23 de setembro de 2006

O ESCRAVO FAZ O SENHOR






Nei Duclós

Por que existe tanto escravo? Porque a servidão compensa, senão já teria sido erradicada. Compensa porque o escravo terceiriza a responsabilidade de ficar vivo. Deixa nas mãos do senhor a parte mais complicada, a sobrevivência, e assim acha que fica livre para o que realmente interessa. E o que pega no viver? O estar sem compromisso, o alheamento, a síndrome da mosca morta. Ficar a vida olhando pela janela ou coçando o tornozelo na sombra do umbu é o mesmo que ficar horas em frente à TV aberta e achar que a eternidade existe nesta vida. Libertar-se significa, primeiro, aceitar a morte. Depois, manter-se vivo. E finalmente romper com toda a tentação da escravatura que trazemos de milênios de opressão. Tarefa impossível nesta altura do campeonato, em que estamos confinados, numa sociedade toda ela marcada e sem saída.

SÍTIO - Uma pseudo-solução é viajar, escapar no fim-de-semana, segurar um sítio que acaba abandonado, pois estamos acostumados demais ao piso liso, ao banco 24 horas, à farmácia na esquina. Ficar alguns dias no ermo dá a sensação de liberdade, mas sabemos que estamos loucos para voltar e nos submeter aos ditames de sempre. Há outra ilusão, o de ter um negócio próprio, livrar-se do patrão. Mas nessa situação você está escravo dos clientes, fornecedores, governo, colaboradores. E quem está empregado também amarra-se a tudo que é corrente. No fundo há conforto nessa preguiça física e mental de deixar tudo como está. Por isso reeleição é um perigo. Fica assim, pode piorar. Mas pelos últimos acontecimentos, parece que a coisa degringolou e poderá haver segundo turno. Pior para nós, dirão. Teremos de aturar um novo governo, que leva todo o mandato acomodando-se e procurando meios de se perpetuar.

OUTRO - A grande ilusão da nossa geração foi a de ter saído estrada afora, achando que havia um pote de felicidade no fim do arco-íris. Mal sabíamos que o mundo estava pronto, completo e o fim é sempre o começo. Mas mudou realmente, dirão. Mudou nada. Perdemos o que tínhamos e o que adquirimos não vale um vintém. Permaneceu o grande espírito de porco humano, em que o fundamental é negar a existência do Outro, debochar de todo brilho, invejar as conquistas, destruir os planos de vôos. O verniz por cima dessa postura é o politicamente correto, são as campanhas predadoras a favor do meio ambiente, os projetos multimilionários que jogam migalhas nas favelas. Muita gente encontra sentido na proteção aos desvalidos, mas deveria haver direito de arena: no momento em que a equipe de arrumadinhos da TV viessem perguntar se agora os pobres estão felizes com as providências, como novas coleiras para os passeadores de cachorro, deveria ser cobrado um pedágio. Quer explorar a miséria? Pague. Queria ver quantos engravatadinhos fariam link no esgoto, expressando sua vasta produção de pensamento: só para ter uma idéia, não pensou duas vezes, não é para menos, afinal...

LIBERDADE - Onde fica então a liberdade? No espírito humano. Ter o espírito livre, coragem para assumir as idéias e sentimentos, canal para expressar tudo isso, é o mínimo que alguém provido de cidadania poderia fazer. O que pesa é a remuneração: no momento em que decidem te pagar um salário decente, muita convicção vai por água abaixo, pois você precisa se adaptar, assumir contradições, negar o que disse. O grande problema é a ilusão de sermos eternos. Não sabemos lidar com perdas: o sonho não acabou, Raul Seixas não morreu e 1968 continua aí. De minha parte, ainda não engoli 1964. O que os chineses acham da Revolução Francesa? perguntaram para Lin Piao, o líder que depois caiu em desgraça. Estamos analisando, foi a resposta, dada duzentos anos depois dos eventos. Faço o mesmo. O que acho de 1964? Ainda não acordei naquele primeiro de abril. Foi ali que consolidamos nossa condição de escravos.

TEMPO - Volta, Tempo, e me devolve o Brasil adulto e soberano. Volta, que estão rindo desse meu sentimento de perda. Quero de volta as reformas de base, o cruzeiro, Drummond, Vinícius, Guimarães Rosa. Saudade? Nada. Apenas procuro o ponto nodal da nossa decadência. Acho o nó, puxo o fio e por ele se desfazem todas as ilusões e perdas. Sonha, coração exausto.

RETORNO - Imagem de hoje: João Goulart, o presidente deposto em 1964, dando exemplo para a nação (ele está lendo!).

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