21 de fevereiro de 2006

O POVO EM SUA MAJESTADE





Povo é uma palavra-mundéu, no mesmo sentido dado por Euclides da Cunha em Os Sertões para a cidade de Canudos: toda vez que você investe na armadilha, é enredado por ela. Há várias arapucas. A primeira é erradicá-la da nossa identidade (brasileiros são os outros). A segunda é usá-la em benefício de interesses políticos e publicitários (o populismo, que é sempre de direita). A terceira é roubar seu crédito quando alguém legitimamente popular se destaca. Pelé, por exemplo, seria um ET vindo do espaço, como já foi dito pela crítica esportiva.

O povo atinge a majestade quando consegue fazer de suas origens o insumo para sua transcendência. Pelé nunca deixou de ser povo e tornou-se Rei, ungido pelo gênio de Nelson Rodrigues (em crônica selecionada na antologia de Ruy Castro, À sombra das chuteiras imortais) e a carreira inigualável. Mas toda pessoa longeva acumula esqueletos no armário. Faz parte da sobrevivência e da precariedade humana. Não se costuma perdoar a longevidade, nesta terra do eterno presente. Gênio bom é gênio morto. Mas o bom da majestade legítima é essa escassez provocada pelo humano. Torna maior aquele risco de luz que é sua vida terrena.


TALENTO - Pelé encarna o mito do Brasil soberano. Nascido e criado na Era Vargas, levou para os gramados o talento que floresceu na infância escudada em políticas públicas para a educação e o esporte. Construiu a técnica definitiva no embate físico com os adversários. E exibiu a grandeza do seu movimento, representado pelo corpo cinzelado pela perfeição. No futebol, o jogador pensa desde antes de receber a bola, disse uma vez Pelé para os americanos, ao explicar porque não poderia jogar o falso futebol deles, aquele que é um embate entre brutamontes e é interrompido em cada segundo graças à burrice da porrada. A inteligência de Pelé foi alimentada pelos olhos que saltavam das órbitas, e que lhe davam total visão de campo; a antevisão do lance, por conhecer as possibilidades permitidas e as condições dos outros jogadores e do gramado; e objetividade diante do gol, o momento supremo em que o planejamento rápido como a luz é coroado depois de um insight decisivo. Pelé alternava o levante sem bola com o toque magistral que deslocava o centro do drama. Pois não é a bola que está em destaque, mas a intenção das equipes. É o imaginário que comanda a ação e não o contrário. Por isso era imprevisível, pois assumia o risco do improviso bem plantado em sua força física e na capacidade de raciocinar. Pelé é o doutorado do futebol. Cada partida é uma tese comprovada e cada drible é um argumento sem contestação.

CHANCE - Pelé é a chance aproveitada e desenvolvida a partir de uma tragédia: a derrota do Brasil no final da Copa de 1950. Prometi dar uma campeonato do mundo para meu pai, que chorou naquele dia, disse Pelé. O anjo vingador nasceu dessa derrota e transformou o ímpeto numa vitoriosa campanha que colocou o Brasil no primeiro time da arte inventada na Inglaterra e transfigurada no Brasil. Falar de Pelé é chover no molhado, apesar de existirem dúvidas entre ele e Maradona. Este, no ranking mundial deve ocupar um lugar bem abaixo de Garrincha, Didi, Domingos da Guia, Romário e Nilton Santos. Não se trata de patriotada, mas de evidência. Hoje, até mesmo Pelé gosta de dizer que Ronaldinho Gaúcho é parecido com ele, e alguns arriscam ser o cracaço do Barcelona melhor do que o ídolo. Não é. Ronaldinho é o auge do futebol que restou depois da retirada do Rei. Talento, genialidade, sucesso, tudo isso faz parte de sua personalidade. Mas ele não tem a majestade, essa superação que uma biografia impecável revela, essa sintonia com a nação que foi grande. Pelé é o Brasil que encantou o mundo, Ronaldinho é o Brasil que mantém a tradição. Um é semente, o outro é fruto. A semente é eterna e por mais que o fruto sonhe, sempre trará dentro de si a majestade que o gerou.

SAL - Pelé é o povo que chegou à majestade. É uma criatura dialética, vinda de longe, parte de uma geração que invadiu a cidadela adversária pela primeira vez. O reino já estava posto quando vieram os outros a seguir. Mas ficou a originalidade do gesto que inventou o sonho. Não há, portanto, armadilha quando se fala de Pelé. Ele é o povo que provou ter a capacidade de gerar o mito. Por isso, por onde passa, as pessoas procuram tocá-lo. O Rei é a carne que se fez Verbo, numa inversão do ato divino da criação. Ele não é um deus, é a pessoa que, para sempre, estará de pé, suado, olhando para onde ninguém vê. Lá está a sorte que persegue, o dom de sua predestinação.

Pelé, mais de uma vez, fez a justa reverência a seus mestres, como Zizinho. Quando consegue uma bicicleta mortal, é o diamante lapidado pelo Brasil na luta que ainda não terminou: a de sermos novamente a nação que um dia construímos. Ainda melhor, carregando o sal de tantas décadas de dor.

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