitos, não mais de maneira lenta, mas de forma urgente.

O que ocorre no planeta ferido pela emissão de gases da revolução industrial, que exibe inúmeras chagas de seu estado de coma, desde o furacão Katrina (empoderado pelas águas do mar aquecidas) até a execrável Pequim, megalópole envolta em gases de carvão (talvez seja por isso que tem tanto chinês espalhado pelo mundo: eles tornaram seu país insuportável)? Acontece que os Estados Unidos são o principal suspeito do crime, pois consome mais do que todo mundo. Os americanos estão cavando seu próprio túmulo e precisam acordar enquanto é tempo. Para isso, é preciso despertar as consciências.

Onde estão estes formadores de opinião? Em terras americanas, claro. Gore se dirige a todos os povos do mundo que escolheram os Estados Unidos para viver. É para esse público que dirige sua campanha. Ele precisa de todos os votos e o aquecimento global é um tema que pode galvanizar qualquer pessoa, de qualquer origem. Sua argumentação atinge o catastrofismo bem fundamentado. Seu lance mais significativo é a possibilidade de o monumento às Torres Gêmeas aniquiladas pelo terrorismo serem inundadas. Aí ele toca no coração da América: a luta de Bush contra o terrorismo fica assim inundada por um problema maior e na maré alta desse problema está bem acomodado o próprio Al Gore.

Ao longo do filme, aparecem Bush pai e Bush filho nos seus gestos e palavras aterradores. Aparece também o desfecho da campanha presidencial, em que todos tiveram que engolir o texano bruto, que perdeu a eleição por cem mil votos (a mesma diferença que deu a vitória a Kennedy sobre Nixon). Esse é o tema do documentário, que expõe o auto-centrismo da mente do candidato. É só verificar o papel que nos cabe no imbróglio: o Brasil jamais é citado, é apresentado como uma massa de terra e de plantas ameaçadas pelo fogo (tem mais vermelho nas regiões fora da floresta amazônica do que dentro dela, pois é irrelevante ser preciso, o importante é mostrar como somos queimadores de árvores).

A Argentina, ao contrário, é citada, assim como a Índia. Quando Al Gore se refere ao local onde nos encontramos, ele fala em continentes. Quando aborda a Índia, cita o país. Não somos um país. Somos uma porção do planeta que, no concerto internacional das nações, vai cumprir seu destino de plantation, pois Al Gore prega o combustível verde, o biodiesel, para se opor aos negócios da família Bush, o petróleo.

Podemos imaginar o que vai nos restar se Al Gore for eleito: seremos uma enorme plantação de cana, de norte a sul, de leste a oeste, como se costumava dizer nos anos 40 e 50 (já estamos avançados nesse processo, mas vai piorar). Aqui não existe uma nação. Os americanos reconhecem a existência da Argentina, que não lhe faz sombra, mas tenta ignorar o império brasileiro, a grande nação de vasto território arável, com enormes reservas de água e de outros recursos naturais. A receita de Al Gore é: me elejam presidente, que trarei álcool do Brasil para acabar com a grana do petróleo. Ou seja, seremos o próximo Oriente Médio.

A revista The Economist lamentou a derrota para Bush, em recente editorial em que comenta o documentário. O documentário fez a cabeça dos formadores de opinião. Agora só restam alguns obstáculos, como os outros candidatos democratas, para chegar ao poder. Então poderá se apresentar como o futuro presidente americano. Seus problemas vão acabar.

Um detalhe importante: toda a luta científica contra o aquecimento global é essencialmente americana, na sua visão. Ele mesmo soube do assunto nos anos 70, graças a seus professores. Seus amigos cientistas são todos, ou quase todos, da América. Quem falou primeiro que a Terra é azul? Yuri Gagarin, foram os soviéticos, que nem são citados. O que pega na sua conferência são as fotos das missões Apolo. Mas ele tem o cuidado de citar a bomba atômica, exemplo da tecnologia a serviço da guerra, quase que como um catástrofe natural, como os furacões. A bomba sobre duas cidades superpopulosas do Japão, o massacre de centenas de milhares de pessoas desarmadas, nem sequer foi lembrada como obra americana. Daqui a pouco vão dizer que a bomba é coisa de brasileiro.

