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8 de fevereiro de 2006
JOÃO GILBERTO, O ESPLENDOR DA FALA
Nei Duclós
Ser contemporâneo de João Gilberto é pura armadilha. Corremos o risco de nos enredar nas palavras que inventaram para ele, que todos conhecem e não é prudente lembrar. Para escapar da arapuca, é preciso vê-lo na ultra-densidade da sua transcendência. Pois não há criador mais completo na sua obra, mais coerente na sua trajetória, mais louco na sua obsessão, mais profundo na sua originalidade, mais irritante na sua teimosia.
Ele é só isso, como o baião, e exatamente por isso torna-se maior do que o universo armado pela voz e o violão. Ao mesmo tempo, a esses dois instrumentos se reporta o tempo todo, pois eles representam, encarnam e projetam a verdade que deveria nos acompanhar sempre: a de que somos eternos, conscientes desde o início dos tempos e temos sempre a chance de voltar a esse brilho, que ao escutar, conhece.
João Gilberto se presta ao exagero: a única coisa que lhe faz sombra é o silêncio, chão que palmilha devagar, com o passo que inventou nesta terra sem sentido e neste país assassinado. E se temos hoje uma língua, é porque João Gilberto resgatou-a, reinventando cada sílaba, pronunciando cada palavra, como um instaurador de milagres, e um fundador que não se contenta em apenas descobrir, mas cavar e levantar a estrutura completa de uma nação que hoje mora dentro de nós.
Por isso é insuportável, pois para existirmos precisamos nos calar diante dele. Não podemos nos dar o luxo de emitir qualquer ruído, vício que hoje nos corrompe e mata. João Gilberto exige o silêncio para que possamos notar não a música, nem suas vestimentas, como harmonia ou ritmo. Notar no sentido de reconhecer a nota, saber onde ela se encontra, o que ela faz, a quem se refere e porque existe por si só, vibrando por ser filha do infinito. Se notarmos, estaremos salvos porque aprenderemos a existir fora da brutalidade sonora que são as barras da jaula. Seremos livres, não porque veio o salvador, mas porque notamos o que nos falta. Assim, podemos chegar ao outro lado do rio da morte sem pagar tributo para o barqueiro sinistro.
É crime, portanto, achar que você pode fazer ruído quando João Gilberto está em ação, emitindo o caldo original de uma cultura, a expressão mais elevada desta meta-raça brasileira, como queria Gilberto Freyre, definida pela vivência, a geografia, a mistura, a diversidade. Não se põe João Gilberto ao entardecer para ver o tempo passar, mas para vislumbrar essa porta entre os mundos, como queria Juan Mattus, em que temos um pé na miséria e outro no mistério.
O que ele faz não precisa de nada, nem do estalar de dedos, nem dos conceitos sobre jazz ou samba. Não tilinte copos ou bata caixa de fósforos, nem pertença a qualquer religião sonora conhecida. Por se vergar ao alicerce, por se dedicar à coluna mestra, por se circunscrever ao quintal, João Gilberto atingiu a essência. Desse pequeno asteróide armou a flor da sua conversa.
Ao nos calar, descobrimos o anjo inventado pelo ouvido absoluto. Há um silencioso ruflar de asas por trás de cada fala dita pelo criador. Esse esplendor toma conta de um espaço concreto, como uma abóbada, como se a arquitetura se revoltasse contra as formas e decidisse viver apenas desse banquete mínimo, que vem de uma fonte infinita e parte para outra, idêntica, como pássaros tontos salvos pela busca do Eldorado.
Devemos sair desse recinto sem mexer a cadeira, para não despertar o escândalo. Devemos sumir de vista, para que só exista esse escutar contínuo. Que de repente se fecha como um casulo, se recolhe como um rochedo na gruta. É enfim o silêncio, mas modificado: agora, depois de ouvir João Gilberto, sabemos quem somos e podemos contemplar a quietude sem nos desesperar. Não precisamos de barulho para dizer a que viemos. Temos João Gilberto, que está entre nós, como um irmão poderoso, uma visita noturna, uma refeição vespertina. De manhã, dormimos o sono solto da boa aventurança, pois há um sino modificado em cada momento, que desfez o metal reiventando a pomba.
Somos o país articulado pelo esplendor da fala de João Gilberto, que dispensa palavras, por tê-las sempre ao redor como um coro de crianças.
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