16 de julho de 2005

LUISÃO BATE NO PEITO




Luisão bate no peito porque seu corpo é um tambor. O que anuncia o grande craque com esse gesto, que parece reforçar sua fidelidade à camisa que defende, seja o Vasco, o Corinthians, o São Paulo ou a Seleção? Ele diz com a mão várias vezes que dentro dele, no fundo daquele lugar que aponta com tanta veemência para o torcedor emocionado, que lá, onde é difícil chegar nesta vida pautada pela escassez e a secura, há um tesouro que ninguém leva, porque morre conosco. O coração, revelado nesse momento pelo jogador que corre pelo campo, ocupa então o centro do drama. O choro de Luisão depois de ter feito o terceiro gol da decisão da Libertadores, no Morumbi, é esse evento não programado, que a todos surpreende, porque é raro testemunhar a garra do talento que enfim se entrega à poesia. Os poetas são da mesma têmpera: lutam a vida toda, não para fazer chorar, mas para provar que existe algo maior que transcende nossas vidas. Quando enfim conseguem, a lágrima é o único desfecho para o que foi feito com coragem e é deixado para nós como um talismã, uma bandeira.

DANÇA - O futebol, como todas as atividades humanas neste país perdido e saqueado, foi empurrado para a falta de escrúpulos. Quando vemos alguém como Luisão bater no peito, o cara mil vezes desacreditado que nos classificou para a copa de 2002, que foi expulso do Corinthians pela indiferença de quem entregou o time para o dinheiro internacional sem raízes, entendemos o recado: ele toca o tambor não para afirmar sua individualidade, mas para anunciar a esperança na arte que resgata o sonho. Uma arte incomparável, a dança leve que redime a força bruta, o toque de calcanhar no fogaréu da área adversária, o pé providencial que define o jogo, o arranque definitivo que conquista a nação agradecida. Luisão é explícito no seu caráter, na sua grandeza, no seu esforço, na sua competência. Por isso a mediocridade, que fareja tudo o que pode desmoralizá-la, tenta destruir o que nos lava a alma. Mas, quando menos esperamos, Luisão está de volta. Ele já não ultrapassou os limites da idade para se entregar a essa guerra? Ele não tinha se machucado miseravelmente? Ele não brigou com toda a cartolagem? Não importa os motivos que temos para esquecê-lo, ele nos lembra. E seu carisma ocupa o miolo do furacão. No início, ele chega e fica no banco. Um treinador arrogante o persegue. Uma mídia viciada não presta atenção. De repente, ele entra no segundo tempo. E algo se incendeia no país do futebol. A bola o procura, como a sede procura a fonte. É quando uma curva caprichosa cobre o goleiro na diagonal e cai no colo de quem sempre esteve ali e ninguém via.

PANDEMÔNIO - A festa monopolizada pela Globo fez o país esperar para ver a final da Libertadores. Era preciso aguardar o fim da execrável novela América (nenhuma relação decente, garanhões com batata quente na boca, fêmeas de todas as idades no cio, esse é o imaginário da autora, que ela impõe como sendo do povo). A polícia não liberou o telão na Paulista, não permitiu que se fechasse a avenida. A massa de jovens excluídos e destruídos moral e fisicamente pela barbárie da política econômica, pela corrupção geral e pelos desmandos da ditadura civil, invade postos de gasolina e lanchonetes e deixa um rastro de destruição. A massa não pode ver o jogo em plena rua, foi marginalizada pela prepotência. A avenida Paulista é um improviso para as comemorações populares. Não serve, devido à quantidade de instrumentos privados e públicos que ficam às mercê da violência. Mas como é a única dentro da parte mais importante da cidade com a largura suficiente para comportar a multidão, ela é a escolhida. Só a incompetência política deixaria de lado os motivos para agradar os torcedores. Finca-se pé numa pretensa correção, enquanto as malas de dinheiro voam céleres para salvar os ratos do navio que afunda.

RESSONÂNCIA - Quando Luisão bate no peito, ele está dizendo: dentro de nós, nação querida, mora um coração, uma alma, uma vontade, uma determinação. Dentro de nós bate calado um coração, e é por isso que eu faço esse gesto para todos enxergarem. O país que parece morto então acorda. E grita compassadamente o seu nome. Há brasileiros que nasceram para despertar o que dorme no fundo da arca. Eles levantam a população apenas com um drible ou um gol. Todos sabem que é muito mais do que isso. É o Brasil que busca em si mesmo o que foi jogado fora aos pontapés. Por isso o chute de Luisão não é um petardo. É apenas o desenlace do projeto que ele trouxe do berço. Mas colocar a bola na teia mortal da rede não basta. É preciso a ressonância da sua mão no peito que não se entrega.

RETORNO - 1. Vi neste sábado na Record, bem na hora da Zorra Total (esse humorismo de rádio reduzido a pó por 40 anos de ditadura) Dead Man Walking, filme de Tim Robbins sobre o perdão. Com sua mulher, Susan Sarandon (perfeita, como sempre) e Sean Pean (o sujeito antipático mais talentoso de Hollywood), Tim não dá mole para o assassino, o coloca como culpado, mas não poupa a pena de morte. Sua denúncia é sobre a vingança e o ódio. O antídoto é o amor e o perdão, bases do catolicismo minoritário na América imperdoável. Matar é condenável em qualquer circunstância. Perdoar não significa soltar o assassino, apenas não matá-lo. O título brasileiro do filme é Os últimos passos de um homem, o que acho fraco. Eu traduziria para O Andar do Homem Morto. 2. Minha crônica O segundo inverno, com ilustração de Samuel Casal, está no caderno Donna, do Diário Catarinense, deste domingo.

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