9 de junho de 2007

INTELIGÊNCIA É EMOÇÃO



Você não se emociona com o que não compreende. Ignorar gera resistência e muitas vezes ódio. Mas entender acaba tocando o coração. A emoção portanto não é cega e não basta a si mesma. Ela é o resultado da intenção de entender. Quem se emociona não é obrigatoriamente inteligente, mas expressa recados claros da mente. Por isso, se você tem a intenção de emocionar, não aposte na burrice do receptor, naquilo que parece ser infalível para fazer verter lágrimas. As pessoas choram porque conseguem ver o que estava oculto, enxergar o que parecia inacessível, aprender o que jamais tinha sido sequer sugerido.

Mas o que acontece é a repetição de chavões que fazem as pessoas se emocionarem, poderão dizer. Aí é que está o engano. As pessoas não se emocionam sempre pelos mesmos tipos de enredos ou desfechos. Elas se emocionam porque em algum lugar da obra, da narrativa, do exemplo, eles encontram a chave para o entendimento. Por isso parece ser tão incompreensível porque filmes ou livros que aparentemente nada possuem, a não ser um amontoado de soluções prontas, fazem o maior sucesso. É que em cada uma dessas obras, se destacam as revelações que atingem o coração pelo caminho aberto da mente.

O que se repete é o esclarecimento. Na comédia romântica, por exemplo, a descoberta do amor vem pelo insight sobre o parceiro que esteve sempre ao lado e jamais foi percebido de maneira clara. Sempre funciona: o amante em potencial não enxergava o que estava explícito e só quando ele vê de maneira clara é que corre, no final do filme, para encontrar seu grande amor. Mas isso vira um truque! pode-se contra-argumentar. Não concordo. Cada peça, filme, romance, precisa palmilhar o caminho do entendimento dos personagens para poder emocionar. Não se trata de empilhar as situações já consagradas. Mas de refazer o trajeto, que aparentemente é sempre o mesmo.

Fica então difícil saber porque as pessoas se emocionam com algo que já foi explorado até a exaustão. É porque o lugar comum tem outro significado: o comum, no caso, é o que acontece a todos, mas em cada história tem sua identidade própria. O comum não é o batido, o Mesmo execrável. Quando a mesmice assoma, ninguém gosta. O sucesso vem quando o autor palmilha o árduo caminho do entendimento na sua narrativa. Quando as histórias se parecem, mas mantém sua especificidade, fica ainda mais encantador. Porque nos reconhecemos em histórias parecidas, mas nunca iguais. Praticamente relembramos a fonte da emoção: saber primeiro, para chorar depois

Há emoção quando há inteligência, em qualquer nível. Não se trata da tal inteligência emocional, como se o entendimento estivesse a reboque do romantismo. Costuma-se dizer que só podemos entender quando sentimos. É uma percepção pelo avesso. É exatamente o contrário. Só podemos sentir quando entendemos. Grandes poetas não perdem tempo em gerar emoção se derramando em versos. Mas fazem como João Cabral de Melo Neto: limpam a palavra até o osso, mantêm a dureza do ofício, buscam a engenharia no lugar do açúcar e o resultado é devastador. Sempre me emociono com João Cabral, porque ele aposta na compreensão dos processos para tocar fundo o leitor.

Alguns roteiristas já viram esse nó de maneira muito clara e por isso estendem até o limite a elasticidade das situações. O que desencadeou este texto foi o filme Mais estranho do que a ficção, do roteirista Zach Helm, dirigido por Marc Forster, com Emma Thompson, Dustin Hoffman, Will Ferrer, Maggie Gyllenhaal e Queen Latifah. É sobre literatura: um personagem escuta a voz feminina de uma narradora, que descreve a vida dele, personagem. A escritora está em crise criativa, pois ficou prisioneira de uma obra assassina, que mata seus personagens. O protagonista inventado acaba sendo real e se insurge contra a própria morte.

O filme narra a jornada de um imbecil até o entendimento, para usar o título de uma peça de Plínio Marcos. E revela a transformação da escritora, prisioneira dos horrores de Dostoiewski, que se liberta para uma história em que seu personagem se salva não por se insurgir contra sua própria morte anunciada, mas porque deixou exposto o truque narrativo ao se conformar com seu fim. É poupado porque esclarece a autora sobre sua crise criativa e ganha a chance do amor ao se entender com alguém exatamente oposta a ele. Um belo filme, inteligente, que por isso mesmo emociona.


