29 de abril de 2006

ÀS ARTES, CIDADÃOS!





Precisamos entender a procissão de crimes que desfilam diante de nós todos os dias. Se não fizermos isso, o obscurantismo cuida da tarefa. A direita está cheia de argumentos poderosos para justificar a própria existência. Usa o caos não para achar uma saída, mas para poder existir socialmente, ou seja, dentro da cidadania em pânico. Começa pelo abandono dos bebês. Em séculos anteriores, crianças rejeitadas eram colocadas na roda do convento. Mais tarde, eram abandonadas na porta de famílias. Hoje vão para o lixão. A família se esgarçou, e com ela todo o tecido social. Filhos matam pais, pais matam todo mundo ao redor. Qualquer conflito é resolvido na faca e na bala. Adolescente agredido volta armado e dá três tiros na cara do desafeto. O cara cambaleia diante do táxi que iria pegar e cai. O assassino é filmado de costas se explicando. Pessoas que dão dois tiros à queima roupa na namorada não representam risco à sociedade, diz a Justiça. Onde está a fonte desses males e por que nada se resolve?

PULSO - Falta pulso forte, falta governo, clamam os saudosos da época em que tudo isso não podia ser noticiado. O problema é outro. Temos governo e ele está na mão da ditadura financeira, manipulada dentro e fora do país. Na política econômica não se mexe, pois mexer no rumo da bufunfa significa repensar o país e isso levará no mínimo uma geração. Repensar seria como fez o Japão no século 19, que parou tudo para cuidar da educação de toda a população. Mas o Japão é do tamanho do bairro Butantã e estava unido por língua e raça, por uma identidade nacional. A nós falta tudo. Nossos conflitos fundamentais continuam intactos. Um deles é a oposição entre centralismo e descentralização do poder. Outro é a divisão do país em guetos. O principal é que não nos identificamos com isso que chamam de brasileiro. O fosso está profundo demais, mas ele tem uma explicação lógica: a culpa não é da democracia, mas da ditadura, que continua em vigor. A elite civil saqueou as ruínas do país. Existe um poder voltado de costas para as necessidades da população. Há um verniz sobre a tragédia, a publicidade e o marketing e a mídia comprada. Qual a saída? Ninguém sabe. O mínimo que podemos fazer é entender o que se passa. É nos convencer que o problema é político, que não resolvemos a pendenga instaurada em 1964. Horror, dirá a direita. Bobagem, dirá a esquerda. Inverossímel dirá o centro. Pode ser, dirão os espíritos livres.

CAMPO - Vejam a agricultura. Cidades inteiras expulsam seus habitantes, deserdados do mínimo que era garantido pelas grandes plantações. A produção de alimentos decai. Voltados para a exportação de proteínas, pagamos agora caro depois de tantos anos de euforia falsa, pois a comida não chega de maneira suficiente para os brasileiros. São pobres porque não querem trabalhar, diz a direita. É um problema social, diz a esquerda. Precisamos extrair energia da biomassa, diziam os grandes projetistas. Esse vento servia para levantar pipa, agora gera energia, diz o presidente, na sua sucessão de alocuções estapafúrdias. Menos imposto mais emprego, diz a direita, de olho em mais butim. Enquanto isso, ninguém está a salvo. O trânsito pára em São Paulo, como mostrou o primeiro bloco da grande reportagem do Globo Repórter de ontem, liderada por Caco Barcelos, que convocou a nova geração de repórteres. Depois o programa entrou nas historinhas humanas e de serviço e perdeu sua majestade, mas é assim que se faz jornalismo hoje. Quando acertam a mão, logo vem a interferência. É preciso focar nos clientes. A imprensa não tem clientes, tem cidadãos que lêem e vêem. Mas Caco Barcelos continua nos deslumbrando com sua garra e talento.

FILME - Tive o privilégio de ver a apresentação do novo filme de Tabajara Ruas, que tem o título provisório de "O General e o Negrinho". Inspirado na famosa lenda O Negrinho do Pastoreio, o novo filme de Taba atinge o mais alto nível da sétima arte. Preparem os seus corações. Num relance, na ilha da edição, vi Miguel Ramos detonando. E é impressionante as presenças de Werner Schuneman (o general) e Tarcisio Meira Filho (o índio Torres), que fazem parte de um elenco de 36 atores. Na foto deste post, Taba dirige. O Brasil precisa da arte em sua grandeza, precisa de sobriedade e emoção, precisa de espírito civilizado pelo esplendor do humano. Precisa de livros que contem tudo, com todas as letras, de projetos bem sucedidos, de gente com capacidade de fazer. Isso serve para a política, a economia, a História. Às artes, cidadãos!

RETORNO - 1. Miguel Duclós faz reveladora análise sobre o mito da Estrela da Manhã e do Gênesis no seu blog. Miguel posta de vez em quando. Quando publica algo, é um arraso. 2. O texto Zona do Crepúsculo, de Daniel Duclós, é uma obra-prima de humor e literatura. Imperdível. 3. Eduardo San Martin me envia mensagem de Nova York e diz que o Diário da Fonte é jornalismo cultural de um homem só. E que devo procurar patrocínio. 4. Delmar Marques lê o texto "Os blocos de Mestre Bazinho", publicado aqui no DF e no meu site, e lembra suas farras carnavelescas. 5. No Comunique-se, Gustavo Werneck diz que minhas crônicas são poesia e História e que injetam ânimo nos jornalistas da nova geração.Elizabeth de Los Santos de Moraes diz que não vai ler mais meus textos, pois sempre chora com eles, o que é um dos maiores elogios que já recebi. E Ronaldo Amorim Santana, também nos comentários do Comunique-se, me envia um abraço saudoso, nós que nos encontramos a cada dez anos.6. O título desta edição não é inédito, mas fui eu que criei. Serviu para reportar a inauguração do Centro Cultural Fiesp na Revista da Indústria em anos passados.7. A foto, da Divulgação, faz parte de uma bela reportagem sobre o filme, de autoria de Geraldo Hasse, membro honorário e excepcional comentarista do Diário da Fonte, para o Jornal Já, de Porto Alegre.8. Meu texto "A arte por um fio", está desde hoje no La Insignia, graças a Urariano Mota e a Jesús Gómez.

27 de abril de 2006

A ARTE POR UM FIO





Nei Duclós

Tenho escutado horrores sobre o departamento de arte. Depois que o acesso ao lápis virou lugar comum, todo mundo se transformou em desenhista. A tecnologia colocou à disposição os mais completos programas de diagramação e paginação, mas esqueceu de avisar que existe um ofício por trás da ferramenta. Use o cepilho para aplainar uma tábua e verás a coisa torta que você vai conseguir. Mas como bastam alguns clics para enquadrar o texto em algo soberbo e colorido, então o costume é desprezar aqueles que abriram mão das galerias para descobrir nas letras, impressos, ilustrações, o equilíbrio necessário para que a direção não nos fuzilasse no dia seguinte ao fechamento.

O editor de arte é o exercício pleno do poder. O título é de três linhas, me dizia um deles, na Abril. Ele nem sequer prestava atenção no redator. A primeira linha é de sete toques, a segunda é de onze e a terceira é de oito. E te dava as costas. Tinha mais o que fazer. Essa matéria está estourando e não temos tempo para colocar no tamanho. Vou cortar pelo pé, diziam os diagramadores da Folha de S. Paulo. Por que meu texto entrou pela metade? A foto estava boa, reclame com teu editor. Desconfiado por natureza, o cara que senta atrás da prancheta e agora na frente da tela com todos os recursos não faz amizade no primeiro instante. Ele sabe que em qualquer pepino ele será o primeiro suspeito. A entrevista terminou com uma pergunta. O original do revisor está com visto e está certo. A que horas chega o artista?

Ele sabe também que dificilmente será lembrado pelos colegas que prestam atenção apenas nas letrinhas. Esses fingidos cercam a arte para conseguirem o máximo de resultados para reportagens toscas. Querem que a arte salve a falta de informação ou de talento. Por isso o editor de arte é uma estátua de Rodin num circo de cavalinhos. Todos rodam pelo mundo afora, menos ele que sabe ser o guardião de um estuário, para onde confluem todas as palavras. O mutismo também tem a ver com a síndrome do palpite que assola as redações. Todos têm uma idéia genial sobre o aproveitamento do troço que eles produzem, mas nada entendem de identidade visual, de peso das imagens, de seqüência. E ainda ficam horas para inventar algumas legendas e títulos, como se isso fosse o parto da montanha mágica.

Quando os textos eram coisas impressas em papel sedoso e duro, e que precisavam ser colados com grude comum numa grande folha, o diagrama (ou algo que valha), aconteciam episódios impensáveis hoje. Os donos do jornal que, deslumbrados, faziam o past-up da primeira edição. Era vê-los gordinhos e engravatados brincando de fazer jornal. Deixa eles, me dizia o diretor de redação, descobriram a pólvora, daqui a pouco cansam. O diagramador que colocava parágrafos de ponta cabeça e descobriram que ele era analfabeto. O poderoso que arrancava as notas da Ilustrada xingando o autor do textículo, furioso com a falta de conivência com a necessária auto-censura. O recado que foi posto sem querer na maçaroca que o pobre diagramador formatava como coluna social e que provocou um escândalo sem limites. O responsável pela arte não lia as notas, claro. O que estava no bolo, publicava.

Pelo silêncio, todo editor de arte é um pensador. Mas alguns são fundadores de uma escola filosófica, como foi o caso de Reginaldo Fortuna, com quem fiz uma news-letter por dois anos. Fortuna era conferencista, pois já estava na idade memorialística quando me aproximei dele. Mas escutava como ninguém. Quando falei o que esperava do pequeno jornal ele me cravava aqueles olhos pequenos de quem enxerga o milímetro torto de um fio e dava uma piscada. Era o sinal de que tinha captado e que faria o certo, ou seja, como bem entendesse, e isso iria me agradar, como realmente não só agradou, como deslumbrou. Fortuna inventou a diagramação enxuta que mais tarde os softwares providenciaram. Fazia isso no olho e na mão, conceituando o tempo todo.

Eu fazia uma diagramação suíça, na linha reta, no Pasquim, me contava ele em intermináveis papos depois de nossas reuniões de trabalho. Aí vinha o Jaguar e dava uma esculhambada em cima, colocava o Sig, essas coisas. Dava certo. O importante é que a arte obedeça aos fundamentos. A partir disso você cria o que quiser. Senão vira carnaval, não funciona. Ficava esperando minha reação. Eu só ouvia, imóvel. Ele continuava: Por que um livro tem margens ao lado dos textos? me perguntava. Para colocar o dedão, o polegar, para que a pessoa possa segurar o livro sem atrapalhar a leitura, dizia Fortuna, leitor assíduo de Gutemberg, o pai de todos. Fortuna era admirador dos argentinos que vieram para o Rio mudar as artes gráficas no Brasil. Admirava seus mestres e os citava sempre.

Na época em que trabalhamos juntos fortalecemos uma amizade que tinha apenas sido ensaiada na época da Ilustrada (quando ele era o editor de arte do Folhetim). Fortuna estava praticamente fora do mercado. Ninguém importante (com a chave do cofre) telefonava para ele. Era o tempo das barbaridades inspiradas pelo USA Today. E nas revistas, era costuma entortar as fotos. Ninguém vira a cabeça de lado para ver ou ler, dizia ele, que implicava com essa mania confundida com criatividade. A arte não podia provocar torcicolo no leitor. E o olho humano é traiçoeiro, dizia. Lemos da esquerda para a direita e não de cima para baixo, então por que colocar título na vertical? Era moda.

A moda agora é o flash, a porção cineasta da editoria de arte. Você visita o site e fica esperando o artista fazer suas demonstrações. Prefiro o fundo creme, a imagem fixa e limpa, o texto preto no branco, a elegância do maranhense Fortuna, que se foi prematuramente, no auge dos seus projetos. Fui avisado com algumas horas de atraso, pois os acontecimentos se atropelaram. Peguei o metrô (trabalhava na avenida Paulista) e desci no cemitério da Consolação.

Custei a descobrir o local. Todos já tinham ido embora. O sol forte batia nas flores, nos recados, nas saudades, nas orações recém feitas. Eu estava lá, no meio de um mar de sepulturas, diante de um jazigo oculto, desconfortável com a presença do sol quase a pino. O choro veio descontrolado, porque eu sabia que sentiria falta daquela voz ao telefone, me dizendo tudo o que eu precisava saber sobre imprensa, arte, diagramação, redação, sacanagens do mercado e tudo o mais. Fortuna era o conferencista de uma amizade preciosa, a pessoa que sabia tudo e que representa não só seus pares (todos seus discípulos de uma forma ou outra), mas principalmente os veteranos que fizeram História e para os quais temos uma dívida impagável.

