20 de agosto de 2017

JERRY LEWIS: FOI-SE O GÊNIO



 Nei Duclós


Morreu hoje, aos 91 anos, um gênio da Sétima Arte, Jerry Lewis (que uma parte da imprensa brasileira chama de ator e comediante, tendo sido muito mais: coreógrafo, diretor, roteirista etc.). Ele criou o personagem das telas que eu fui na adolescência. Não que eu o imitasse, eu era o próprio. Desengonçado, ingênuo, falando em falsete, sensível, sempre querendo ser aceito, incluído pelos caras mais cool, pelas moças mais bonitas, pelos adultos mais exigentes.

Jerry Lewis encarnou essa persona e a explodiu em filmes inesquecíveis, em gags demolidoras, em cenas definitivas, Quem esquece o boy de hotel que entregou o motor do volks, que ficava onde era o porta mala? O professor que ao consultar o relógio inundava o colégio com o uma banda marcial? O desfiador involuntário do terno do gangster? O maestro da orquestra invisível? O amigo das mulheres, o passeador de cachorros, o tango com George Raft e tantos outros momentos?

Ele manteve a comédia no alto nível de uma indústria que acabou apostando no humor apelativo e sem graça. Vieram depois deles os careteiros, os pornográficos, os cretinos. Não mais a grandeza da alma de um artista de verdade. Jerry Lewis era poético, brilhante, um exímio dançarino. Nos encheu de graça, de alegria, de emoção por muitos anos.

Em 2006 escrevi um texto sobre a comédia e seus links com o drama. A parte de Jerry Lewis é esta:

Jerry Lewis conseguiu, a seu modo, desvelar a tensão que é bater ponto no relógio da graça e trabalhar na fábrica da dor. Sua obra máxima, The Nuty Professor, é o filme que desnuda suas verdadeiras intenções. É mais do que uma vingança, é a reposição de papéis fundamentais, pois ele tinha nascido para o espetáculo fazendo dupla com Dean Martin e por um bom tempo arrostou sozinho o papel desumano do perdedor num país de vitoriosos. Sua fragilidade empurrou-o para a emasculação, pois é comum vê-lo de avental tentando agradar seu companheiro ou exagerando o trejeito para deixar claro que não estava identificado com a virilidade clássica. Quando Jerry amadureceu, a ruptura com Dean precisava ser levada dos bastidores para o centro do drama. Escolheu O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, para resgatar a dupla que jamais poderia ter sido desfeita, se fossem seguidos os critérios dos resultados financeiros, já que faturavam milhões.

O professor sem nenhum atrativo sexual, para melhorar sua imagem com as mulheres e sair da sua miserável condição de palhaço, toma um elixir mágico e transforma-se em Buddy Love, o galã que nada mais é do que a caricatura de Dean Martin. É impressionante a semelhança entre Buddy e Dean e mais ainda o fato de ninguém ter comentado isso (assim como passou despercebida a fonte literária do vagabundo chapliniano).

Jerry resolve encarnar o misterioso conquistador para dizer o quanto é irrelevante esse tipo de personalidade, tão cara a algumas mulheres (que costumam confundir o cafajeste com o homem de verdade). Seu escracho é fazer a desconstrução de Buddy Love, que no meio de uma apresentação (tinha a voz de Dean) começa a desafinar. Incluir o professor tratado como louco no universo das pessoas que tem direito a uma vida completa é o grande feito desse filme antológico, que mudou a comédia para sempre ao revelar o drama do palhaço que vicia na gargalhada e esconde o verdadeiro rosto para não perder o público.

Jerry foi fundo e chegou também a interpretar dramas de verdade, não mais ocultos nas trapalhadas em que seu personagem se metia. Mas sua arte serviu para repor a dignidade da inocência, como prova a magistral cena de O Rei do Circo, em que, vestido de palhaço, tenta levar para o riso uma criança mergulhada na tragédia. Ele só consegue seu objetivo depois de chorar. Quando a criança (o olhar sem nenhum disfarce) vê a lágrima, rebenta no riso. Era o que ela precisava: entender que a alegria não é o oposto da dor, já que para rir não podemos abrir mão de nossa situação de criaturas datadas, mergulhadas no conflito.

A verdade, que é o drama, precisa estar na base da comédia, para que saltemos da cadeira quando Jerry Lewis coloca todo o conteúdo de uma loja no saco de um aspirador de pó e, não contente, explode tudo na cara de uma cliente afetada e chata. A comédia é o amor ao semelhante, assim como o drama é a nossa contingência.

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