30 de julho de 2005

CRIME E CASTIGO



Obra de estréia de Javier Cercas, O Motivo procura desmascarar o mestre Dostoievski em um jogo de simulação com a literatura (Resenha publicada neste sábado, dia 30/07, no caderno Cultura do Diário Catarinense)

Nei Duclós

Dostoievski está na raiz de O Motivo (Francis, 118 págs.), novela escrita na juventude (1987) pelo espanhol Javier Cercas, autor do best-seller Soldados de Salamina, lançado em 2004 em português pela mesma editora, que vendeu 500 mil exemplares na Europa e virou filme de David Trueba. Surpreende que na minuciosa análise do posfácio, acusado de panegírico pela imprensa espanhola, Francisco Rico nem cite o autor russo. Mas o livro é puro Crime e Castigo: um homem solitário premedita um crime, o assassinato de uma pessoa idosa que tem dinheiro guardado em casa, e remói seus argumentos a favor e contra esse desenlace.

Embalado pela desconstrução do romance feita pelas vanguardas do século 20, Cercas no fundo parece querer desmascarar seu mestre, pois no lugar de refletir o país onde vive com seus personagens atormentados, tudo se reduz à literatura, como se esta se bastasse e fosse um círculo de ferro onde o leitor fica encarcerado para sempre, já que o final do livro é exatamente igual ao seu início. Como em Dostoievski, o que importa não é desvendar o crime (quem matou? Está claro que foi o escritor, esse Raskholnikov de gravata, esse personagem clonado do próprio autor). O que vale são os motivos que levam ao assassinato, aqui uma representação da trama da novela que está sendo lida.

É um jogo que serve para refletir sobre os mecanismos da literatura, essa arte que leva crianças crescidas a um ofício duro, quase sempre não recompensado devidamente. O paradoxo da profissão é que ela só pode ser reconhecida se o escritor abrir mão da humanidade que sustenta uma pessoa e atirar-se ao nada que a tudo devora. É preciso coragem para voar vestido apenas de uma capa vermelha, como um super-homem da primeira infância, e acreditar que será salvo pelas circunstâncias ou por seus super-poderes (ou, na pior das hipóteses, pela ajuda providencial dos pais). É uma empreitada difícil, pois, para não parecer ridículo, o escritor opta pela crueldade (on veut bien être méchant, mais on ne veut pas être ridicule, diz a citação recorrente do livro). Nem sempre funciona. Todo livro está a um passo do fracasso, e sua permanência tem a ver mais com o destino do que com a lógica.

Javier Cercas sabe o risco que corre. Por isso cerca sua novela de todos os cuidados. Parágrafos curtos conseguem grande intensidade narrativa, como a do preparo do protagonista no jogo do xadrez, artimanha usada para penetrar nos segredos do velho que vira vítima. Como um Dostoievski que não se ilude com a própria competência da arte de narrar, Cercas reduz Álvaro, o escritor fictício, a todas as veleidades de Raskholnikov, sem seus principais motivos. No livro russo, o assassino queria ajudar a própria família e era contra a velha judia usurária que explorava suas vítimas. Na novela espanhola, o motivo era um só: escrever um romance de verdade, que ocupasse um lugar decente na história da literatura e que redimisse o autor de suas tentativas frustradas anteriores, em que tentou em vão a poesia lírica e épica. Sua opção teria sido Flaubert, mas isso é mais uma cortina de fumaça em cima de sua mais profunda inspiração.

Trata-se de um jogo de esconde-esconde que serve para ludibriar os leitores e a crítica. Javier Cercas especializou-se numa arte da guerra, que é a simulação. Talvez ele acredite verdadeiramente que possa enganar a todos o tempo todo, senão poderia ser confundido (como de fato foi) apenas como um artífice capaz de ludibriar que tentar encontrar nos seus textos a chave do cofre mais íntimo. Seu truque é levar o leitor a acreditar que Álvaro é realmente um escritor que fica gravando as conversas dos vizinhos que ele manipula, e assim tirar dos conflitos material valioso para o romance. O leitor fica encantado com esse labirinto de detalhes sórdidos que expõem o escritor, que é sempre o alvo de todas as invejas.