Jamais saberemos retribuir o tesouro que ele nos colocou nas mãos e que se espalha por muitos ofícios, entre os quais o de magnífico cartunista e desenhista, texto admirável de humor ultra-sofisticado. No Correio da Manhã dos anos 50, criou duas páginas de humor para onde acorreram os grandes cartunistas que até hoje dão as cartas (e debochava das seções que publicavam as piadas e colocavam em cima "Humor"; é para avisar, dizia, ele, em riso convulso). Ao lado de Tarso de Castro, criou o Panfleto, o Pasquim, Folhetim, a nova Careta, entre muitos outros veículos. Fez misérias com seu Diz, logotipo, quando colocava a publicidade no seu devido lugar, sem os salamaleques de hoje.

Poucas pessoas compareceram ao lançamento do seu livro Acho tudo muito estranho. Fortuna não era da moda. Tinha atingido a eternidade.

RETORNO - 1. Este texto foi publicado hoje no espaço Literário do Comunique-se (link ao lado). 2. Imaginem a figura da foto como seu colega de trabalho: momentos memoráveis. 3. O desenho é uma pequena mostra do talento infinito de Fortuna.

25 de abril de 2006

A INTENÇÃO EM CLAUDIA ABREU





Claudia Abreu não precisa das mãos, nem de sotaques, nem de máscaras. Ela não grita, não faz pose, não se agiganta. Precisa apenas do que tem e não é muito: uma beleza discreta, uma presença pequena, uma voz comum. Atuar nem sempre significa encarnar personas, transmutar-se em personagens marcantes. Basta ficar de rosto inteiro na tela, como aconteceu num desses dias em Belíssima, em que Claudia Abreu enfrentou a ira da cunhada. Ela estava impotente diante do drama. Mas sua impotência não foi anunciada em expressões de dor ou raiva ou desencanto. Sem mover uma linha do rosto, ela simplesmente vestiu em camadas os conflitos que a levaram para aquela situação.

Sua cara se desmanchou, não em lágrimas, porque os olhos estavam secos. O queixo não tremeu, o nariz não fungou. Ela foi se transformando numa ruína humana. Conseguiu isso apenas trabalhando a intenção. Seu sofrimento era sua impossibilidade de ação, a dúvida de que estivesse fazendo o certo para proteger os filhos, o remorso frente à evidência. São como peles transparentes que vão se superpondo no rosto desfigurado pelas emoções em transe.

Ela não podia chorar, nem gritar, nem pedir perdão. Não podia dizer o verdadeiro motivo da sua decisão. Não podia prometer, nem jurar, nem implorar. Ela estava presa na armadilha da farsa que precisou assumir. Sua imobilidade é a transparência total. Sem músculos da face que a apoiassem, sem rugas significativas na testa, sem brilho nos olhos, ela ficou ali por incontáveis segundos, eternos enquanto víamos não a Vitória que se decompunha, mas a atriz que atingia o estado de arte.

No minuto seguinte ela chorou e fez tudo a que tinha direito. Mas naquele momento em que ficou amarrada à chantagem que a prendia, em que correntes opostas se jogavam no paredão de uma aparente submissão e indiferença, sua humanidade chegou à tona por meio desse desenho que Claudia compôs como tragédia, num folhetim que é pura apelação e falsidade.

Tem ator ruim demais ao redor de Claudia Abreu. Os caricatos, os anódinos, as potrancas, as bibelôs, os abestalhados. Uma galeria pobre para o ofício da interpretação. Mas não é isso que transforma Claudia num destaque. Com qualquer elenco, ele faria o mesmo. O que a faz intensa e maior é essa capacidade de reduzir-se à essência da profissão, que nada mais é do que trabalhar o que existe de subterrâneo, para que a aparência, o que é visto, convença, pela força da sinceridade tomada emprestada por uma técnica.

Não é para qualquer um. Pois existem divas, estrelas, damas, promessas, revelações. Mas poucas pessoas como Claudia Abreu, que interpreta confiando na inteligência do espectador, que aposta no sucesso do seu recado. E que cruza o tempo mau como se ela fosse a boa notícia de uma catástrofe chegando ao fim.

24 de abril de 2006

A FAZENDA AZUL





Visitei o Pampa num sonho. O horizonte como a linha estaqueada entre dois moirões invisíveis; o pasto coberto de flores azuis de um abril imaginado; alguns tufos de árvores de escassa presença em relação à majestade da paisagem, mas generosas na sombra sobre dois viventes. Eles aparentavam aquela idade em que tudo foi posto de lado, menos a dignidade de continuar entre o que resiste. Conversavam dividindo um chimarrão que, pelo gosto com que era sorvido, parecia feito de erva especial, das que não se fazem mais, fruto da colheita de índios migrantes, especialistas na escolha da essência do sabor e do aroma. Um deles me pareceu o anfitrião: tinha o rosto coberto por grossos óculos de grau e sombra. Era acompanhado por chapéu de feltro, colocado no chão, ao lado do tronco do umbu onde se sentava. Era calvo e olhava seu interlocutor com a cabeça levantada, como fazem os homens do pampa, em sinal de admiração e respeito quando ouvem alguém importante, não pelo cargo que ocupa, mas pelo carisma que projeta entre os raios grossos que caíam da tarde luminosa.

- Então esta é a famosa Fazenda Azul, doutor Chagas e Silva, disse o outro homem, de cabelo penteado para trás, duas entradas na fronte, e que usava uma camisa quadriculada de lã e uma bombacha fina, com os botões abertos no tornozelo. Dizia isso enquanto descalçava a sandália de marca Roda que fazia seu conforto naquela conversa prazerosa.
- Sempre à sua disposição, governador. A Fazenda Azul é propriedade não minha ou de minha família, mas como o sr. mesmo disse pelo rádio naquele 1961 em pé de guerra, ela é patrimônio da Legalidade.
- Foi o que falei agradecendo o seu gesto grandioso, Dr. Chagas e Silva. Mas parece que riram de mim e do senhor quando dei essa notícia no rádio.

Chagas e Silva era o mais notório milionário virtual da fronteira. Visto como um mendigo pela população inteira, visitava diariamente a agência do Banco do Rio Grande do Sul e reclamava de uma ordem de pagamento que esperava há tempos do Rio de Janeiro, fruto de venda de um lote de gado de primeira linha. Os bancários faziam parte da algazarra que se instalava no banco. Fingiam que procuravam, davam gritos de uma sala a outra, corriam falsamente pelos corredores, para então dar a má notícia: não, doutor Chagas, ainda não tinha chegado. Ao que então nosso herói fazia uma de suas célebres invectivas, em que se vangloriava de suas posses, o que o colocava entre os grandes potentados da campanha. Dizia isso sofrendo o embate do riso alheio, abafado nuns, explícito em outros.

Discursar era com ele. Tinha vocação para a oratória, criado que foi naquele pedaço de chão e de História, em que tudo era decidido no verbo, eventual emissário de bala. Atraía a molecada que gostava de puxar sua bengala, tirar-lhe o chapéu da cabeça e chutar pela calçada, o que o deixava furioso. Investia contra os bárbaros que não reconheciam sua posição e importância. Por isso causou estrago quando convenceu o governador Leonel Brizola de que podia contar com a Fazenda Azul no esforço que estava fazendo para impedir o golpe da direita e garantir a posse de João Goulart.
- O doutor Chagas e Silva lá de Uruguaiana, disse o comandante. Colocou à disposição as suas terras e o gado da Fazenda Azul. Esse é o gesto de um patriota, pois se a luta for longa, precisamos do apoio de todos, não só do povo, mas das classes produtivas, dos estancieiros, que tem no doutor Chagas uma de suas figuras mais proeminentes.

- Pois te digo, dr. Chagas, continuou Brizola na conversa que eu presenciava sem ser visto, já que eu era dono do sonho, o narrador onipotente que tudo provê e jamais é notado. Acredito que sua oferta foi decisiva para a Legalidade.
- O senhor está sendo generoso, governador. A Fazenda Azul é uma das maiores e melhores do mundo, mas jamais poderia decidir aquela parada.
- É como estou lhe dizendo. Essa vida na eternidade nos faz pensar. Pois cheguei à conclusão (e nesse altura Brizola dá aquele sorriso no olhar que encantava os compatriotas e contemporâneos) que sua adesão foi fundamental. Raciocine comigo: como é que os pelegos, os tubarões, os gorilas iriam peitar uma revolução que tinha como aliado um grande estancieiro? Eles contavam com as pessoas de posses para fazer a lambança. Quando ouviram eu anunciar que um homem como o senhor tinha aderido, simplesmente desistiram. Foi aí que começamos a ganhar a guerra.

Chagas e Silva nada respondeu, pois estava com os olhos cheios de água boa, daquelas que lavam o espírito e o carregam para o os campos do bem querer. Ele chorava porque finalmente alguém confirmava que tinha acreditado nele. Simplesmente o governador tinha lido suas palavras, emitidas por telegrama à sede do movimento de resistência, no Palácio Piratini. Confiara na palavra de um homem, coisa que as pessoas jamais faziam, apenas fingiam para melhor aproveitar a verve de um louco. Com o reconhecimento de Brizola, Chagas e Silva deixara de ser um mendigo e alcançara a cidadania.

-Muito obrigado, governador. Sei que o senhor fala com o coração, como é do seu feitio. Mas suas palavras fazem descansar esta alma arriada, depois de tanto sofrimento.
- Viemos de longe, doutor Chagas, e nada nem ninguém irá nos abater.

Levantaram-se então, e saíram os dois, a pé, pelo campo vasto. Eram seguidos pelos quero-queros, os cachorros, as ovelhas desgarradas e algum boi que berrava mais para fazer barulho do que por necessidade. Chagas e Silva era acompanhado por sua bengala, na qual se apoiava e de vez em quando ainda tinha o toque amigo da mão do interlocutor no seu braço. Brizola contava causos de sua longa vida para aquele personagem tão atirado no mundo e que eu tinha visto pela última vez num entardecer perdido, num acidente de carro. Vi Chagas e Silva sendo socorrido, com todos ao redor, penalizados. Era não só uma pessoa conhecida e famosa na cidade. Era o proprietário da famosa Fazenda Azul, que agonizava depois de um choque no trânsito. Tentara atravessar a rua olhando para o alto, esperando que lhe dessem passagem. Não deram.

Mas agora, ao lado do seu amigo de luta, ele acompanhava o passo das nuvens, rasgando o pasto azulado de tanta flor, neste abril sem manchas, que nos abraça não só pela memória, mas pela alegria de imaginar a vida que tivemos e que é nossa única posse, neste descampado que Deus criou para nos colocar à prova.

Passaremos no teste? Não sei. Mas acredito que aqueles dois viventes continuam rasgando o pampa com seus passos, conversando a fala dos justos, guerreiros que foram do bom combate, semeadores da paz, que só se consegue com a luta honrada da verdadeira coragem.

RETORNO - 1. Foi graças a um e-mail de Francisco (Chico) Alves, o carismático repórter e compositor da fronteira oeste, que lembrei desta história da Fazenda Azul, naquele momento em que nós, garotos voluntariosos, defendíamos a Legalidade com cabos de vassoura no ombro. Chico resgatou outro episódio, o sarro dos policiais que garantiram ao Doutor Chagas que seu gado, sumido misteriosamente, tinha sido raptado por marcianos. 2. A foto, nem precisa dizer: é de Anderson Petroceli, fotógrafo maior da fronteira. 3. As contradições da esquerda pobre no Recife no final da copa de 70. A memória emocionada de um conflito de consciência. Por Urariano Mota, no La Insignia.4. Em tempos de ditadura como hoje, a internet pode servir para algumas pessoas se esconderam sob nomes falsos para atacar os outros. Um mesmo sujeito disse um monte de barbaridades sobre meu trabalho e assinou com dois nomes fictícios. O Diário da Fonte é gratuito, não se impõe a ninguém. Lê quem quer. Se for comentar, identifique-se, como acontece quase sempre. Por enquanto, deletei os comentários caluniosos. Na próxima vez, vou banir o anônimo.