RETORNO - Imagem de hoje: cena de "Mais estranho do que a ficção". Emma Thompson e Queen Latifah: a escritora em crise criativa e a inesquecível secretária de autores travados.

8 de junho de 2007

UMA CARTA BRASILEIRA DA ITÁLIA


Daqui a uma semana sai o novo livro de Julio Monteiro Martins, "L´amore scritto". Publiquei na quarta-feira, dia 6, no espaço Literário do Comunique-se, meu texto "O tempo é a pátria do migrante" (que está também no meu site). Enviei a repercussão do artigo para Julio, que me respondeu com esta carta:

"Caro amigo Nei Duclós,

Fiquei realmente comovido com o seu texto e com as respostas enviadas ao site, porque é uma emoção ao mesmo tempo amarga e cheia de orgulho ouvir escritores do país que fui obrigado a abandonar, da pátria do exílio, comentar a minha ausência, o significado de um passado de lutas e de um presente ignorado, vivido em terra distante e numa língua diversa. Memória, missão e oblio numa mesma página.

O nosso Fernando Pessoa dizia "a minha pátria é a língua portuguesa". O escritor em exílio, independente dos seus mais profundos sentimentos, não pode dar-se ao luxo de dizer ou de pensar a mesma coisa. Deve tornar-se "planetário" não por vocação cosmopolita, mas sim como certas crianças perdidas na floresta que para sobreviver aprendem as leis da selva e acabam por saber distinguir as ervas boas das venenosas, em um ambiente exótico e cheio de insídias.

Mas tem um aspecto da minha entrevista, citado por você, que eu gostaria de aprofundar: foi dito que no Brasil a minha obra literária - e quem sabe eu mesmo, como personagem - é vista hoje, pelos poucos que ainda a conhecem, como uma coisa do passado, superada. Este é com frequência o meu próprio sentimento, e é assim que as aparências indicam. Mas a verdade é bem outra. Creio que, a despeito de mim mesmo, represento alguma coisa ligada ao presente e ao futuro, porque esta minha condição de "escritor migrante", de saltimbanco internacional em defesa da "literatura alta", é uma condição do homem contemporâneo que foi antecipada na minha vida, mas que tenho certeza que se tornará comum no futuro.

O mundo se fragmenta e o conhecimento e as aspirações de realização individual no campo artístico, científico e intelectual se expandem no espírito dos mais capazes. A realidade no entanto se apresenta estreita, tímida e lenta demais para que estes homens e mulheres possam alimentar esperanças de realização e de reconhecimento futuro no país de origem. E assim, para não sucumbirem, não lhes resta outra alternativa além de romper o cordão umbilical da pátria e sair pelo mundo, não à procura do mundo em si, mas à procura deles mesmos em uma imagem ideal, que está à espera deles em qualquer parte. Talvez os brasileiros tenham algo a aprender com o meu percurso, com o sofrimento e a superação que o identificam.

Fiquei muito feliz de encontrar no seu texto a lembrança da forte amizade que me ligava ao Caio Fernando Abreu, ao nosso amor pela literatura, a leitura compartilhada que fazíamos dos nossos novos textos, mas também dos textos dos autores que admirávamos, a experimentação conjunta de novas técnicas narrativas, que fazia da criatividade literária para nós dois naqueles anos de severa opressão institucional um jogo e uma alegria sem fim. Obrigado, Nei, por ter reevocado no seu texto o que terá sido talvez a parte melhor de mim.

Com antiga amizade,

Julio Cesar

RETORNO - O trecho em que me refiro ao Caio está só na versão do Comunique-se (link ao lado, para quem é cadastrado). Reproduzo aqui o parágrafo: "Julio Monteiro Martins nasceu em Niterói. No Brasil publicou nove livros, entre romances e contos. Seu livro de contos Torpalium foi prefaciado por mim, no final dos anos 70, depois que Julio me foi apresentado por Caio Fernando Abreu. Advogado, defendeu meninos de rua e é um dos fundadores do Partido Verde brasileiro. Há anos vive na Itália, onde publicou três livros na língua de Dante e é professor da Universidade de Pisa nas matérias de Língua de Português e Tradução Literária. Sua Sagarana é também uma escola de narrativa¸ localizada em Lucca."

