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6 de outubro de 2004
VÁ DIRETO AO PONTO
O ponto a que se refere o título não é a essência, a substância, o sujeito do teu texto (isso é outra coisa), mas o ponto final da primeira frase. Para ir direto a esse alvo, é preciso que você construa a mais forte, contundente, clara, inesquecível primeira frase da sua vida. Todo o resto do texto é desdobramento desse achado. Quando enfim você chega ao ponto final, lá no pé do teu trabalho, é porque tudo o que a primeira frase encerra está perfeitamente resolvido. Hoje, por falta de formação, os jornalistas colocam antes a tralha do texto, o que é marginal ao sujeito (que é a essência do que você quer transmitir). Sinal que produzir pensamento está atrelado à falta de cidadania, pois o que vale fica em segundo plano. Exemplo: colocar nomes, cargos, datas antes de tudo o que vale a pena dizer.
DIVISÃO - Mas o que é a substância do texto? É aquela massa virtual de pensamento produzida pelo leitor quando se debruça sobre o teu texto. Para chegar até ela, você precisa fazer um exercício de dramaturgia, colocar-se na função de quem lê e tratar o narrador (você!) e sua rede, seu tecido, seu texto, como estranhos. Ao se colocar nesse papel, elimina-se imediatamente todo preconceito que existe contra os Outros, já que você se torna o Outro. Todo mundo se considera o rei da cocada preta, portanto você é o maioral que está lendo o que um tal de fulano (você mesmo, seu!) está escrevendo. Essa divisão interna é pura arte e não doença psíquica, como alguns engraçadinhos já devem estar pensando. É um truque, mas não encare como truque. Use a técnica brechtiana da desdramatização. Funciona assim: o ator, ao assumir um personagem, o tempo todo dialoga com essa criação. Brecht, no seu trabalho de desalienação da arte, marxista magnífico que era, tornou essa ação transparente aos espectadores. Isso foi usado magistralmente em Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro, em que os atores se viram para a câmara, narram a cena e imediatamente assumem o personagem. Você fica sabendo que é o José Wilker ou o Paulo César Pereio que estão lá, te contando algo, e não que você está assistindo uma reprodução de época ou coisa que o valha, ou embarcando na ilusão do século 18. Assim é também com os textos. Você assume um personagem (o leitor), conversa internamente com ele, e tua narrativa então fluirá sem alienação nenhuma, firme e forte. Brecht é sempre bem-vindo. Beth Toth, nos comentários deste Diário, citou Brecht falando que algumas pessoas, que lutam sempre, são insubstituíveis. Isso é Brecht puro, como todos sabem. Está num dos maiores livros de poesia de todos os tempos, Poemas e Canções, editada pela José Olympio.
NETUNO - Mas o sujeito não é você, nem o leitor, nem o que você representa na sua cabeça como sendo o leitor (que não está dividido em nichos, como imagina o marketing). É, como disse acima, a massa virtual de pensamento produzida por quem lê. Nem tente manipular esse objeto selvagem. Cumpra sua função e retire-se para as montanhas geladas. Não espere reconhecimento pelo que você escreve, porque escrever é um trabalho que fica abaixo de todos os outros, desde sempre. Produzir pensamento não faz barulho, não exige gestos, não depende de força bruta nem de físicos em performance. Trata-se de algo reservado aos loucos, aos tímidos, aos que nunca mais voltaram, aos que te abraçam sem pedir documentos. Isso serve para a literatura e o jornalismo. Os craques do texto são como os craques da bola: não possuem físico para representar o que criam (com exceção de Pelé, mas Pelé é Rei, não vale). Eles são inimigos da moda que existe hoje de escrever sem assumir o sujeito da fala, ficar a reboque de falas alheias (por isso se usa tanto de acordo, segundo, para fulano). Esse tipo de costura mata qualquer texto. Você precisa chegar à substância para que ela seja o capitão desse barco. Ela comanda, ela costura. Uma frase assim grudará na outra, cada parágrafo não terá vida independente, pois fará parte de uma confederação de nações e teu texto brilhará como a estrela guia, no fundo do breu, em pleno alto oceano, quando todos dentro do navio estarão horrorizados com a mesmice e a escuridão. Subirás então teu lume no alto do convés e depois, abandonando o pódio que ocupaste por alguns segundos só para destacar tua obra, mergulharás para sempre até onde mora Netuno, o rei do movimento infinito das águas eternas. Serás lembrado então nas histórias que os duendes contam para as crianças, como um herói composto pela narrativa iniciada por uma frase inesquecível.
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