23 de abril de 2006

OS CORPOS DISPONÍVEIS





Por que pessoas adultas e aparentemente responsáveis por seus atos se amontoam nuas para o fotógrafo americano Spencer Tunick roubar-lhes a alma? Sim, porque os índios tem razão: uma foto captura a anima, a animação, o movimento e a imobiliza numa representação que é a projeção da criatura fotografada. As multidões peladas são o triste retrato de uma cidadania despojada do essencial, que não é a roupa, mas a vergonha. Depois da expulsão do paraíso, a vergonha se manifestou para o primeiro casal humano porque a partir daquele momento eles estavam por sua conta, dependiam de si para sobreviver. A primeira manifestação da responsabilidade foi entender que o corpo não estava disponível para as feras, não poderia servir de repasto para urubus. Como hoje é moda querer ser de vanguarda, desmistificar essas coisas antigas e principalmente aparecer numa era que fabrica o anonimato para alimentar o estrelismo das nulidades, então todo mundo atende ao apelo do cretino e se pela. Aconteceu também no Brasil. O sujeito foi até o Ibirapuera e colocou a brasileirada exibindo as partes.

MONOPÓLIO - Esse é um megaprojeto que representa a globalização do uso indiscriminado do humano, que fica à mercê da brutalidade dos monopólios. Tudo é monopólio no mundo nu diante dos algozes. Você não consegue ler jornal porque eles são empresas dominadas por pessoas ágrafas, que escolhem a dedo as equipes que nos torram a paciência com textos ilegíveis, redundantes. Nada do que é sagrado e forte e bom emerge da multidão de papéis jogados a esmo nas bancas e que servem apenas para veicular publicidade. Não consegui ler uma entrevista ontem (não perdi grande coisa) pois a toda hora o texto era interrompido por mensagem publicitária, colocada no meio das colunas para que o olho, coitado, que busca um mínimo de leitura, tropece na mensagem. Por todo lugar, a concorrência é falsa, pois quando se manifesta é para exibir dois pretensos adversários que em tudo se parecem e apenas dividem o bolo, negado a outros veículos, que pastam ou morrem. Quantas vezes comprei o Estado achando que estava comprando a Folha? São o mesmo jornal, com roupas iguais. Na TV é uma tristeza. É o mesmo noticiário, do começo ao fim do dia e da noite. Notícias importantes são dadas pelo apresentador de modo superficial e ligeiro, matérias com imagens são longas e pautadas pelo departamento comercial.

A MARCA DO TRAIDOR - Para quem tinha dúvidas sobre o caráter do presidente da República, não deve ter mais. Ao imitar o gesto histórico de Getúlio Vargas, que molhou as mãos no petróleo brasileiro em 1952, num dos seus atos de soberania nacional, Lula faz por merecer o estigma de traidor. Pois passou a vida toda falando mal de Getulio, do trabalhismo e do que eles representavam. Postou-se como alternativa popular metida a autêntica, longe do que ele e sua gang chamavam de populismo. Agora, desesperado, encurralado pelos próprios erros, tenta roubar a herança de Getulio Vargas se esforçando em se passar por ele. Se fosse uma pessoa séria, Lula não acenava com este gesto macaqueado do que temos mais glorioso na história da nação. A diferença das fotos é gritante. A cara tosca de Lula no seu gesto estudado e vazio contrasta com a alegria de Getulio (em foto já publicada aqui no DF)ao exibir o fruto da campanha vitoriosa, O Petróleo é nosso. A mão de Getulio diz que é nosso, a de Lula diz que é deles.

CACHORRÕES - Diogo Mainardi, da Veja, larga os cachorros nos grandalhões da imprensa, que segundo suas denúncias estariam envolvidos em forte tráfico de influência no dinheiro público. Franklin Martins, comentarista da Globo, sentiu-se ofendido e fez um desafio, enquanto desencadeava um processo. O desafio é que Diogo ache um senador que comprove a denúncia de que tenha favorecido o irmão de Martins no cargo ocupado na Agência Nacional de Petróleo. O processo é para limpar a honra e arrancar dinheiro de Mainardi para, no caso de vitória, ser doado. É uma contradição. O repto não pode conviver com o processo. Ou é um ou outro. E se um vencer no desafio e perder na Justiça e vice-versa? Só um dos fóruns pode ser escolhido. O ideal seria um duelo, com aquelas velhas garruchas, no meio da neblina, os dois contendores usando camisas brancas bufantes e a platéia composta pela bagacerada de sempre.

MOEDINHA - Outro embrulho é o trecho da moedinha citado por Martins, onde Mainardi diz que vende opiniões até para a própria mulher. No desabafo de Franklin, não está dito que o parágrafo faz parte da orelha do livro A Tapas e Beijos, de Mainardi, e que é uma ironia exatamente sobre a opinião comprada. A propósito: tire a internet e o que resta da liberdade de expressão? Rosca.

RETORNO - "A tentação de Adão e a expulsão do Paraíso" é tela de Michelangelo.

21 de abril de 2006

O MESTRE PARTE PARA ETERNIDADE




Telê Santana morreu depois de longa agonia. Tinha a voz travada, os movimentos inseguros, o olhar vago. Exatamente o contrário do que sempre foi: firme, determinado, decisivo. A família acusou o martírio de ser fruto de erro médico. Ficamos assim com o mutismo absoluto desse brasileiro raro que sempre poderá ser chamado de Mestre. Por Telê Santana tenho afeição especial. Tirou meus filhos da minha influência futebolística com suas sucessivas vitórias e lições, colocando-os num lugar digno, longe do que hoje ocorre com o Corinthians, nas mãos da máfia eslava. Não foi só por isso. Porque resolveu a falsa contradição entre futebol força e futebol arte, apesar de ter pagado caro por perder a Copa de 82, acusado de ter enfeitado demais com um time dos sonhos. Telê não dava a mínima para o estrelismo e exigia que cada jogador exercitasse os fundamentos do futebol: chutar direito, cruzar, cabecear, dominar a bola. Rogério Ceni, que hoje brilha no escandaloso ostracismo da seleção nacional, é a representação e o fruto desse aprendizado: o atleta completo, que não se conforma com seus limites e chega na área, venha de onde vier.

Há inúmeras críticas às suas estratégias, mas ninguém jamais poderá tirar-lhe o mérito de que foi um reinventor do futebol brasileiro. Depois que nulidades como Cláudio Coutinho e outros burocratas se renderam ao futebol burro, que faz parte do sistema que destruiu a nação, ele trouxe de volta a eficiência como fonte da alegria, revelando um punhado de craques inesquecíveis, que com ele conheceram a glória. Errou muitas vezes, como tudo o que é humano erra, mas fica sua lição permanente de correção, determinação, seriedade e sobriedade. Por coincidência, o tempo em que ficou mudo conviveu com o falastrionismo do futebol, dos treinadores histéricos que sempre se acham com razão, dos cartolas que deitam e rolam com seus arreganhos extrativistas, que jogaram a arte brasileira nas mãos estrangeiras, e que provocaram o êxodo sem fim dos craques que o Brasil gera com sua tradição e sua cultura.

Calou-se o Mestre enquanto afundamos nessa espiral de horrores, em que os perna-de- paus viraram titulares e nossas jóias foram se entregar ao papel pintado das potências. Se ele perdeu em 1982, foi com honradez e não como em 1998, quando na final paramos em campo num episódio que clama até hoje por explicações, diante daqueles franceses arrogantes, que levaram a Copa porque ficamos imobilizados, derrotados, comprados, enquanto eles faziam a festa em cima da nossa subsmissão.

CENA - Nunca esqueço uma das cenas mais emocionantes que vi na televisão. O Morumbi lotado levantava os braços e entoava o cântico dos cânticos: "Olê olê olê olê Telê Telê". Era a milionésima vez que o Mestre decidia um título. Ele então se levanta, de maneira não muito confortável pois não está acostumado a esse tipo de demonstração, anda um pouco para dentro do gramado e faz sua saudação, com uma só mão para cima acompanhando o ritmo da cantoria. Era a homenagem em vida ao homem que deu tantas alegrias aos seus torcedores e que destacou-se como um brasileiro maior, nesta galeria cada vez mais escassa, no país que perdeu sua soberania. Era o Brasil que o admirava, acima de camisas, hinos ou paixões. Era o tributo à honradez e à vida de Telê Santana, impregnada do espírito nacional que jamais poderá nos abandonar, sob pena de perdermos tudo o que conquistamos por séculos e gerações.

RETORNO - Diário da Fonte, o jornal pioneiro (fundado em 2002) embutido dentro da ferramenta blog, acaba de receber uma condecoração, que é este comentário de Luiz Claudio Cunha, um dos mais importantes jornalistas do país:
"Nei, primeiro, um abraço emocionado pelas palavras gentis embutidas no teu "Barulho de Correntes". Fiquei feliz.
Depois, um abraço ainda maior pela excelência do Diário da Fonte, que faz jus à tua qualidade e densidade como jornalista que honra/eleva/consola esta profissão e, apesar de tudo, me enche de orgulho.
forte abraço, Luiz Cláudio Cunha.
Luiz Cláudio Cunha | Homepage | 04.22.06 - 12:44 am |#"

O comentário de Luiz Claudio Cunha está postado na edição de 31 de março do DF e se refere ao texto "Barulho de correntes", publicado no dia anterior, dia 30, que reproduz trechos da sua carta ao novo diretor de redação da IstoÉ, revista da qual se afastou.

OS LADRÕES DA ALMA






Nei Duclós

Uma redação é feita de fotógrafos, que sentam sobre as mesas afastando teclados, a querer provar que nosso ofício é moleza, basta ficar na cozinha a batucar o que nos vem na telha. Por absoluto desprezo ao mundo das letras é que eles jamais identificam as fotos. Gostam mesmo é de fazer corpo mole, dizer que tudo já existe no arquivo, nas agências, nos bancos de dados. E que pauta boa é a que inclui viagem e diárias e que no fundo esta é uma vida provisória e estão mesmo é montando um restaurante na praia.

Eles chegam com seus coletes à prova de bala, protuberâncias suspeitas, guarda-chuvas portáteis de alumínio, lentes e refletores, e sentem falta dos tubinhos de plástico preto com tampa, que não guardavam apenas filmes. Andam meio de lado, porque precisam de um arsenal para produzir essas coisas que tomam conta do espaço destinado às letrinhas. Com a pandemia da imagem permitida pelas câmaras digitais, eles acabaram cumprindo suas ameaças e hoje estão oficialmente em frente ao mar, mas basta chegar num restaurante lotado numa das capitais e lá encontramos o Leonid Strelaiev falando sobre mais um megaprojeto. Já nos acostumamos imaginá-los perdidos nos ermos do sossego quando irrompe na revista o Olívio Lamas, indo direto para o editor de arte, que tem a metade da nossa idade.

Conseguimos um livro perdido na poeira e lá está a foto de Assis Hoffmann estirado no chão, batido pela repressão que acabou com a Ultima Hora, como narra Jefferson Barros em Golpe mata jornal (Já editores). Estávamos acostumados a vê-los nos laboratórios, mas como são feras, jamais se restringiram ao mundo que escolheram. Queríamos confiná-los em espaços reduzidos, impedir que abrissem demais as fotos, mas como são completamente loucos, chegam diante do diretor de redação com um clic que demole dez quilômetros de texto. Os fotógrafos sobram e tomam conta do noticiário com o olho doentio que enxerga o que jamais notamos ao vivo, e que depois nos impactam por uma verdade que precisava deles para ser notada.

A realidade não precisa de nós, os escribas, precisa dos fotógrafos. Eles têm mais poder do que um presidente com acesso aos segredos nucleares. Por isso foram extintos em sua maioria, aposentados à força, empurrados para os relatórios de luxo, para os patrocínios ambientais e industriais. Eles eram presença excessiva nas redações, que os expulsaram. Ao jogá-los fora, o que entendíamos por redação foi junto. Hoje os fotógrafos sobrevivem como um punhado de bravos, porque não existem mais aqueles departamentos com cheiro de química e vazios de fotógrafos, que se aglomeravam todos ao redor dos repórteres, editores e principalmente, das mãos femininas que possuíam, segundo a visão daqueles canalhas, mais talento do que qualquer estrela da equipe.

O fotógrafo é um inconformado com a visão rasteira que temos da sua luta, por isso surgem cobertos de couro preto como Ricardo Chaves, motoqueiro explícito, que rebatia as observações maldosas sobre seu peso dizendo que tinha outro por dentro. Era a mais pura verdade. Eles eram outros, nós é que insistíamos em vê-los como os mesmos de sempre. E não bastava um, havia o amigo, tão bom ou melhor do que eles. Kadão Chaves tinha trazido para São Paulo esse outro talento avassalador e, por merecimento, eterno vencedor de concursos, o Antonio Gaudério. Falei para o Gaudério não beber água da torneira aqui em São Paulo, como ele fazia em Santiago, dizia Kadão. Por afinidade e admiração da minha parte, me aproximei de Gaudério que fez o impossível: conseguiu um dia colocar o açougueiro da favela no teto do seu estabelecimento sobraçando carnes e sorrindo para a câmara. Era uma matéria de negócios na favela, um assunto pioneiro que não mereceu destaque na época, mas certamente influiu pautas posteriores, pois o tema começou a ficar recorrente.

