19 de fevereiro de 2006

A CULPA GEOGRÁFICA




Funciona assim. Algo terrível acontece na tua cidade ou bairro, um assassinato, uma tragédia qualquer. Logo vem alguém e diz: viu? aconteceu lá na tua terra. És culpado por pertenceres a algum espaço geográfico. Foi lá em Ingleses (praia do norte de Floripa, onde moro), me disseram. Lá que um gaúcho fez isso ou aquilo. Conheces aquele estelionatário? Nasceu perto de onde moras. E por aí vai. Ser de algum lugar é altamente suspeito no mundo desenraizado. As pessoas se dividem entre os que são daqui (que detêm todas as virtudes) contra os que não são daqui (os que cometem todos os pecados). Isso é culpa dos turistas, costumo ouvir. Por que não vão trabalhar? Por que não voltam para lá? É um efeito bumerangue. Isso é coisa de mané da ilha, ouço seguidamente. Mão-de-obra catarina, cusp, é pior do que a potiguar.

Em Sampa, que é a mais tolerante cidade para os adventícios, o vício também se manifesta. As pessoas são de três tipos: os legítimos habitantes (italianos em sua maioria), os baianos (todos acima da divisa do estado) e os do Sul (tudo abaixo do rio Pinheiros é Porto Alegre). É a culpa geográfica. Coisa da tal federação, o país dividido em nações independentes limitados territorialmente, para melhor ser tragado pela pirataria de todas as nacionalidades.

PERDIDOS - Tentei ver Lost novamente e achei tudo uma grande bobagem. A tensão que existia entre os temas implícitos (os princípios da América) e explícitos (o tema clássico de civilizados perdidos numa ilha), escudados por bons roteiristas, foi tudo por água abaixo. Agora o que existe são falsos suspenses e me parece que os atores são bem piores do que eu imaginava. É o que dá analisar on line. Mas a visão que tive dos primeiros capítulos, positiva, permanece. Acho que a série sofre de culpa geográfica: esses americanos...

A desconfiança em relação aos que vem de fora se justifica. Morar numa cidade sem comunidade nem raízes, ficar à mercê do vento e das violências variadas, é bem pior do que tentar adaptar-se ao olho desconfiado dos nativos. No fim, é agradável ver que o motorista do caminhão de entrega é irmão da moça que está esperando o ônibus. O gesto mais comum em Floripa é um assobio de alguém dentro de um carro para outra pessoa fora dele. Seguido do assobio, vem um sinal de positivo. Bem melhor do que as caratonhas facinorosas que nos acompanham nas megalópoles, onde você não sabe de onde vem a baixaria.

CRIMES - Mas quando a dúvida se torna uma doença, fica um problemaço. Fechar-se em copas num lugar que tem tudo para se abrir em mil vetores, é uma atitude um pouco inútil. Pois um a cidade à beira mar é um convite aos migrantes. Chega gente de todo lugar. Todos querem vir para cá. Esses turistas...

O envolvimento de brasileiros com crimes no Exterior continua. Matam, morrem, vão para a cadeia. Culpa de pertencer ao país que não os absorve. Aposta numa vida melhor em outras terras, para sofrer o escárnio de não pertencer ao lugar que escolheram viver. Um país com tanta terra, dizia um uruguaio escandalizado na Uruguaiana dos anos 60. E não se entendem na reforma agrária. A freira americana assassinada a mando de grileiros é um exemplo. Ela não era daqui, era uma bisbilhoteira, se justificaram os assassinos. Por que interferir nos nossos negócios? Imaginavam que ficariam impunes, já que são virtuosos por serem daqui.

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