Ele avança no seu jogo mortal, ao fazer os personagens manipulados entender que Álvaro está ficando louco com suas obsessões. Leva assim o leitor a acreditar que tem razão ao descobrir o óbvio, de que tudo não passa de perda de tempo de um estreante solitário em busca a glória. Mas a loucura do escritor fictício é apenas uma composição de cenas bem urdidas e jamais chegam ao centro do drama, que é Javier Cercas perguntar-se para que serve escrever, se nenhum proveito é tirado disso. Tudo já foi escrito e dito, já sabemos quem somos, para que repetir o recado? Mas ele insiste. Não existem bons sentimentos, apenas maldade. Não existe amor, apenas rancor e vontade de explorar os outros. Não existe harmonia social, apenas desemprego, briga conjugal, solidão. Não existe prazer, apenas o espírito de porco à espreita, para pilhar os contemporâneos de seus tesouros.

Nesse aspecto, a literatura é um crime sem perdão. O motivo que leva Cercas a construir sua novela bandida é estrear na literatura. Mas ele guarda um trunfo: tentar reescrever Dostoievski pegando o mote de Crime e Castigo para gerar uma novela como Memórias do subsolo do autor russo: o solitário compulsivo sente-se injustiçado pela sociedade e precisa encontrar nisso os motivos para o seu isolamento. Descobre que essa doença é geral, todos estão confinados em suas vidas medíocres. Então se vinga da concorrência rejeitando-a: escrever um romance é sair à luz para denunciar o que está oculto e que parece não ter solução. É um anacronismo: no século 19, era justificável existir um personagem como Raskholnikov, mas e agora, nesta época de tanta comunicação e presença maciça de gente conectada? Álvaro, o escritor inventado, é um anacrônico que, por sua existência, irá livrar Javier Cercas da mesma maldição. O autor real desova seu protagonista (clonado nele mesmo) para não sucumbir ao que leva todos ao desaparecimento.

Foi dito que esta novela jamais viria à luz não fosse o sucesso de Soldados de Salamina. É o típico comentário da crítica farta de ler profissionalmente. Quando se lê livros demais para gerar pensamento forçado, é comum entregar-se às idéias prontas. Especialmente quando se trata de desfazer um autor consagrado. Como, ao escrever seu best-seller, Cercas tornou-se intocável, pela maestria com que levou a narrativa a confrontar a história recente do seu país e os desafios literários do nosso tempo, fica mais fácil atacá-lo pelas costas. Ou seja, desmerecer seu livro da juventude. Mas Cercas está bem escudado. Invocou Dostoievski fingindo que ia atrás de Flaubert. Faz sentido: no autor francês, "o real, para o homem, é um efeito do uso da palavra", como notaram Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl num texto sobre Roland Barthes. Uma abordagem que tem tudo a ver com O Motivo. Mas Cercas bate o bumbo num degrau mais abaixo, ao optar pelo papel do romancista apesar de tudo ter sido já desmascarado. Lá onde existe a maldição absoluta, que é a do homem e, portanto, forçosamente a do ofício, há lugar para o escritor exposto em suas vísceras, mas vocacionado para a redenção. Ninguém melhor do que o mestre russo para denunciar o que tem todo aspecto de uma fraude.

Até o posfácio parece fazer parte da ficção, talvez para fazer uma defesa prévia, ou não dar trabalho à crítica, ou desmoralizar os críticos profissionais, já que se trata de análise excelente. Em qualquer cenário, ele se sai muito bem. Javier Cercas é um escritor raro, que tem o principal motivo para fazer literatura: contar toda a verdade, mesmo que isso pareça ser apenas um sinistro parque de diversões.

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