Se o fotógrafo é duro com seus pares, e pior ainda com os repórteres, nada pode ser comparado ao que fazem com as pobres fontes. Saímos de uma reportagem na Senhor e Helio Campos Mello bateu a mão na testa: Vamos voltar, disse ele. Para quê? perguntei. Esqueci de fazer o editor de Bíblias se ajoelhar. Foi difícil convencê-lo de que já tinha judiado bastante do abnegado entrevistado, que assumira todas as poses imaginadas e ditadas pelo malfeitor. Numa noite, o Ayrton de Magalhães cercou uma autoridade numa recepção, ao que foi impedido pelos guarda-costas, que gritavam: "O ministro não, o ministro não!". Ayrton tinha feito fama como o grande fotógrafo dos bastidores do submundo, se isso pode ser imaginado. Foi o primeiro a retratar os travestis de São Paulo, que o tinham como fotógrafo oficial. Ayrton ainda foi o autor da célebre foto de Marilia Pêra dando de mamar a Fernando Ramos da Silva, o Pixote, pois foi still do filme de Hector Babenco. Quando se aproximava de alguém, todos sabiam do que era capaz.

Mais tarde, achando já que a espécie tinha sido extinta, conheci o Hélcio Toth, que se celebrizou ao fotografar a cadeirada de um popstar na platéia que se aglomerava embaixo da janela do seu hotel. Hélcio Toth, quando mira o alvo, faz os edifícios perderem a forma, e os cachorros tornam-se estátuas sagradas em pedestais de xadrez. Por motivos pessoais, vive próximo a Regina Agrella, que nos deslumbra com pássaros transparentes bebendo de fontes invisíveis e traz para São Paulo paisagens que o interior esconde, mesmo para quem vive nele ou costuma viajar por suas paragens. Também me defrontei com Marcelo Min, que apelidei de O Olhar Absoluto. Thais Rebello, que por vinte anos foi diretora de arte da Editora Três, costuma dizer que Min não erra clic e dá sempre vontade de publicar tudo o que ele traz com seu jeito zen e sua presença implacável, que lhe rendeu uma surra de um segurança vizinho de Paulo Maluf.

A raça não some porque não se rende. Quando menos se espera, lá surgem eles aumentando a lista impossível de ser citada na íntegra. Com nome de profissional da Reuters, Tomás May é capaz de debulhar um assunto em cem mil fotos, dilacerando a escolha na hora de uma capa. Eles jogam pesado e não admitem rejeição de nenhuma espécie. Se sentem o centro do noticiário e acreditam na máxima de que os pixels superam o alfabeto. E jamais perdem a desfaçatez de ciscar no nosso terreiro, o que é uma experiência sempre enriquecedora.

Ouvir Edu Simões falar sobre literatura, por exemplo, ou Ayrton de Magalhães contar sua viagem à América espanhola, nos faz ver que algo se perde nessa divisão de tarefas em letras e imagens. Os fotógrafos optaram pela imagem porque alguém precisava fazer o serviço. No fundo, gostariam mesmo é de nos provar que as palavras não são nossa exclusividade e que podem fazer com elas o que costumam aprontar visualmente. Só não gostariam de ficar suando em coisas obsoletas como um lead. Contariam sua versão do jeito que gostam: com aquele ar superior dos artistas bem resolvidos, mal sabendo eles que nós é que somos os reis da cocada preta, nós, os tecedores de leituras, nós, os retratistas dos fatos. Esse é um conflito que se resolve numa viagem, com boas diárias, como as de antigamente. É quando temos a chance de nos afastar das redações, que nos confinam, e nos aproximar da nossa humanidade completa, que é invisível a olho nu, mas não para essas pessoas que empunham a câmara como quem roubam a alma.

RETORNO - 1. Close clássico de uma rosa vermelha, de autoria de Regina Agrella, citada nesta crônica publicada ontem no espaço Literário do Comunique-se. 2. Corrijo aqui o nome do Tomás May, que saiu Thomas, por absoluta distração do memorialista.

19 de abril de 2006

FORA DA ESTRADA





Down on the corner, out in the street, Willy and the poorboys are playin'; Bring a nickel; tap your feet. (J.C. Fogerty, do Credence Clearwater Revival)

Nei Duclós

Já conhecia aquele trecho de neblina bem no meio da estrada que liga Florianópolis a Curitiba. Era o que me preocupava enquanto forçava o golzinho além dos meus limites de velocidade, que variavam, para desespero dos outros motoristas e eventuais passageiros que se arriscvavam comigo, ente os 70 e 90 quilômetros por hora. Mas desta vez, chamado às pressas para resolver um assunto em Curitiba, eu era o próprio mestre de cerimônias da velocidade, ringindo pneu novo em cada curva, como se a montanha de caminhões que se despejavam na estrada não existissem.

RÉ - Sabia que na neblina espessa do trecho em questão eu iria me atrasar. Foi o que aconteceu. Parei atrás de uma tênue luz vermelha, que adivinhei ser a traseira de um tremendo Scania. Achava que não se fabricavam mais esses mastodontes da estrada e confiei no destino, que me colocara atrás de um portento, que abriria qualquer caminho para um motorista espisódico como eu. O problema é que lá pelo segundo quilômetro, equivalente a uns quinze minutos de sofrimento, a luzinha vermelha sumiu de repente e foi substituída por um farol enorme, que espalhava raios azuis por todo o lado, acompanhado de um bufar de dinossauro mecânico. Eu estava, sem mais aquela, no contrafluxo do trânsito!

Iria bater de qualquer forma, quando decidi, no último segundo, dar uma ré suicida, que cruzou a neblina de trás de maneira célere, às cegas, como se eu tivesse surtado de repente. Aproveitei o empuxe para dar um cavalo de pau, que me ensinaram no cinema e que eu jurara um dia colocar em prática. Fui seguindo em frente com aquelas luzes atrás de mim, como se fossem de uma nave espacial, enquanto o ruído aumentava. O estranho é que não havia ninguém mais na minha frente, o que significava que eu tinha sido o último de uma fila e agora ia em frente de volta a Florianópolis. Pelo menos era o que eu imaginava.

CANGOTE - O carro parou novamente, desta vez numa curva acentuada. O animal de lava continuava no meu cangote, impaciente, mas eu estava prestando atenção mesmo era na dissipação da névoa, que mostrava um céu azul pontilhado de nuvens branquíssimas. Quando cheguei ao fim da curva, o dia estava translúcido e eu me deparava com enorme placa na minha frente. Sou um péssimo leitor de placas ou avisos. Já cheguei a confundir "temos tempero para lingüiça" para "tempos de desespero para a lingüiça". Tudo é possível numa época de mau jornalismo. Mas aquela placa dizia outra coisa. Estava escrito: Ciudad Del Mexico, 30 km. Achei que era o nome de um restaurante, apesar de a placa ser daquelas enormes, oficiais, de letras brancas sobre o fundo verde, como mandava o figurino formatado em Los Angeles ou Nova York. O problema é que entrei num rio de trânsito de carrões, com placas de vários países, inclusive do México. Já tinha ouvido falar na história de abdução de um casal que dormiu dentro do carro na estrada e acordou exatamente num lugar como esse onde me encontrava. Não imaginava ser possível, ainda mais comigo, e não naquela ocasião, em que eu me dirigia para resolver um assunto urgente e inadiável. Pois tive que obedecer às sinalizações e penetrar na cidade monstruosa, coberto por fuligem, que era pior do que a névoa anterior. Para onde tinha ido a transparência que vira na estrada?

Tinha sumido, junto com meu bom senso. Eu estava com os olhos esbugalhados, debruçado sobre o volante para melhor ver os edifícios, as ruas, os sinais, as pessoas, o comércio e as praças. Era tudo monstruosamene real e eu, com meu golzinho, destoava do cenário. Isso acabou chamando a atenção de dois guardinhas, que eu sabia temíveis, pois por qualquer coisa dariam a célebre mordida, a propina para continuar trafegando. Um deles bateu com o nó dos dedos no vidro e fez sinal para abrir. Pediu documentos. Eu dei. Ele devolveu. Disse que não valia no México. Onde estavam los papeles, e esfregava os dedos para sugerir dinheiro. Nem lembro da conversa, pois, se tentar reproduzir, vou cair no meu velho portunhol, já que sempre me recusei a falar como os castelhanos, tão deslumbrados com sua lêngua, tanto que se enredam nela a toda hora.

ALAMEDA - Mas depois de alguns minutos de pânico, com a conversa aumentando de tom, decidi dar outra ré e outro cavalo de pau. Saí por um beco lateral que tinha visto minutos antes e caí numa enorme alameda cheia de carros e ônibus. Desviei do trânsito como um piloto veterano e acabei subindo a rampa proibida de um parque. Enveredei por uns trechos de flores, arbustos e pedrinhas coloridas e saí num circulo calçado que abrigava, bem no centro, uma estátua eqüestre. Contornei a estatua e comecei a dar voltas, completamente alucinado. Precisava voltar para a neblina, voltar para a neblina. Quem sabe acharia o caminho de volta?

Foi quando um mendigo se interpôs fisicamente diante do carro e me obrigou a parar. Sacudindo as mãos, desesperado, pedia ajuda, precisava ir para o hospital, pois estava tendo um ataque. Forçou o vidro e entrou de maneira abrupta, se jogando no banco ao meu lado. Fiquei olhando para ele com minha cara de louco quando ele puxou um trabuco 45 e me colocou dentro de uma das ventas. O mais gentil que ouvi foi hijo de puta. Tive que obedecer a suas ordens e me mandei por uma rua mais ou menos calma até chegar perto de uns sujeitos mal encarados. Era um grupo da pesada. Estavam sentados em cima de uns latões de lixo e ficaram me olhando de maneira cavernosa. Meu seqüestrador explicou que eu era um motorista de mão cheia e poderia muito bem dar conta do recado. Todos então entraram e se aboletaram no carrinho que naquela altura deixara de ser novo para virar um traste. Eu tinha batido a porta num coqueiro no parque, de raspão, quando quis desviar de um esquilo mutante, pois só animais mutantes poderiam viver naquela droga.

PALITO - Ao meu lado estava o ex-mendigo, que já tirara seu disfarce (um saco de aniagem e um chapéu rasgado) e envergava um terno azul, com camisa ocre e gravata preta. Era magro, alto, de rosto encovado e tremia ao segurar o revólver, que agora estava depositado no colo. Atrás estava El Gordo, que ocupava metade do banco. Tinha a cara de índio, um bigode espigado e uma barba rala. Equilibrava um palito nos dentes e falava com voz fina, que era subsituída às vezes por um ronco. Usava um chapeuzinho de aba curta, com uma pena pequena, colorida , atrás, tipo filhote de chapéu de Robin Hood. E ao seu lado, espremido, estava um fuinha baixinho, com tiques nervosos, todo coberto de jeans, uma ruga na testa, cabelo de milho, ralinho. Era chamado de El,Pibe. El Gordo era o próprio. E o seqüestrador era o Coiote.

A tarde já vinha caindo e me levaram para outro beco, onde se destacava na parede de tijolos à mostra enorme anel de aço com os dizeres de um banco. Parece que era bank de alguma coisa, era deposito de dólares, por supuesto. Eles pararam bem em frente ao troço e descarregaram as sacolas cheias de material. Coiote fazia a segurança, sem desgrudar o olho de mim, El Gordo cuidava dos detonadores, maçaricos e bombas e El Pibe era o artífice, o cara que colocava fio de aço dentro de fechaduras milimétricas. Na hora que conseguiram algo, o gordalhão deu uma forçada na tampa daquele cofre e abriu de um safanão. El Pibe mergulhou lá dentro levando um bolo de sacos plásticos vazios e logo colocou a cara para fora. O cofre só continha papeles. Os putos vinham para o beco depositar a papelada das empresas, jamais dinheiro, pois o lugar era meio sinistro e levantava suspeitas. Talvez tivesse sido construído quando ali era uma rua aprazível, lá pelo meio do século passado.

GOSMA - O gordo não quis nem saber. Se solo tiene papeles, ponhálo papeles em la botija (já falei que meu castelhano é execrável). Como Pibe não dava mais sinal de vida, o Gordo colocou a cara para dentro e descobriu o embrulho: os papéis estavam atrás de uma grade. Os pulhas do banco tinha encarcerado a papelada e ido hoder, assim com agá aspirado. O gordo então passou para o companheiro um naco de gosma plástica para detonar a porra. Pibe saiu de um salto quando El Gordo disse que ia detonar tudo. Ouviu-se um estrondo seco e o pibe voltou par dentro, saindo de lá com uns sacos chamuscados de papéis. Idiota, queimaste tudo, dizia para o gordo. O segurança nem olhava para a cena. Colocava um olho no final do beco, que aquela hora parecia a luz no fim de um túnel, e outro ainda em mim.

