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24 de setembro de 2006
O ADMIRÁVEL CINEMA ARGENTINO
Fui brindado, neste início de domingo, com a emoção de ler Urariano Mota no La Insignia sobre meu livro O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento. Diz ele:"Por isso podemos escrever sem medo e somente com a percepção do que lemos: algumas crônicas de Nei Duclós têm uma poesia a que e a quem o próprio Rubem Braga pediria a bênção. E mais. Um texto como É de trem que eu preciso paga todo o livro agora impresso. As suas linhas sobreviverão a este 2006 por muitos e muitos anos." Urariano se debruça com cuidado, conhecimento e sensibilidade sobre o livro no seu longo e generoso texto. Emocionado demais, só tenho a agradecer a Urariano e sua leitura poderosa, que me enche de legítima alegria. A seguir, o texto de hoje.
Nei Duclós
O cinema argentino é a expressão de um país que amadureceu quando foi destruído pelas perdas internacionais, gerenciadas cruelmente por uma elite interna traidora. Os argentinos colocam os torturadores da ditadura na cadeia, expulsam presidentes a panelaços e não perdoam o que fizeram com eles. Por isso seu cinema é tão notável, disparado um dos melhores do mundo na atualidade. Existem inúmeros exemplos, mas prefiro ficar com os dois de Juan José Campanella, estrelado por esse fantástico talento que é o Ricardo Darin: O filho da noiva, que vi há um mês e O Clube da Lua, que vi ontem. São filmes perfeitos que abordam, o primeiro, a classe média pressionada pela crise e que luta para manter um negócio familiar, cercado pelos monopólios; e o segundo, a classe média empobrecida que vê no clube um local para se manter íntegra, enquanto tudo ao redor, especialmente o mundo empresarial e do trabalho, desmorona e as cidades se transformam em cemitérios.
PUNIÇÃO - Vejam que temas! Temos exemplos de sobra no Brasil para fazer algo parecido (por que não imitamos as coisas boas?), mas preferimos outra coisa. Há, entre nós, a certeza granítica de que ser da classe média é uma desonra, uma espécie de crime que merece ser punido. Empobreceu? Bem feito, quem manda ser alienada. Então não temos filmes sobre o mundo do trabalho e dos negócios. Isso é coisa, digamos, do tal capitalismo. Quando sabemos que comprar, vender, ganhar o pão com o suor do rosto são atividades multimilenares, anteriores à invenção do capitalismo por Marx (sim, foi o velho barbudo que inventou tanto o capitalismo quanto a burguesia; antes dele nada disso existia), então ficamos pasmos com esse tipo de preconceito. Como o mundo da honestidade é altamente suspeito, então se entroniza a putaria como modelo de comportamento. Transgredir o tempo todo é a expressão de um país, o Brasil, que não amadureceu quando foi destruído pelas perdas internacionais e pela elite traidora interna. Os torturadores, ditadores, morrem de velhos, depois de continuarem dando as cartas. Por que acontece isso? Porque nos falta coragem, que sobra entre os argentinos.
TURISMO - No cinema, na maioria das obras, somos adolescentes tentando impor nossa sexualidade, a confirmar aquilo que uma senhora muito digna e debochada dizia: os jovens acham que só eles trepam. Vejam alguns exemplos. Cidade Baixa, fica parecendo a celebração da turismo sexual e da prostituição que se quer charmosa. Existem intermináveis cenas de sexo explícito, como a mostrar como se deve trepar. Bem no meio de qualquer cena, as pessoas se pelam e começam a fungar. Outro exemplo é Madame Satã. Foi o Pasquim que destacou o personagem homossexual e lutador da periferia carioca (o que era um tema jornalístico poderoso na época). Hoje, visto no filme, acaba se transformando num modelo de liberdade sexual e de comportamento. Lázaro Ramos, que é um bom ator, fica devendo (mas ele foi tão premiado!, dirão; é verdade; mas é o que eu acho). Não quero perder tempo com baixaria. Sobre obras brasileiras excelentes tenho falado aqui várias vezes. Hoje preciso comentar o cinema argentino.
VOLTAGEM - Vejam que cena erótica. Ricardo Darin se separou e dorme no clube. Lá, encontra colega da diretoria tentado roubar o cofre, pois está desesperada com a falta de dinheiro e o desemprego. Ela pede perdão e os dois saem até a casa dela. Na hora de se despedir, ela o convida para ficar. Ele recusa, e enquanto argumenta começa a beijá-la. Os dois se colocam em pratos limpos: dizem que estão apaixonados por seus ex-parceiros. Feito isso, entram na casa. Não aparece uma bunda pulando, um pêlo púbico, um par de perna escancarado. Nada. Mas existe alta voltagem erótica, fruto da situação desesperada dos dois, que se tocam num momento extremo. Ou seja, o sexo não é gratuito, tem a ver com a mente das pessoas, com sua condição social, com a quadra da vida onde se encontram. O cinema argentino não é como nós, que estamos a toda hora dizendo: vejam mamãe, como somos sexy.
DEBATE - A cena mais importante e sem dúvida, antológica (é talvez a melhor cena do cinema contemporâneo) é a discussão entre os sócios do clube , que vão decidir se vendem para um grupo de investidores que querem fazer dele um cassino. É uma cena longa, em que dois protagonistas argumentam, um a favor da venda, e outro contra. Darin (o cara que é capaz de mostrar emoção suprema sem mover uma linha de rosto, como acontece na cena em que assiste o balé da filha) dá razão ao seu adversário, que acena com empregos para os sócios do clube. Mas pergunta se a razão é suficiente. E arremata: não perdi minha integridade, pois quando as porcarias eletrônicas estragaram e eu fiquei desempregado, vim aqui no clube e permaneci inteiro. E pergunta: que valor (ele se referia ao dinheiro) existe na amizade entre nós?
CHEGA - Esse é o grande valor do admirável cinema argentino, que encerra as principais lições que devemos urgentemente aprender. Chega de coxa e rola pulando em frente às câmaras. Transgressão verdadeira é outra coisa: é resgatar o que perdemos nessa ditadura global que nos escraviza. E não ficar pelado, disponível para o deboche internacional.
RETORNO - Imagem de hoje: Ricardo Darin no filme "O Clube da Lua". Darin está acompanhado por magnífico elenco. Detalhes neste site especializado.
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