15 de dezembro de 2006

OS ANJOS RESISTEM





Nei Duclós


O espectador é o menos privilegiado dos autores. Quase nada sobra para quem vê um filme, a não ser o olhar sobre o que já foi decidido. Não há abstração no cinema, diz o cineasta maior, Sergio Rezende, a mais sólida obra do cinema brasileiro contemporâneo. Tudo tem de ser posto para ser visto. Nessa participação escassa, o espectador veste a beca da percepção para enxergar o que por anos foi preparado, suado, criado, tirado a fórceps, imaginado, feito, abraçado, chorado. É o momento de gala, quando somos convocados para que enfim o filme cumpra o seu destino. Nada mais podemos fazer, porque tudo nos é servido de bandeja. Isso intensifica nossa responsabilidade. Não podemos devolver ao que vemos o que temos de pior, a indiferença, ou o de mais precário, a emoção que se perde já quando os letreiros enfim sobem. Somos responsáveis pelo filme que nos é entregue como a carta do maratonista que morre ao cumprir a missão. Estourou a guerra, diz a mensagem. Convoque o que você tem de melhor.

ESPÓLIO - Quando o filme é Zuzu Angel, que se soma à galeria de grandes personagens de Rezende, junto com Mauá, Tenório Cavalcanti, Antonio Conselheiro, Lamarca, já começamos em dívida desde o início. Em dívida porque Rezende traz para a tela o que é profundamente poderoso no Brasil assassinado e que ficou fácil de esquecer depois de décadas de ditadura. Para isso foi feito 1964: para abandonarmos o Brasil Soberano. Rezende vai lá e pega de volta algo que pertence a esse espólio e joga a nossos pés, jamais na cara. Rezende tem a delicadeza dos fortes, a contundência dos bravos, o fôlego dos sobreviventes. Ele traz, com equipe formada ao redor da esmerada produção de Joaquim Carvalho, não apenas uma personagem, que por tanto tempo ficou oculta (Zuzu Angel era um sussurro nas redações contaminadas pelo medo). Não o Brasil, que se foi para sempre. Mas o sentimento que deixamos de ter quando os fatos aconteceram. Nosso alheamento, nosso pavor, nossa fuga. Ele faz Zuzu Angel sentar na sala e então podemos compartilhar desse terror que é o esquecimento, e o que é mais importante, a noção exata de quanto isso nos fez mal e o quanto é importante trazer de volta a emoção que não tivemos.

TRIBUNAL - Isso ele faz recuperando as pessoas que conviveram com Zuzu Angel, por meio de representações possíveis, quase próximas. Essas personagens são vividas por Ângela Vieira (essa solidez suave que a tudo costura), Luana Piovani (atriz de verdade, quando um diretor de primeira está por perto), Leandra Leal (o talento que tem a delicadeza de implodir para não assumir o próprio excesso), Regiane Alves (o conforto de quem aparentemente fica na sombra). Todas cercam Patrícia Pillar, uma solidão seduzida pela luz. O amor pelo filho, Stuart (interpretado por um brasileríssimo Daniel de Oliveira, biotipo oposto ao original - de estampa americana - a revelar a opção feita a favor do país onde nasceu e se criou) desencadeia a reação. Quando Patrícia peita o tribunal, o cinema brasileiro levanta de uma só vez, como se estivesse homenageando um rei que volta ferido da guerra. Pois é ao cinema que esta cena pertence, mais do que à História. O cinema precisa desse reconhecimento, para que a História sobreviva. Para chegar a esse momento supremo da sétima arte entre nós, foi preciso que Patrícia fosse cevada pelo Mal, encarnada pelo gênio. Pois é de gênio que falamos quando temos Othon Bastos com seu duro olhar diante da tortura, um olhar que movimenta o circo da maldade encarnado por vários atores que estão perfeitos em seus papéis de algozes (com destaque para Aramis Trindade, assustador como o Tenente que se vinga da ditadura, e Flavio Bauraqui, o torturador que mostra as várias faces da brutalidade). O Mal sem caricatura amadurece o país quando é mostrado em toda sua crueza.

SUSTO - Um filme como Zuzu Angel elimina qualquer possibilidade de o Brasil repetir seu velho papel de palhaço. Não se enquadra nos adjetivos que acompanham os lançamentos para ajudar a esquecê-los. Não se trata de uma obra-prima, de um grande filme ou algo parecido. Mas da ponta mais evidente de uma descoberta ainda submersa. É uma obra sólida, de narrativa enxuta, que convoca nossa omissão e nos abraça com seu drama. É um filme para ser visto com a parte de criação que nos toca: o de reinventar o que nos é mostrado na tela, resgatar (para quem viveu a época) o tempo perdido, descobrir do que foi feito de nós e avançar na arte que o cinema proporciona ao envolver tanta gente. Precisamos dizer: é o filme de um cineasta maior. Fruto de um país que amadurece aos trancos, como tudo na vida. E que ajuda a compor um conjunto de trabalhos que Rezende produz como se nos sacudisse pelos ombros, falando diretamente nos olhos, no momento em que recebemos uma carga de artilharia no front e achamos que tudo se perdeu.

Acordamos do susto com Sérgio Rezende falando para nós, quando vemos que já amanheceu e que todas as lições da longa escuridão precisam ficar conosco para que não possamos repetir a tragédia. Resista, diz ele, resista. Os anjos ainda estão do nosso lado. Acordamos então ao som de Angelica, de Chico Buarque, a canção feita para a coragem punida pelo horror.

RETORNO - Imagem de hoje: Patrícia Pillar em Zuzu Angel.

EXTRA - Fui citado no Relatório Direitos Humanos no Brasil 2006, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Mais precisamente no artigo, que consta do documento, Tráfico de pessoas no Brasil, da antropóloga Márcia Anita Sprandel, que escreveu o seguinte: "O poeta Nei Duclós, numa poesia chamada Lição de Travessia, afirma que o mundo não tem lado certo e que todas as margens podem ser pisadas. Que sua certeza sirva de inspiração a todos que trabalham na defesa dos direitos humanos de pessoas discriminadas por sua situação migratória ou por sua inserção no mercado do sexo, como vítimas ou como profissionais. " O artigo reproduz o poema, publicado no meu livro de estréia, Outubro: "Sempre que vejo um rio/parece que do outro lado/está a Argentina// As balsas carregadas da infância/sumiram do meu olhar/mas a ponte permaneceu/como eterna promessa/de que todas as margens/ podem ser pisadas// O mundo não tem lado certo/ pois há uma ponte sólida/ por cima de todas as águas".("Lição de Travessia", Nei Duclós, 1975).

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