Entraram batendo porta e tive que sair na disparada. Duas fardas tinham adentrado o corredor bem lá atrás, no outro lado da ruela. Era a ronda habitual. Sumi derrubando lixo e voltei para a rua principal, enquanto ouvia as reclamações gerais, da bosta que tinha sido aquela idéia, aquele roubo. E ainda mais, com este motorista brassilenho, que só sabe jugar fubol, carajo de mierda, me cago em la leche de tu madre (isso tirei de Hemingway, que tem uma literatura cubana onde as pessoas vivem cagando no leite materno, seja isso o que for; serve para eu descrever a cena, real). Então me levaram para subúrbio, para um casarão mal assombrado, vazio de móveis e cheio de teias de aranha. Lá reviraram de novo o butim, e descobriram umas ações ao portador que valiam no mínimo um mijone de dôláres. Deram saltos de alegria, chegaram a me oferecer tequila e a me bater amistosamente nas costas, mas ficaram mudos de repente pois descobriram que teriam que se identificar no banco para pegar a bufunfa.

FRITO - Naquele banco no y no, disse El Gordo. Bueno, bamos en otro, disse El Pibe. Em outro, pero no nosotros. Bamos a convocar Ronaldino Gautcho aí, el brassilenho cagado, que les parecen? Eles me olharam fundamente e despencaram de tanto rir. Eu estava frito. No dia seguinte me colocoram à força um terno parecido com o do Coiote, e fui, vestido de mafioso cucaracho, num banco perto dali, poderoso pela altura, e horrendo pelas cores, guardas e clientes que estavam nele. O gerente verificou meus dados, pediu passapuerte, eu disse que não estava comigo nel momento, mas ele poderia pegar uma ventaja de diez por ciento de las aciones, o que deixou o infeliz esfregando as mãos de contente. Mas disse que eu teria que fazer um depósito na minha conta em outro banco com o valor das ações, pois ele não dispunha de cash no momento. Ouvindo isso, El Gordo despencou sobre a mesa, bateu nela e disse: dá-nos algo, cabrón.

O cara então consentiu em nos passar 80 mil dólares e o resto, uns 400 mil (era, claro, a metade do que tínhamos calculado) eu repassaria para outra conta, no caso, a do Coiote, que era o único que dispunha de uma vida regular. Tudo combinado saímos, eu com minha mala (para não dar na vista), eles com recibo do depósito. Em frente ao elevador modernoso que custou a aparecer, tinha outra porta, de um elevador daqueles antigos, com porta sanfonda. Os novos ricos estavam esperando o cadilaque quando tive a oportunidade de saltar para dentro do fusqueta que bruscamente abriu na minha frente e fechou nas minhas costas. Ainda ouvia os gritos de te voy a te matar, ronaldino gaudutcho, quando cheguei no térreo e disparei em direção ao meu golzinho. Saí na corrida com meus 80 mil dólares gritando alucinado: voltar para a neblina, voltar para neblina.

BARULHO - Parece mentira, mas consegui chegar na altura da estrada onde tinha se dado o evento. Peguei a mão certa e me aprofundei na espessa nuvem que cobria o caminho, situação agravada por ser já tarde e o sol de novo insistia em querer se por. Eu tinha ficado o dia inteiro naquela lida de novo. Quantas horas ficara naquele banco, sentado em meio a senhoritas nerviosas e cucarachos insanos, suados, dependurados numa dívida de num lugar que dava as perigosas mordidas? Só sei que voltei para o lugar onde estava e descobri novamente que as luzes de um latão medonho fazia barulho para eu sair da frente. Desta vez eu desviei para a direita, cruzei uma ilha coberta de mato e entrei na mão segura e correta. Consegui sair da neblina e ver a placa salvadora: Curitiba, 150 quilômetros. Decidi seguir em frente, pois me apavorava o fato de cruzar a neblina de novo.

Fique até a manhã seguinte na capital paranaense. Vendi o carro no primeiro pátio que depositava segunda mão e peguei um ônibus. Não ia arriscar. Deixava tudo na mão do motorista. De avião não daria certo, poderiam me revistar no aeroporto com meus valiosos dólares. A viagem rolou pela estrada até chegar ao trecho fatídico. Foi só dar 15 minutos naquele sufoco e vi da janela a cara do Coiote vibrando o revólver em minha direção. Abrite, ronaldino, dizia. N frente do ônibus, o pobre do motorista já era rendido e entraram então El Pibe e El Gordo, que me carregaram par fora da lotação. Entrei num cadilacc azul prateado, no banco de trás, sendo espremido por gordão. Na frente iam os dois outros meliantes, já contando o fruto do roubo. Quando viram que tudo estava certo, encostaram na estrada, pararam o carro e me olharam fixamente . Iam me matar, claro.

CONVERSA - Bom trabalho, campeão, me disse o Coiote, completamente sem sotaque.
- Te foste muito bem, disse El Pibe, com sotaque gaúcho.
- Não elogia muito o cara, seu plaquero, disse o gordo.
Plaquero? Sim, o pibe era o rei das placas, fazia qualquer uma. Tinha pesquisado na Internet e sabia imitar os dizeres do trânsito de qualquer lugar do mundo. Ganhamos, tchê loco, gritava El Pibe, ganhamos um montão de grana. Não t falei que era moleza, dizia El Gordo, com sotaque de manezinho da ilha de Floripa.
- Mas vocês são brasileiros.
- Claro, idiota. E mexicano tem alguma idéia de fazer alguma coisa?
E foram cantando down on the corner aos berros, acompanhando o rádio que esgoelava o Credence, enquanto eu afundava no mais completo abismo mental, pois tinha sido vítima de uma armadilha.
- Mas como vocês fizeram, como sabiam? Aquela cidade não era o México?
- Era Joinville, imbecil, tu não conhece Joinville. Ta cheio de banco de alemão e americano com grana.
- Mas Joinville é uma cidade limpa, sem poluição.
- É mágica do plaquero, disse El Gordo. Você vê a placa e acredita. Aí tudo fica sendo visto através da neblina.
No rádio do carro tocava: Não precisa ter um penny, basta um níquel para Willy and the poor boys. Down on the corner...
- E por que me escolheram?
- Tu vive dando banda na internet, seu besta. Contaste essa história do México, da nave espacial e nós bolamos o assalto. Tu é mesmo um abostado, dizia El Pibe.
- E os guardinhas, os guardinhas?
- São de lá mesmo. Acharam que tu era argentino e quiseram te dar uma sacaneada.
- Mas eles falavam México, México.
- É que tu é preconceituoso mesmo, disse El Plaqueador. Acha que todo castelhano usava chapéu de aba larga. Falou espanhol e acreditas mesmo que estás mesmo em Ciudad Del Mejico.
E se esborracharam de rir.
- Mas e a praça? Como foi que me encontraram?
- Tu foste levado para lá, sua mula. Não tem outro caminho. Todas as ruas daquela região dão no parque. Quando tu entraste no miolo da praça, o coiote correu no teu encalço.
- Pára aí. E o gerente? Ele me pediu passaporte. E falava espanhol!
- Porque tu tem cara de gringo, animal. Tem sobrenome metido a besta, por isso.
Eu não me conformava:
- E porque vocês não foram ao banco sozinhos?
- Porque até em banco bandido não temos chance. A gente precisava de um laranja.
- E o que vocês vão fazer comigo? Vocês já têm toda a grana.
- Toda não, só os 80 mil. O resto foi para uma conta inexistente. Não podemos correr riscos. Mas oitentinha já paga todo o investimento.
Eu estava com o horror estampado na cara. Vendo meu desespero, El Gordo tirou o palito da boca e me ofereceu, com o rosto consternado, cheio de piedade:
- Quer uma lasquinha? Esse é teu pagamento.

MANHA - E me deixaram no meio da estrada, sem gol, sem grana e com muita raiva dos mexicanos, porque eu precisava naquele momento odiar alguma coisa.
Gritei no meio do nada:
- Não é Ronaldino, seus putos. É Ronaldinho, de manha, de fanho, de sanha. É o nhá dos índios seus jodidos.
Vinha um som de algum lugar. A letra dizia: basta um níquel que Willy e os pobres garotos vão te agradecer e continuar tocando.

RETORNO - Este conto é uma homenagem ao disco maior da minha banda favorita, que escutei por um ano inteiro, até furar o vinil.

OS BLOCOS DE MESTRE BAZINHO





A cidade é chão de terra que levanta poeira com as sandálias do povo em desfile. Eles chegam das casas na linha do trem para tomar a avenida Presidente Vargas, sob o comando dos mestres da bateria, dos batutas que ensinam o som e a dança. A escola é feita de lantejoulas e saias, de calças sedosas e cartolas de papelão amarelo, de evoluções em curva, de carros puxados à força pelos mais moços, que levam em seus ombros suados rainhas e princesas, enquanto as alas rodopiam diante da multidão sentada em cadeiras de vime, mais tarde de alumínio e hoje arquibancadas de madeira crua, reomontadas a cada ano sob o império das doações e incentivos. A escola era o chão dos maestros, mas não davam camisa. Era preciso migrar para os blocos, esses sim fontes de uma renda mínima, que garantisse a comida fora dos limites do carnaval. Isso era o território de Mestre Bazinho, convocado para equilibrar a concorrência entre os foliões, que imitavam as escolas só na aparência, pois eram mais soltos, menos formais, mas não podiam descuidar da qualidade do refrão.

RIO - Os braços levantados das moças dos clubes, caprichadas em seus paetês e miçangas, farfalhavam pernas e torsos sob o céu pouco estrelado devido às fortes luzes que jorravam dos postes. Era um passeio provisório, o das ruas. O momento decisivo era a entrada no salão, quando a platéia se levantava de uma vez só quando mestre Bazinho organizava o triunfo da canção-tema e dos acompanhamentos profissionais de pessoas sob sua guarda, gente de casas derrubadas sobre o rio. Havia sempre o sopro de instrumentos que davam o tom da cantoria, enquanto um surdo, um tarol, um tamborim, uma cuíca e um ganzá salpicavam o chão da elite com os passos do ritmo e da melodia. Entre os músicos, muitos eram dos quartéis, soldados da Brigada, do Exército, dos fuzileiros navais. Concentrados no seu ofício, só tinham olhos e ouvidos para o maestro, que dominava a cena com sua sabedoria instantânea que vinha de longe.

ENTRUDO - Não havia chance de arriscar diante do adversário. Por isso mestre Bazinho era convocado para todos os blocos importantes da cidade. Ele conseguiu essa façanha organizando a agenda como um mapa de guerra. Precisava do soldo que vinha daquelas vozes e corpos, e lhe dava prazer disputar o título com ele mesmo. Não que evitasse o confronto com seus pares, que existiam, mas com outras obrigações e objetivos. Eles não queriam se desvirtuar da religião das escolas, que demandava esforço o ano todo, incluindo aí a formação de novos músicos, escolhidos a dedo pelos olheiros dos mestres, que freqüentavam todas a s rodas em busca do trinado perfeito, do bater impecável sobre o couro de origens diversas. Não se podia deixar de lado esse tipo de providência, pois o carnaval era um sugador de gente, que vinha inapelavelmente e chegava com o estrondo do entrudo, quando a população enlouquecia, armada de baldes de água de tocaia nas esquinas. Sobre os muros, atrás das árvores, quem viesse ofender a folia com seus ternos de linho branco, seus penteados para a missa, seus véus de castidade, eram punidos com o jorro desmoralizador da bagaceira, que assim se vingava da situação a que fora condenada naquela fronteira entre o pasto e a honra.

NOTAS - Era chegar a bandalheira para que os músicos lembrassem aos cidadãos travestidos de mulher, às senhorinhas mergulhadas no lança perfume, de que existia uma civilização antes e depois do vendaval. Os músicos participavam de bandas sérias, envergavam fardas, tocavam nas comemorações da pátria, insuflavam vento à bandeira nacional que protegia o solo e acenava para o céu. Os músicos não poderiam faltar com suas notas, talento, força muscular e presença de príncipes num reino decaído. Eles herdavam a seriedade que antes pertenciam apenas às autoridades, aos professores, às mestras, às visitas ilustres, como o presidente da República que um dia deu um tiro no coração e que envergava roupa branca para refletir o sonho do povo em procissão pela História. Os aprendizes de mestre Bazinho traziam com sua arte a soberania do país em festa e rompiam o limite que havia entre pobres e ricos, entre analfabetos e eruditos, entre sonhadores e pragmáticos. Eles levavam tudo de roldão, sob o olhar de mestre Bazinho, o dono do evento, que nos bastidores era tratado como rei e que para o público era a garantia de que todos caprichariam para vencer, porque tirar o primeiro lugar era a medalha mais cobiçada. Ser destaque de evento sério é uma coisa, ganhar no meio do buchincho era outra, motivo maior de celebração pelo tempo afora.

