6 de dezembro de 2006



A ERA DO BOCEJO

Como todo mundo sabe tudo e não costuma escutar nada , basta tentar dizer alguma coisa para na sua frente surgir aquele vasto, inextinguível, titânico bocejo. O cara primeiro vai desenhando na boca o que virá em segundos. Aí ele vai se abrindo, se abrindo, até escancarar as mandíbulas e projetar um jorro de ar quente sobre você. Não satisfeito, como as articulações fazem grande esforço, é preciso de uma força extra para que o queixo volte ao normal. Isso implica um final apocalíptico, com um háhaaa vindo do fundo da alma. A mão serve só para disfarçar. O bocejante ameaça tapar o bocejo com a mão, resquício atávico de alguma ancestralidade chamada boas maneiras ou educação. Mas a mão desiste no meio do caminho e acaba reforçando o bocejo com o braço dando estirões finais para deixar bem explícito que a pessoa está cagando e andando para qualquer manifestação do Outro, mesmo que seja algum monossílabo. É a maneira de acabar com a intervenção antes que você esboce uma palavra. O interlocutor te brinda com um bocejo para dizer quem manda naquela conversa.

GOLPE - O bocejo de casais é também bastante comum. Os dois estão agarrados em frente a um grupo ou alguma pobre vítima. Como são um casal e tudo está certo e nada pode mudar, ninguém tem nada a fazer ali a não ser o próprio casal, então o cara ou ela esboçam um tremendo bocejo, para avisar que a relação está completa e fechada nela mesma. Existe também o pós bocejo, que pode ser mais demolidor do que o próprio. Com o corpo todo transido pelo monumental gesto de indiferença e desprezo (jamais de sono, se você está com sono você vai dormir, não precisa ficar bocejando), e depois do golpe final do hããã de ar quente, a cabeça pode ser jogada para frente em sinal de extrema gargalhada. Isso se o interlocutor, remando contra a corrente, conseguiu dizer algo inteligível, já que lutou bravamente contra o golpe de barbárie do qual foi vítima. O pós bocejo fecha a conta com um gesto sinistro da cabeça, um olhar de mofa, uma interjeição de exclusão absoluta. Está feito o serviço. Todos voltam para suas solidões.

BIFAS - Quem boceja em público, de maneira explícita, quer dizer que nada tem a ver com o ambiente, que está acima dele, que seria melhor estar na cama e não ali naquela joça, que as pessoas ao redor não interessam e que é preciso todo mundo deixar de ser idiota. Bocejar em público é a facada certeira contra o convívio humano. Mas é natural, dirão. Faz parte da vida saudável,outros vão acorrer com a explicação. É preciso expulsar o ar viciado dos pulmões, os que ficam no fundo do poço. Sim, mas na nossa cara? Para enfrentar essa praga é bom armar-se de boa vontade e aplicar uns tabefes em quem fica bocejando. Uns taponas, uma bifas, uns pé de oreia, umas arraias. Vai bocejar no banheiro, seu.

FOTOGRAFIA - Vivemos na Era do Bocejo porque tudo já foi dito e explicado. Aos sobreviventes só resta admirar, comprar, consumir e comentar, bocejando: que filme! a fo-to-gra-fiaaaa!!! Sempre me pergunto o que quer dizer "a fotografia" nos filmes. O filme é mais ou menos, mas a-fo-to-gra-fia... O cinema é a verdade 24 vezes por segundo, disse Godard. Cinema é a ilusão da fotografia em movimento. Todo filme é feito de fotogramas, agora na era digital é pixel, que sei eu. Mas você elogia a fotografia de um fotógrafo, não de um cineasta. Duvido que alguém diga para um filmaker: que fotografia! Ele vai ficar pasmo. Sim, trata-se de um filme, O filme é a imagem em movimento, só pode ter fotografia. Do que você está falando? Ah, as belas paisagens? Ah, o claro-escuro? Ah, o contraste, o bom gosto do enquadramento, a eficiência do design visual, ah, sim, pode ser. Mas me diga uma coisa. O que você achou do filme, sem citar a fotografia? Ou se citar, vá à frase seguinte. Ei, não boceje.

RETORNO - Imagem de hoje: Danny de Vito, como o policial em "Quem não matou Mona", de Nick Gomez (2000). Um filme sobre a indiferença.

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