7 de junho de 2007

ELES MOITAM PARA CHUPAR





Se você fizer algo admirável, e tem plena consciência do seu feito, e ao mesmo tempo só recebe de volta bolas quadradas, evasivas, silêncio, oposição pura e simples, sem justificativas, e moita geral, não tenha dúvida: é sinal de que você está sendo tungado. É o que acontece com a obra impressionante do brasileiro Carlos Castaneda (ao que tudo indica, sobrinho do grande Oswaldo Aranha), naturalizado americano em 1957 e escritor de sucesso, que morreu de câncer alguns anos atrás. São inúmeras as chupadas que suas descobertas desencadearam. Jamais lhe dão o crédito, enquanto o colocam na gavetinha dos autores superficiais e comerciais. Os exemplos são inúmeros, mas um se destaca: “Poder além da vida”, filmeco baseado em obra castanedistica de Dan Willman, o ginasta que escreveu uma autobiografia ficcional sobre seus tempos de juventude.

Nick Nolte (sempre um grande ator) faz um Don Juan que inclusive desperta a atenção intensificada segurando o aprendiz pelas costas, como acontece nos livros de Castaneda. Nos Estados Unidos, apontaram as semelhanças e coincidências, mas é algo mais: é simplesmente uma cópia mal feita do aprendizado do guerreiro, tendo à frente a técnica de limpar a mente de tudo o que for inútil. Os autores (escritor, roteirista e cineasta) poderiam citar a fonte, mas preferem fingir que não existe a sintonia explícita. É para isso que serve a moita: para chupar o que foi feito de original e profundo.

Mas a volta do dvd aqui para casa nos trouxe um grande filme: “A Rainha”, em que Helen Mirren, vencedora do Oscar por sua atuação, faz uma rainha Elizabeth antológica. É a história da monarquia que foi salva num momento crítico, a morte da Princesa Diana, por um trabalhista, Tony Blair, exatamente a pessoa que foi eleita maciçamente para modernizar o sistema. Blair pressiona a rainha para se manifestar sobre a morte que mobilizou multidões em frente ao palácio, pois sabe que seu país, do jeito que foi formado e existe, jamais poderá ser uma república, será sempre uma monarquia.

O filme é absolutamente perfeito. Mistura cenas reais com ficção e mergulha nos bastidores do poder, sugerindo mais do que mostrando e fazendo um diagnóstico arrasador sobre a insensibilidade, a frieza, a indiferença de um trono manchado de sangue. Mas o maior feito do filme é isso que ingleses e americanos sabem fazer como ninguém; a atualização dos mitos. Aparentemente, o cinema desses dois países abordam os heróis, as personalidades públicas que pertencem ao Olimpo das duas nações, como pessoas precárias, humanas.

Mas ao fim e ao cabo, ressurge a força original dessas representações humanas, síntese dos seus povos, que são projetados para um tempo futuro, mantendo assim a escrita: sim, são grandes personagens e crescem quando são denunciados em sua pequenez. É um trabalho de ourivesaria em que entram História, memória, mitificação e realidade. A Rainha, no final, mantém-se firme, apesar da crise de credibilidade que sua instituição enfrentou. Quando aprenderemos com eles? Aqui, continuamos destruindo nossos mitos, numa sucessão de ataques suicidas à formação da nacionalidade. Não se trata de se entregar a velhas abordagens patrioteiras, mas trazer para a exposição pública do século 21 o ferro maleável da construção de eventos e seus principais personagens.

Destruir nossos mitos faz parte do sucateamento da soberania nacional, trabalho ao qual se entregam tantos brasileiros. Basta um gesto para despertar o adormecido sentimento de pertencer a uma grande nação. Não é por acaso que o livro sobre Dom Pedro II, de José Murilo de Carvalho, um dos nossos melhores historiadores, está se destacando na lista dos best-sellers. Anexamos a obra à nossa biblioteca. Quando terminar de ler, vamos comentar. Dom Pedro II, Getúlio Vargas, Siqueira Campos (o tenente revolucionário) e Carlos Castaneda, entre tantos outros, merecem ser melhor conhecidos e analisados.

É crime moitar sobre os protagonistas que marcaram as épocas em que viveram. Ainda mais agora, em que tudo é usado para a politicalha. Um povo instruído sobre suas origens e transcendência não se deixa levar por discursos matreiros.


RETORNO - Imagens de hoje: na foto principal, Nuvens, de Regina Agrella; nas menores, duas cenas: a primeira é de "Poder além da vida"; e na seguinte, Helen Mirren em "A Rainha".