BAÚ - Agora as fantasias estão perdidas, talvez alguma sobreviva em algum baú, se é que existem baús. Uma visita ao sótão, quando há sótão, e lá está a caixa onde se guarda o passado. A tampa está sem chave e basta vontade para tirar lá de dentro algo que faz barulho ao tocar. É um vestido, uma gravata borboleta, uma máscara, um frasco vazio de lança perfume. Quem quer saber de carnaval se já estamos no outono? Quem lembra o calor da festa no salão lotado, ao sabor das marchinhas eternas? Voltou o tempo de se aprumar, ir à solenidade, ouvir atentamente os discursos, participar de mesas com flores artificiais e coques altos, que coroam pescoços rodeados de pérolas. O ministro, o presidente, o governador, o prefeito estão presentes. De repente, no meio da banda oficial e vestida a caráter, cai no chão um clarim. É Argeu, da escola os Rouxinóis. Ele fica devastado pelo barulho que faz seu instrumento, e que atrai todos os olhares. Mestre Bazinho, sempre ele, olha o aprendiz com benevolência. Argeu se abaixa, pega o clarim, passo um lenço rosa sobre ele e, constrangido pela situação, faz de conta que vai dar um sopro. Será que sairá uma nota aguda, despropositada em meio ao silêncio majestoso de todos os presentes?

PALMAS - Argeu não sabe o que está fazendo. Quer se desculpar pela gafe, quer ser incluído como músico eficiente e sério. Não é um qualquer, desse que deixam cair as coisas, que não dão bola para as liturgias. Então ele dá um soprinho para ver se o bicho ainda funciona. Como tem força de dez leões no peito vasto, a nota sai límpida e alta, e toma conta do ambiente batendo no teto. A platéia então, automaticamente, esquecida da seriedade do outono, acompanha a nota como se estivesse ainda no início do desfile. Palmas ritmadas, acompanhadas pela voz uníssona do refrão daquela abertura dos bailes. Tará, tará, tará, tará, ta rarara ráááá. Aí ecoam as palmas de verdade. O carnaval temporão, como um raio tardio na tarde fria, cai nos rostos iluminados por aquela revelação: éramos o carnaval de mestre Bazinho, na fronteira do Brasil Soberano, quando havia nação e tínhamos a missão de manter aceso o fogo da nossa identidade, inventada pelos músicos e comandada pelo maestro que agora ria seu riso cheio de graça, que sempre fez a glória do folião número um daquela cidade, que era nossa pelo menos uma vez por ano - e quando Deus permitia, em qualquer estação da nossa infinita esperança.

RETORNO - 1. A foto pertence ao portaluruguaiana e é do carnaval de 2005. 2. O texto é inspirado em algumas informações de Miguel Ramos, que me falou sobre a existência de mestre Bazinho, o maestro de todos os blocos importantes da cidade. Mais não disse e por isso a crônica saiu assim, do jeito que a invenção gosta. 3. Depois de me chamar de "baita semvergonho" por não ter esperado mais informações sobre o mestre, Miguel Ramos escreve no orkut: "A tua imaginação é prima-irmã da verdade".

16 de abril de 2006

ARMADILHA POLÍTICA





Está tudo pronto para as eleições presidenciais de 2006. A ditadura já apresentou seus dois candidatos principais, que se revezam no noticiário, com eventuais entradas dos considerados nanicos pelas pesquisas. A imprensa vai a reboque, porque a imprensa pertence aos bancos e o sistema financeiro é o principal interessado na manutenção desta falsa democracia que garante seus lucros indecentes. Cuidado, não ataque os tucanos senão você será considerado conivente com os corruptos. Cuidado, não ataque Lula senão você será considerado de direita. É de uma tosca simplicidade, mantida a ferro e fogo pelo regime, que além da corrupção precisa da violência para ficar de pé. Atacar prédios de luxo faz parte do serviço mafioso de amedrontar os formadores de opinião, entre eles até secretários de estado, que ficam com as calças na mão quando um dimenor levanta a arma na direção deles. Na tempestade de merda que se abate sobre nós, a argumentação acadêmica a favor do horror é cada vez menos qualificada, como comprova o texto de Sergio Lírio, da Carta Capital.

VALE TUDO - Diz o sociólogo da Facha, Faculdades Integradas Helio Alonso, ao comentar o vício que jornalistas têm agora de chamar Lula de populista: "O termo descreve um período singular de países latino-americanos: substituição de importações, incorporação controlada de massas ao mercado de trabalho, criação de direitos sociais e surgimento de líderes carismáticos pela via eleitoral. Fora desse contexto, seu emprego é mero recurso retórico esvaziado de conteúdo. Serve apenas como propaganda ideológica". Ou seja, só vale o conceito que eles inventaram, para destruir o trabalhismo, claro, e colocar esse marionete do capital no poder. Pois é o oposto: populismo é o termo inventado pela direita para desqualificar líderes populares que a enquadraram (e por isso foram derrubados e mortos); é também o conceito que eles usaram para enganar o povo via contrafações de liderança como Jânio Quadros. E agora professor? De volta à produção livre de pensamento ou vai ficar atrelado às palavras ditadas por interesses?

TOC TOC - Nunca tinha ouvido falar na tal Facha, que é do Rio de Janeiro. O dono da coisa, professor Helio Alonso, respondeu assim a uma pergunta da Folha , que abordou o atual escândalo de o ensino ser 62% privatizado: "Teríamos, primeiramente, que analisar qual seria o papel do ensino superior nos últimos anos. Durante muito tempo se pensou que o ensino superior teria como finalidade preparar para o mercado. Realmente, quando alguém procura uma faculdade ou universidade é porque quer ingressar, qualificadamente, no mercado de trabalho, que é cada vez mais disputado. Mas esse conceito mudou um pouco. Hoje o curso superior prepara a pessoa, o cidadão". Ou seja, não há limites para a cara de pau. Ocorre exatamente o contrário: a universidade pública brasileira foi concebida para preparar o cidadão e a privataria educacional só pensa no mercado. Eles dizem essas coisas e saem lampeiros, impunes.

YUAN - Uma pequena nota da Folha Online diz tudo sobre o que significa dólar barato no Brasil, ou a tal valorização do real: "O governo americano vem fazendo pressão sobre a China para permitir uma valorização mais acelerada do yuan, alegando que a moeda chinesa, mantida artificialmente subvalorizada em relação ao dólar, prejudica a competitividade dos produtos americanos nos mercados internacionais. O governo chinês, por sua vez, já respondeu que irá permitir a valorização do yuan segundo suas próprias condições econômicas". Agora entendi tudo. A China impõe sua vontade para os americanos, nós baixamos as calças.

TROCADALHO - O programa da CUT, que tem como título o trocadalho Repercute, é propaganda ostensiva do governo Lula. Em horário nobre, aos sábados, pela Band, ontem uma autoridade pedia mais alguns anos de poder para "consolidar" as políticas públicas culturais. Aí aparece o Gilberto Gil, com aquela cara metida de intelectual a serviço da ditadura civil, dizendo que o repasse de verbas agora é mais horizontal, porque antes era mais concentrado em meia dúzia. Duvido que os ataques à gestão Gil, com Ferreira Gullar se destacando nas críticas, sejam infundados (nem vamos mencionar a baixaria entre o ministro da Cultura e o Helio Costa, da Comunicação; lembrar isso seria motivo para emporcalhar o domingo). Portanto, dizer isso assim no más é pura propaganda do governo em ano eleitoral. Já citei aqui o caso de Patrus Ananias, que no tal Repercute ficou um tempão fazendo propaganda explícita do governo. "Os tucanos fazem o mesmo!" dirão os ofendidos defensores do petismo. Pois ambos estão errados. Cacete! Ninguém se livra dessa armadilha política?

AMORES - Como alternativa, aí vem a Heloisa Helena, que pagou o maior mico no programa do Gilberto Barros falando de seus amores e conquistas, o Enéas, que é o falso nacionalismo de ultra-direita, o Garotinho, eterno presente no Canal Livre, da Band (não há limites?)e nem sei quem mais. Haja.

RETORNO - 1. Por que a foto do Norman Mailer neste post? Porque ele é o autor da frase profética: "Vem aí uma tempestade de merda". Acertou na mosca: os EUA, além de ensanguentarem o Iraque, estão loucos para repetir a dose no Irã. Eles não aprendem, perdem todas, mas insistem. É porque eles são criados pelo cinema americano, suibsidiado pelo Pentágono. Acreditam mesmo que são especiais e que fazem tudo para merecer aquelas musiquinhas ao fundo, nas imagens fundidas sempre com a bandeira estrelada tremulando. A mesma bandeira que serve de esquife para quem volta num saco plástico. A profecia de Mailer serve para o Brasil. 2. Sobre o Repercute, lembro aquele lider sindicalista gaúcho dos radialistas, segundo me contou um veterano, que gritou para a platéia no meio de um discurso: "Isso tudo recuperte muito mal. Recuperte ou não recuperte?" E a massa, em uníssono: "Recupeeeeeerte!

15 de abril de 2006

DEVE SER OS NERVOS




Nei Duclós

Fui procurar emprego em São Paulo. Por meio de um amigo comum, me dirigi à periferia da megalópole, num conjunto de prédios sem janelas aparentes e com tetos corcundas de cor vermelho viva. Na minúscula portaria, uma das poucas entradas que vislumbrei no edifício principal, me identifiquei e pedi para chegar ao departamento de comunicação. A pessoa que ia me contratar, ou me testar, pediu para não dizer o nome dela, só o local onde eu deveria me dirigir. O guarda me encaminhou para a recepcionista, que aos bocejos preencheu uma ficha e me ordenou pegar o elevador secundário, o que ficava na dobra do cotovelo do corredor. O ambiente era escuro e tive de tatear até o botão luminoso, que acionou o mecanismo para abrir a porta. Subi até o lugar onde deveria começar imediatamente a trabalhar, segundo me disse o sujeito pelo telefone.

O elevador abriu para um seriado de portas com pequenas placas onde se lia indecifráveis enigmas. Eram letras e números separados por hífens que talvez indicassem a especialidade do que se fazia atrás de cada uma das placas. Onde se lia XPTO-3, entrei. Era a comunicação, segundo tinham me informado. Lá dentro, na penumbra, estava o cara sentado atrás de uma mesa, meio que debruçado sobre ela, com as mãos enlaçadas nos dedos, com os ombros para frente, um mais para frente do que o outro. Me olhava com seus olhos castanhos vivos e me falou para sentar. Combinamos rapidamente o trabalho e ele me pediu os documentos para registro. Estava satisfeito só com a indicação e o currículo.

Achei fácil demais, mas me postei na saleta ao lado, que era tomado por enorme e tela de computador. Ali tomei conhecimento do projeto definido pelo chefe e passei a fazer o que me pedia. Era questão de arrumar os textos desconexos, meio técnicos, meio esdrúxulos, que ele me passara. As palavras se referiam a uma mudança em toda a organização e lá estava a palavra dos especialistas, da diretoria e, claro, do diretor de marketing, que deveria ser a fonte de tudo aquilo. Meu superior não era esse diretor, antes ocupava um cargo de responsável pelas informações corporativas, ou algo assim. Passei o dia na faina, sem parada para o almoço, pois o trabalho era urgente e precisava ser apresentado no dia seguinte. O que estranhei era a quantidade de informações que deveriam ser sigilosas, como demissão de pessoas importantes, reestruturação de departamentos inteiros, e até mesmo mudança do foco da empresa. Além de dados sobre faturamento, verbas que foram desviadas etc.

Imaginei que aquilo jamais seria levado a público, mas fiquei impressionado com a tranqüilidade com que todas essas informações foram colocadas para mim, um completo desconhecido. Falei para o sujeito das minhas preocupações, num momento raro em que ele tinha parado de telefonar e estava olhando para o vazio. Não se assuste, disse ele, confio em você e vamos publicar, sim. Isso tudo vai para a imprensa e amanhã mesmo. Voltei para minha mesa ainda mais invocado. Onde estaria me metendo?

