17 de setembro de 2006

MEDICINA CIRCULAR





Nei Duclós

A gripe cruza o umbral das duas semanas e volto ao médico. Ele se decide pelo antibiótico, pois não gostou do recado do estetoscópio. Tomo um comprimido por dia durante uma semana. A gripe finge que se retira, mas surge um problema dermatológico. Isso é comum quando se toma antibiótico, que baixa a resistência do organismo, me confidencia outro médico. Ele me receita poderoso remédio que deve ser ingerido de três em três dias. Á primeira cápsula me destrói o estômago. Leio a bula e diz que o troço pode provocar casos hepáticos fatais. Decido esperar para ver se o efeito vale a pena, apesar do risco.

Nas farmácias, me armo de paciência. Compre o genérico, me dizem, é mais barato. Ou: só temos o genérico, é a mesma coisa. Experimentado em fórmulas no lugar de produtos, em que muitos resultados foram pífios, prefiro não arriscar. Digo minha escolha para o atendente. Ele não acredita. Olha o cara, podendo levar o mais barato, prefere gastar. Conto o troco. Ficarei liso depois de sair do estabelecimento.

Não acredito em medicina, acredito em médicos, cada vez mais raros. Depois dos 50 anos, prepare-se. Você será xingado por ter ido tão longe. Oftalmologista acha um desaforo se você mantém ainda o foco. Todo seu corpo está errado. É preciso virar um atleta. Corra, ande, se exercite. Diminua a sal, faça dieta balanceada, exagere nas frutas e legumes. Frituras e doces, jamais. Consuma a vida crua, que ela retornará em bem estar. Cuide da postura, da aparência. Não pareça...velho.

É sempre um mistério. Você vê os outros, onde de perto todo mundo é normal. Mas não se enxerga. Disso cuidam os semelhantes. Seu cabelo está crescido demais, suas costas estão curvadas, sua pele precisa de tratamento. Lembro da juventude. O corpo estava também totalmente errado. Era magreza excessiva, falta de cálcio, o cabelo então nem se fala. O corpo humano é um acinte para uma cultura fundada nos comerciais. Pobres criaturas inventadas pelo tratamento da imagem são chamadas de poderosas. Os corpos perfeitos cercam a precariedade humana por todo lado. Esse é o paciente ideal da medicina circular: alguém que não precise de médicos, pois está dentro da lei e da ordem mundiais.

É como o crédito. Banco adora emprestar para rico. Quem precisa acaba ficando sem acesso ao dinheiro. A saída foi ceder dois vinténs para passeador de cachorro, que, está provado, é exemplo de bom pagador. A população abaixo do subemprego é assim: faz de cem reais o início de um império. No fundo, a ciranda financeira é o único negócio. As lojas viraram unidades arrecadadoras de prestações. Você deixa a merreca lá e vai retirando móveis ou roupas descartáveis. É como pagar aluguel. Imagine a quantidade de camisas que você já usou. É sempre a mesma camisa, que você vai pagando ao longo da vida. Nesses usos, não há leasing, a possibilidade de pagar tudo em troca da posse definitiva. Quando você adquire enfim o produto, está na hora de trocá-lo.

E se você se recusar a fazer o jogo, há muita gente querendo entrar. Ninguém faz falta na sociedade circular. Não há mais espaço para um poeta consumidor de uísque, como Vinícius de Moraes, ou um obeso memorialista genial como Pedro Nava. Ler hoje está relacionado com fazer exercício. Se você cruza um romance, é como numa maratona. Se lança um livro, deve ter o aspecto triunfante de um praticante de triatlo. Pule na água, pedale cem quilômetros, cruze o canal da Mancha nadando e pronto, já podes dar um autógrafo.

Mas isso são coisas que não se devem dizer. As pessoas ficam ofendidas com análises assim. Acham que você está errado por achar que tudo tem esse aspecto sinistro de circo pós-moderno, em que os animais foram substituídos pelos seres humanos irados e em pânico. É preciso desfrutar a vida como ela é. Deixe essa lição: você passou 60 anos achando tudo bom, comeu brócolis com acelga a maior parte do tempo, correu como um desesperado pelas avenidas lisas e brilhantes do mundo publicitário, doou sangue e contribuiu para todas as campanhas corretas. Pode então morrer em paz, junto com seus documentos. Não faça como uns e outros, que vivem reclamando. E não esqueça de fazer sinal de positivo antes de fechar a tampa.

RETORNO - Imagem de hoje: o pampa, que a tudo cura. Foto de Anderson Petroceli.

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