4 de dezembro de 2005

AS JÓIAS DA FEIRA E UMA CRÔNICA

Hoje se encerra a Trigésima Primeira Feira do Livro de Uruguaiana, com o lançamento do poema-livro "Nunca Mais seremos os Mesmos", de Luiz de Miranda, um projeto nascido há três anos no próprio evento, quando fomos convidados pelo então secretário de Cultura Bebeto Alves, na gestão do prefeito Caio Repiso Riela, que sugeriu que cada escritor presente produzisse literatura a partir daquele encontro. O livro de Miranda, premiado poeta que já deveria estar há tempos na Academia Brasileira de Letras, por uma questão de justiça, fecha com chave de ouro a edição desta Feira, a cargo do atual secretário de cultura Miguel Ramos, na gestão do prefeito Sanchotene Felice, aos quaiis agradeço mais uma vez o convite de ter sido o patrono. Além dos livros que aqui já destaquei, na série de crônicas sobre o acontecimento, é preciso colocar fortes holofotes sobre "Literatura e poder", do professor e contista maior Cicero Galeno Lopes, lançado dia 2, sexta-feira, que é uma análise sobre literatura de dissidência, que estou lendo e farei resenha brevemente. O conterrâneo Cicero é um dos maiores talentos da literatura brasileira e seu estudo é uma iluminação sobre a especificidadede de autores muito estudados e citados, como Mario de Andrade, Manuel Antôonio de Almeida e Donaldo Schüller, mas sua contribuição é valiosíssima para que nos livremos das amarras das percepções prontas e acabadas. E devo destacar também "As estâncias conta a História - Bagé", de Carlos Fonttes (projeto e ilustrações) e Yara Maria Botelho Vieira (pesquisa e textos), que fazem primoroso levantamento desse universo pampeano (também já foi publicado livro sobre as estâncias de Uruguaiana). A seguir, uma crônica publicada hoje no caderno Donna DC, do Diário Catarinense, que é a antologia do que escrevi sobre a relação da minha infância com minha mãe, Rosa Molinari Carvalho Duclós, de saudosa memória.


QUANDO A PÁTRIA FAZIA SENTIDO

Essa era a festa cívica: ficar compenetrado diante de uma mãe que expunha publicamente o seu grande amor por nós

Nei Duclós

Naquele tempo, éramos crianças apenas para nossas mães. Para nossos pais, éramos homens. Eu vestia uma avental branco, com um enorme tope azul no pescoço, calça curta, meia branca e sapato preto. Esse era o uniforme de quem ainda estava no jardim da infância. Não chamávamos nossa professora de tia, chamávamos nossas tias de tia. As palavras ocupavam um lugar seguro, assim como nosso lugar na fila. Formávamos para marchar na majestosa Avenida Presidente Vargas, que se espraiava por um longo trajeto, toda embandeirada, com um obelisco pontificando bem no meio dela e ao som das marchas militares. Nosso coraçãozinho batia apressado.

Mas grande emoção não era a Pátria, não era olhar para a bandeira. Não estávamos numa cena do patriotismo oficial. Nossa grande emoção, vestindo aquele avental branco lavado, passado, engomado, que fazia um arco ao nosso redor, não era marchar com nossos pezinhos pequenos batendo firme no asfalto e fazendo movimento com os braços dobrados, rígidos, imitando o gesto cívico das paradas de soldadinhos em movimento. Nada disso nos emocionava realmente, pois como nascemos numa pátria soberana, isso era assunto para os mais velhos.

A grande emoção era saber que minha mãe estava no meio do povo, levantando a cabeça para me ver, sorrindo o sorriso orgulhoso das mães, abanando para nós que não podíamos abanar de volta, pois estávamos compenetrados demais. Essa era a festa cívica: ficar compenetrado diante de uma mãe que expunha publicamente o seu grande amor por nós. Só então a pátria fazia sentido.

O resto do tempo era dividido entre a escola, a praça e o grande quintal da nossa casa, onde havia um cinamomo que vingou . Árvore generosa, carregada sempre, fornecia artilharia contra adversários (todos os seres humanos abaixo de sete anos) e passarinhos (qualquer coisa que ousasse voar). De terra batida, acolheu galinheiros ou canteiros. Rente ao muro alto, que nos separava dos vizinhos e da rua, alguns mamoeiros deixavam cair as frutas que jamais colhíamos.

No centro, havia espaço para nossa brincadeira favorita, o faroeste, em que caixões empilhados imitavam diligências. O melhor era utilizar o rebenque, feito de galho fino e flexível, que geravas vergões em adversários com menos idade (eu sempre estava entre eles). Fechando tudo, vasto portão vermelho de ferro, que emperrava e só abria à força.

No vão que existia entre o portão e o chão, um dia vi o inevitável desencontro da vida de um menino: o sapato branco, com furinhos, como era moda entre as mulheres da época, mas que eu identificava como sendo apenas de propriedade de minha mãe, afastava-se de casa, o que desencadeou em mim a gritaria radical banhada em abandono. Minha mãe ia embora e eu não tinha outra opção do que implorar a sua volta, já que eu ficaria à mercê da crueldade ao redor e estaria órfão para sempre.

Consegui abrir o portão e fui atrás da pobre senhora que caminhava placidamente ao lado de algumas amigas. Ouvindo o berreiro, voltou-se preocupada. Nunca esqueço aquele rosto desconhecido. Usava óculos e ficou muda diante de mim. Eu já não dominava mais meus nervos. Agarraram-me à força e me levaram para dentro de casa, pois estava dando escândalo. Como poderia outra mulher usar o mesmo sapato de minha mãe? Esse era um mistério insondável para mim naquela primeira infância.

Ela se foi para o Outro Lado porque neste mundo não existe justiça e viramos pó para que não nos transformemos em monstros arrogantes. Resta a vida eterna, que é a esperança de espichar indefinidamente a lição poderosa de sermos finitos nesta viagem terrena. A eternidade é a mãe que despeja em nós a possibilidade de driblarmos essa professora impiedosa, a morte, que nos ensina a ser a fruta que não cai para apodrecer, a diligência que cruza o deserto, o portão que nos revela a fuga de um amor que fará falta para todo o sempre, assim como a pátria, quando ela se esvai pelos nossos dedos.

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