Saí já tarde da noite e peguei um ônibus na estrada vazia que ficava ao lado da empresa. Custou a aparecer a condução e fui remoendo aquele dia absurdo pelo caminho. Teria que voltar cedo no dia seguinte. A remuneração estava acertada e só isso me deixava um pouco confortável com a situação. Mas essa sensação não durou no dia seguinte. Voltei preocupado, pois perdera tempo no trânsito e cheguei atrasado, lamentando minha falta de previsão, pois poderia ter saído mais cedo. Mas o cansaço me tomou conta e acordei num salto, com o sol já pleno de si na janela do quarto do hotel onde ficara hospedado. O que mais me angustiava era que precisa tirar uma adiantamento para poder continuar no hotel, já que não dispunha de um local para ficar.

Mas foi chegar na porta e vi que nada estava como antes. O guarda era diferente, a recepcionista era outra e comandava uma equipe que não vira no dia anterior. Repeti meu nome e ela me pediu os documentos. Mas eu já não estava no banco de dados? Ela estranhou minha observação e perguntou com quem iria falar. Disse o nome do departamento e ela não se satisfez.
- Esse conjunto de salas está fechado, disse ela.
- Como assim, ontem mesmo eu fui até lá.
- Ontem? Mas ontem foi folga coletiva, não tinha ninguém. O que o senhor veio fazer aqui?
- Vim para ser contratado para um trabalho no departamento de comunicação.
- Esse departamento foi extinto. Aguarde um instante.

Ela chamou o chefe da segurança, um sujeito quadrado, retaco, moreno, de olhos duros. - Com quem o senhor falou ontem? perguntou à queima roupa.
Disse então o nome do chefe. Foi um assombro. O segurança e a recepcionista se entreolharam e o cara me pegou pelo braço e me levou para uma sala na mesma dobra daquele corredor. No lugar onde havia o elevador, tinha uma porta comum, que se abriu. Lá, um piso branco de mármore abrigava uma única cadeira vazia, com holofote em cima.
- Agora repita o nome do cara e bem devagar, disse o guarda, já acompanhado por um grupo de asseclas.
Repeti e foi pior. Levei um estrondo na cara, uma cotovelada poderosa, que fez meu nariz sangrar.
- Você não pode ter falado com ele, seu merda.
- Como não? cheguei a gritar, o que provocou uma saraivada de socos.
- Vê se fica quieto, jornalista. O que você veio fazer aqui? Bisbilhotar?
- Eu vim em busca de trabalho...
- Quem te indicou?
Não quis colocar em arapuca o amigo que me arranjara aquela treta.
- Diz, seu bosta...
Como já não falava mais nada, o cara suspirou fundo e acendeu um cigarro. Me fez sentar no chão enquanto ele usava a única cadeira. Me observava como se eu fosse um gafanhoto na hora da morte.
- Pára de mentir, jornalista. O cara que você diz que falou ontem morreu a semana passada. Aliás, ontem foi folga na empresa porque todos foram convidados a assistir a missa de sétimo dia.
Um gelo me desceu pela espinha. Estava branco, como aquela sala.
- Vamos até o departamento onde você diz que ficou.
E me levou aos trancos, pela escada acima, fazendo barulho. Depois de todos aqueles andares, eu sendo carregado pelos mastodontes, chegamos ao tal XPTO e lá entramos todos. A sala estava cheia de flores e a minha saleta, fechada.
- O que você viu aqui, o que você fez aqui?
Entreguei tudo, então. O jeito do cara, o trabalho que fiz, o que nele continha. Talvez a verdade me salvasse.
O guarda abriu a porta da minha saleta num pontapé e me fez ligar o computador.
- Mostre os arquivos.
Rezei para que não estivesse lá, mas estavam todos. Fui abrindo um a um e imprimindo, a mando do carrasco.
Foi passar os olhos pelo calhamaço para ele puxar o celular.
- Temos algo aqui, venha depressa.
Chegou um sujeito mais mal encarado do que ele. Era o Supremo Diretor. Tinha um cabelo curto, ruivo, uns olhos azuis, uns vincos no rosto de ex-combatente. Musculoso, gigantesco. Pegou os papéis e foi lendo. De vez em quando me olhava, furibundo.
Estou enrascado, pensei.
-Você passou esses papéis para alguém, seu desgraçado. me perguntou o supremo.
- Não senhor.
- Até que horas você ficou na empresa?
- Até as onze da noite.
- É proibido ficar até essa hora. E depois foi aonde?
- Para meu hotel.
- Não tem casa, puto?
- Estou chegando na cidade, precisava de um emprego.

Eles se afastaram. Confabularam um pouco e depois me disseram:
- Pode ir embora. Vai.
Dei um salto e me mandei. Voltei pelas escadas, limpando sangue. Saí pela porta onde tinha entrada e voei para a estrada. Quando o ônibus se afastava olhei para trás. Não havia condomínio de edifício nenhum. Apenas um imenso terreno baldio, onde algumas vacas pastavam. Comecei a falar sozinho. De repente, duas mulheres do povo, sentadas no banco da frente, depois de me olharem longamente, viraram uma para outra.
- Coitado, disse uma, de lenço na cabeça. Deve ser os nervos.

Quando cheguei no hotel, minha mala estava na portaria. O encarregado me repassou um envelope.
- Sua conta já está paga. Pode ir.
Abri ali mesmo, diante da ansiedade do porteiro, que parecia assustado. Era um maço de dólares e uma passagem de volta ao lugar de onde vim. Junto, os meus documentos pessoais que entregara para o falecido. Já ia saindo quando o porteiro fez um psst. Atendi, voltando a cabeça.
- Eles disseram que sabem onde você mora e com quem. Boa viagem.

RETORNO - A imagem mais parecida com o clima do conto acima é esta,de Helcio Toth.

14 de abril de 2006

REDAÇÕES QUE CRUZAM O TEMPO





Hélio Campos Mello chega de uma viagem do Exterior para assumir seu posto na revista Senhor, coloca a cara para dentro da sala onde tensos jornalistas estão em atividade e faz seu comentário inesquecível:
- Conheço esta redação de algum lugar.


A imagem mais poderosa de pessoas reunidas em massa diante de máquinas de escrever talvez seja a do filme O Processo, de Orson Welles, em que Anthony Perkins entra no seu ambiente de trabalho e atravessa um mar de pessoas sentadas atrás de suas mesas, acompanhado pelo barulho da datilografia. É a representação de um pesadelo, o ofício burocrático de batucar nas teclas, pautado pela indiferença. Não era assim nas redações que o tempo engoliu.

À primeira vista, o impacto era de extrema desordem. Mas se via em cada rosto a concentração necessária para produzir sob o tacão do deadline, reportando a principal armadilha humana: o conflito. Bastavam alguns dias para o iniciante se acostumar ao ritmo e às pressões e fazer parte de uma comunidade que se estendia aos bares.

Hoje vejo consultores definindo a pauta de veículos em coma, dizendo que não se pode voltar atrás, quando ?loucos apaixonados? (esse é o batismo do talento hoje) se reuniam em espaços normalmente apertados e com pouco oxigênio, para fazer o que os leitores adoravam. É preciso limpar essa mancha do jornalismo, dizem os RTs (Ruins de Texto), que no fim assumiram o poder. Um auto-ajuda desses jamais passaria pelo crivo de um chefe de reportagem, um secretário, um diretor, um editor.

Lembro meu primeiro teste, em que fui reprovado. Ansioso com a perspectiva de me tornar profissional, rabisquei o lead à mão, achando que ninguém estava vendo. Ainda não estava acostumado a pensar ao sabor das teclas e imaginava ser esse o expediente mais seguro para se chegar a uma boa abertura.
- Aquele lá, não, disse o chefe. Vai me atrapalhar o fechamento. Demora para desovar o texto.

É que eu tinha vindo de uma experiência híbrida. Minha primeira máquina, uma Smith Corona inglesa (presente do meu pai), era de tipos manuscritos. Eu passava para o papel datilografado o que tinha produzido a caneta. O resultado era parecido, como se um bamba em caligrafia caprichasse no resultado final. Aprendera por minha conta a usar os dedos, de forma errada, claro, na minha redação pessoal. Herdara uma escrivaninha dos irmãos mais velhos, que precisava de livros empilhados no suporte, à medida que eu espichava naquela difícil adolescência.

Eu era o responsável pela ata das reuniões do nosso Grêmio Literário, na quarta série ginasial. Fazia uma espécie de reportagem, puxando pela memória, e provocava desconfiança dos colegas, que não acreditavam no meu poder de narrar uma reunião mais ou menos bocejante, com uma descrição de detalhes que tinham escapado a todos na hora em que foram produzidos. Isso não foi tu quem fez, me diziam (na fronteira tu é tu mesmo). Foi com esse vício, o texto datilografado com jeitão de manuscrito, que estreei no ofício, e paguei caro por isso. Tive que aprender na marra a bater direto o original sem passar pelo crivo do lápis.

No curso de jornalismo da Ufrgs, o veterano Ernesto Correia, nosso professor, nos apresentou ao que ele chamava de maquininha mágica, o telex, que tinha a manha de, aparentemente, funcionar sem interferência humana. Pelo menos nenhum redator estava à vista e isso criava o deslumbramento, motivo de ironia dos alunos, que já possuíam aquela arrogância up-to-date, como se a tecnologia tivesse chegado ao auge e estivéssemos acostumados com isso.

Na universidade ainda passamos pelas visitas das oficinas movidas a chumbo, mas quando chegamos à profissão o off-set já fazia estrago nos velhos métodos. Foi quando as redações, acompanhando o ritmo das gráficas, começaram a assumir esse aspecto clean que é hegemônico hoje. Mas, veterano que teima em não se aposentar por enquanto, notei que muita coisa sobrevive, mesmo no silêncio dos teclados e a luminosidade insistente das telas. Nos corredores, no cafezinho, no happy hour, ainda saem as melhores pautas. O Google que nos perdoe.

O ideal é fazer como um repórter da revista onde trabalho. Belo texto, disse, como você conseguiu? Escrevi essa matéria em casa, me respondeu Wendel Martins, um dos talentos da nova geração. Escrevi de bermuda e de vez em quando abrindo a geladeira. Foi a maneira de driblar a atual fantasmagoria do jornalismo, as falas corporativas, que assombram as páginas impressas com monstros terríveis como os verbos alavancar e disponibilizar. À vontade, o espírito do bom jornalismo desce no novo repórter como um anjo.

Levamos aquelas redações junto conosco, como um braço. O perigo é se transformar num contador de histórias antigas, assustando os estagiários. ?Nos anos 50?, disse uma vez Granadeiro Guimarães para uma pobre iniciante, numa de suas lembranças, quando interrompi. Anos 50 é uma impossibilidade, disse, não dá para pessoas que estréiam na idade adulta imaginarem um tempo que faz parte da História no ensino fundamental.

Descobrimos, nesses causos que servem para matar um pouco o tempo que nos aluga a vida toda, que as pessoas com quem um dia compartilhamos mesas são hoje objeto de estudo. Era normal que Hamilton Almeida Filho e o Pena Branca aportassem para colocar na roda uma de suas inesquecíveis reportagens. Ou que Tarso de Castro viesse contar como distraiu sua nova conquista lendo os versinhos do poeta jornalista. Ou que Samuel Wainer olhasse debaixo de grandes sobrancelhas brancas e perguntasse:
- Você é editor?
- Sou, menti.
- Sim, porque eu preciso aqui de um editor. Você é editor?
- Claro, insisti.
- Então veja esta matéria sobre o General Inflação.

Wainer era de um tempo de guerra, da época do General Inverno, tão achincalhado mais tarde pelo Pasquim. Contava como desceu com Getúlio Vargas no Nordeste, com as pessoas que pareciam ter saído de um quadro de Portinari. Coisas que mais tarde Augusto Nunes imortalizou na autobiografia do Profeta, ?Minha razão de viver?. Mas eu precisava sair cedo e ele reclamava:
- O que é isso, meu filho? Não quer escutar História do Brasil ao vivo?

Queria, mas ficava para outro dia. Tudo aquilo iria durar mil anos. Durou pouco e ficamos diante da meninada com a cabeça cheia de histórias. Nenhuma completa, pois passei rapidamente pelas redações que se esfumavam, perdiam a batalha, se transformavam. Elas cruzam o tempo andando meio de lado, ou de banda, como dizia Drummond, com o peso dos que se foram.

Por isso, diante de tanto jornalista novo, com os quais aprendo muito e tento repassar alguma coisa que aprendi, costumo desistir da herança.
- O senhor é jornalista? me perguntaram um dia.
- Não, respondi.

Fui sincero. Não sou mais o que hoje se espera de um jornalista (abaixo dos 35 anos, formação em MBA, trilíngüe). E pensando bem nunca estive totalmente impregnado dessa luta, como aconteceu com tantos profissionais do primeiro time. Tive a sorte de conviver com eles.

E se insistem que eu faça alguma coisa, e sempre acabo fazendo, inicio minha arenga indignada com um insistente bordão:
- Vocês querem que eu tecle?

RETORNO - 1. Este foi o terceiro texto para o espaço Literário do Comunique-se. Desde a estréia, "Véspera de linguagem", tenho colocado todos os tempos que convivem em mim, incluindo aí o tempo presente.2. A imagem deste post é uma fotaça de Helio Campos Mello, que saiu recentemente da IstoÉ para retomar seu ofício de repórter de campo, fazendo dupla com Ricardo Kotscho. 3. Leia Jesús Gómez no La Insignia sobre o 14 de abril.

13 de abril de 2006

O SENTIMENTO SEM NOME





Nei Duclós

O que chamam de amor é um grupo infinito de sentimentos incompreensíveis, que formam um conjunto batizado por essa palavra. São como fibras de um cabo de luz ótica, visto depois de um corte. Você olha o perfil e vê uma série de pontinhos, cada um fazendo parte de uma fibra. Como são intensas e vivem unidas, confundem os conceitos. É costume chamar, indiscriminadamente, de amor uma série de sensações, unhas cravadas no coração indefeso, ou apenas rios de lava que percorrem o corpo, uns de maneira mais tépida, outros abrindo caminho com fúria. É impossível separar cada fibra do feixe todo, por isso há tanta má vontade, na prática diária, em relação ao amor. Ou se abandona o sentimento (aquela fibra sem nome, que faz parte do conjunto, mas não é o amor, condomínio poderoso de inúmeras habitações) ou se convive muito mal com ele. Como posso saber dessas coisas? Sei lá, às vezes a lua cheia está plena de recados.

PRESENÇA - Ao acordar, existe uma sensação. Pode ser arrependimento, ou simplesmente continuação de um sonho. Estás só, mesmo que haja presença alheia. É contigo o embate: alguém plantou dentro de ti uma fibra ótica que cruza, como um neutrino (partícula que existe, mas não deixa marcas) teu corpo todo e te faz tropeçar no piso encerado (ou no chinelo, mas esta é uma palavra pouco apropriada quando se fala dessas coisas). Basta conhecer alguém e uma outra fibra não te abandona. Como podes se nem conviveste com aquela vida? É apenas um fisgar. Quando te revoltas com alguém pedindo comida num país que exporta proteína, desabafas para alguém desconhecido, teu coração está cheio de revolta e calor. O momento passa e ninguém lembra de mais nada. Volta para ti um cheiro, uma lembrança, uma cena, e lá está, plantada como um salso chorão (aquela árvore que se derrama em folhas e galhos sobre o chão), como um tornado invisível, a parte do feixe que deixaste de lado como um lixo industrial. Vais até o quintal da tua vida e vês, atirado, enrodilhados como cobras mortas, o conjunto de brilhos agora foscos, que deixaste de lado.

ESPELHO - A vida é um eterno assassinato dos sentimentos sem nome. Como não podem ser identificados, não há batismo. Chamamos de paixão, amor, empatia, todas as palavras, mas não se trata disso. É algo completamente desconhecido. É território inexplorado, que fazem a riqueza da psiquiatria. Não se trata de batizar, mas de identificar como algo próprio, que faz parte de um conjunto maior. É mais do que a arqueologia do coração e da mente, é trabalhar com um universo desconhecido, que está dentro de nós, mas estamos ocupados com outras coisas. Como há completo desconhecimento, os livros de auto-ajuda fazem a festa. As pessoas correm para as livrarias para tentar entender alguma coisa, mas existem apenas palavras. O sentimento sem nome (um olhar, uma esperança) está fora delas e continuas no terreno baldio da tua história. Então, se instala o hábito. Ou as pessoas se rendem aos argumentos falsos dos autores que nada entendem do incognoscível, ou continuam à parte de tudo. Aos poucos, tua cara toma a forma de uma máscara de horror.

MURO - Pois é preciso estar protegido contra qualquer tipo de sentimento. Tens mais o que fazer. Precisas sobreviver, fazer os outros se enxergarem, ordenar, contrapor, vencer. Para que serve isso que está agonizando como uma cobra de luz dentro do balde de tua indiferença? Serve para serem depositados em animais de estimação, em viagens inúteis, em poses estudadas. Serve para o vazio, enquanto sonhas com o amor tornado impossível, pois se não consegues entender uma só fibra do conjunto, como poderá lidar com uma cidade, uma nação, uma estrela inteira de grandezas infinitas? Idealizas o grande amor enquanto perdes o contato com que o tenta se salvar dentro de ti. Basta saber que isso existe, que não tem nem terá batismo, e acolhas em tua casa como um viajante sem pouso. Dê-lhe comida e água e um teto, para que possa ficar, ou parta um dia sem remorso. Serás assim a hospedagem de sentimentos desconhecidos, mas reais, e serás visto como alguém que sabe honrar o compromisso maior com a vida: a de existir para que todos possam encontrar seu destino e conseguir chegar ao portal divino com um feixe de fibras que se retorcem.

PERFUME - Será teu presente ao Deus que te aguarda, essa ramo de flores ainda incógnitas, mas vibrantes. O Paraíso precisa desse gesto, para que haja perfume na morada eterna e algo mais do que lágrimas na terra em conflito.

RETORNO - 1.Foto maravilhosa de Marcelo Min, o Olhar Absoluto, numa loja de luminárias da Consolação. Passei anos por lá e jamais vi algo assim. Min enxerga. 2. Bebeto Alves comemora os 30 anos da inesquecível banda Utopia e inicia celebrada turnê pelo país. Muts Weirauch e o Alphagroup se apresentam em Porto Alegre com clássicos antigos e modernos da música que ele adora e nos faz a cabeça. Delmar Marques lança livro e video sobre os minuanos em espaço cultural da praça Benedito Calixto em São Paulo no dia 20. 3. Hoje é dia da minha crônica semanal no espaço Literário do Comunique-se. 4. Muts informa sobre seu novo show: "O repertório (são dois momentos)tem no primeiro lance, uma coletânea de rocks e baladas e blues e countries da longa estradada da vida. São títulos dos Beatles, The Doors, Rolling Stones, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Eric Clapton, Jimi Hendrix, The Who, Led Zeppelin e Steppenwolf. Agora começa a segunda parte, com a banda mais entrosada..vamos pegar as 18 músicas que tenho guardadas(Duclós - Muts, naturalmente). Daí, começaremos a gravar no estúdio Believe, onde ensaiamos direto, ao vivo, como nos velhos tempos dos anos 50-60, quando as máquinas gravadoras não tinham mais que dois canais.O título, 1967 da capo", diz da anotação musical:começar novamente desde o princípio: 1967. Vou te dando notícias no decorrer da epopéia.Grande abraço.muts". 5. Meu texto " É de trem que eu preciso" foi publicado no La Insignia.

11 de abril de 2006

É DE TREM QUE EU PRECISO





Cada batida da roda no trilho é uma paisagem nova que a janela improvisa. Não nova no sentido de novidade, mas verde quando é pampa, azul quando é serra, infinito quando é água. O tranco da locomotiva leva o vagão para a curva do destino. A fila de imagens que não canso de olhar é o cinema que me falta. Amanhecer ao lado da grande tela de vidro embaçado é antever o sol que ainda não veio, e basta uma lufada de mão na neblina cristalizada para ver um raio que atinge o pássaro ao pé de um riacho, a ponte inútil de madeira comida, o gado esparso na grama cercada. Mais um pouco de luz e tudo se descortina, principalmente a viagem que talvez agora chegue ao fim, depois de uma noite mal dormida, em meio à população que se dirige a algo que não entende, a vida passada em trajetos sem sentido. Ao meio dia é hora do almoço na estação antiga e de conviver com o cheiro de panela de ferro, arroz de outras vidas, talvez com o gosto de infância ou de liberdade. A carne que só existia naqueles lugares ermos, para onde jamais voltaremos, mas que ficam no corpo como sinais incompreensíveis. O refrigerante em garrafas escuras, que guardavam licores abandonados, e as prateleiras onde se divisava um rádio de ondas curtas, que pegava a guerra distante e a música que sumiu totalmente do mapa.

ESTRADA - É de trem que eu preciso, para chegar ao tempo que me absolve. Não se trata de fugir ou de puxar a memória como um elástico frio. Mas de viajar de novo, enquanto o país desmoronado nos permite uma trégua e haja homens de chapéu e senhoras de véu na cabeça e adolescentes como nós, empertigados em nossas roupas providenciadas pela mãe que nos deus adeus no ponto de partida. Ela ficou lá plantada, enquanto, ingratos, sumíamos para o futuro, aquela mãe que não nos abandona e reza por nós enquanto fazemos alarido nos bancos esfolados de couro velho. Passeamos pela serpente enferrujada, apertados em corredores de bancos ou de dormitórios precários, até chegar ao restaurante onde arriscávamos uma cerveja fabricada na beira daquela estrada, porque o mundo se localizava no lugar onde estávamos e não era essa confluência de nadas, em que não nos deciframos, mesmo que tenhamos certeza de que é assim que seria, e nada poderíamos mudar com nossas calças curtas, nossa camisa de jersey, nosso cabelo engomado, nossa escassez de criaturas datadas.

MALA - Queríamos saber o que o arco-íris nos reservava, sem atinar que o trem era o que passaríamos a vida buscando. Não era nossa intenção ficar fixos neste eterno presente, em que não se tolera reminiscências, e quando elas existem é para mentir sobre o que fomos um dia. Por isso faço a mala, ponho meu terno azul marinho, e envergado sobre mim traço a viagem de volta. Aguardo junto com outros passageiros que, como eu, voltam para reencontrar o que deixamos para trás. Estamos novamente enganados. Não é no fim da linha que teremos novamente o café com pão da família perdida, nem na cidade que deixamos por mero capricho. É esse retorno que nos incomoda, porque há desconforto, apertos entre desconhecidos. E talvez o trem atrase outra vez, já que ele não existe mais, mas teima em ficar parado algum tempo embaixo da lua cheia, enquanto ficamos aflitos à espera do reinício do impulso que nos carrega.

TETO - Nunca vamos aprender que andar é o caminho, e que os destinos, no começo ou no final da jornada, são mais precários do que qualquer sonho despertado no meio da noite, quando vemos o teto do vagão sumir para que possamos ver as estrelas. Isso tem me acontecido ultimamente. Deito e olho para cima e vejo novamente o céu que deixei há poucos instantes. Com todas as estrelas e fiapos de nuvens, o que torna a visão ainda mais verossímel. É como acampar sem barraca, contar estrelas cadentes, seguir o risco de satélites que usam as constelações como parada. No fundo da madrugada, o trem pára novamente. Olhamos pela janela, que também dorme. Uma luz cercada pelo fogo fátuo das mariposas nos diz que ali é um ponto conhecido, por onde passaremos mais uma vez em direção ao que não nos consola. Crianças se agitam, senhores do povo conversam baixo sobre pescarias e negócios. Há um cheiro de cabelos engomados, de chapéu de feltro, de xales de lã. Onde estou? me pergunto.

TALISMÃ - Estou no meio do meu ofício, que é tentar entender a passagem obscura pela terra envolta em mistério. Estou só, como a criança que adormece no crepúsculo e acordo na boca da escuridão com um solavanco. Ela vê o homem fardado passar com seu boné de autoridade máxima da viagem. O homem recolhia passagens quando todos se aboletaram pelos bancos. Agora ele vigia o sono de quem escolheu esse momento para percorrer a trilha insana de uma vida. A criança fecha novamente os olhos e o embalo da serpente emplumada o leva para longe. Para lá, onde a poesia dorme e as palavras soltas como um rebanho pastam no esplendor de uma revelação. Nada nos salvará desse enigma. Por isso agradecemos a Deus quando o dia firma e alguém oferece um café recém feito, uma bolacha dormida ou um jornal comprado na corrida numa parada qualquer. Entre um gole e a mordida do trigo providencial, vemos estampada na primeira página nosso rosto adulto, a nos olhar com ar sagrado da santidade. Para esse rosto rumamos, carregando a infância como um talismã. Ela está dentro de uma pequena caixa, que guardamos no sobretudo. Da tampa aberta, salta a bailarina, ao som de uma valsa tocada por cristais e acompanhada pelo brilho de diamantes de um filme que vimos no cinema lotado, quando havia cinema e quando éramos a alegria da criação em desencanto.