28 de fevereiro de 2014

TSUNAMI



Nei Duclós

Preparei um tsunami. O ruído da poesia só percebido por ti antes do tombo.

Apanho o que tens de sobra. Transbordas, num sopro.

És água, corpo em pleno banho. Aguardas que meu olhar te beije.

Deves estar pensando: para onde o poema me leva? Não para um lugar seguro, mas com pulso. Melhor, para que haja espanto.

Venha dizer o que não tenho. Esse sonho ainda em semente.

Teu lado mais claro está atento. Delícia contra o veneno.

No deserto, emerges sem medo. Fazes parte da luz dourada de um outro tempo.

Serena, pela certeza que tem da própria doçura. Excesso de beijo no escuro.

Você amanhece em mim como dádiva.

Ferves, enquanto te acalmo.

Não te convenço.Melhor recolher as redes.

Tem gente demais no planeta. E uma só criatura no teu coração.
 
Te economizo para ler mais tarde. Assim ficas aguardando o que direi em sonho.

 Sumiste da clareira quando caiu a tarde. Medo de amanhecer arrependida.

Flor do mato, pétala à mercê do espinho, roçado de terra ainda orvalhada de fantasia.

Custas a responder, ocupada com aquele demorado beijo.

Nunca te vi, sempre te quis. A vida que perco ao te dizer. Que ganho ao te ler.

Teclado a postos, palavra dita

Queria, não quero mais. O corpo cansou o que a mente mentia.

Amor é abuso de confiança. Vou por um pé atrás, floração de espantos


SELO DO REINO

És a deusa de um povo selvagem.
A aldeia inimiga te guarda.
Entrei na cerimônia vindo de longe.
Rompi o selo do reino sagrado.
Te trouxe porque assim decidiste
ao abandonar o templo pela trilha das serpentes.

INVASÃO

Desconfias da palavra que avança
como onda na praia em busca
das raízes ocultas na areia.

Cobres a entrada do sonho
com tuas dúvidas. Mas a água entra
e volta carregada de pequenos brotos.

TUA PRESENÇA FICA

tua presença fica, como perfume depois que a flor se vai
sussuro em teu ouvido na tarde que se despede
nos preparamos para a noite
irmã das delicias
no escuro vemos melhor o sonho oculto
mãos que se procuram, distante, pertinhas
lindeza que se sente de olhos fechados
ouço teu suspiro

PLENA VONTADE

nos falamos como pessoas intimas
gerando plena vontade de ficar juntos
se dizendo belezas
trocando carinhos, gestos que se identificam
olhares fundos

AZUL

Tu, azul de ser,
céu de uma luz

de amanhecer

FAREJO

Estou imóvel no campo banhado pelo sol.
Voas ao meu redor com asas de seda.
Farejo teu movimento com os olhos.
O dia esplende como um cacto teimoso
que brotou uma única flor.

Pousas em mim, ferida de amor.


RETORNO -  Imagem desta edição: Naomi Watts.

26 de fevereiro de 2014

CHÃO BATIDO



Nei Duclós

Não espere muito. Trabalho
no chão batido do poema.
Entrego sob encomenda
dos espíritos. Ofício contra
o tempo. Tudo para ontem.  

Produzo encantamento
sem valor na praça, puro
sentimento, não dá lucro
nem arrimo. é só perda
de palavras, falho arreglo

Registro os pedidos feitos
e os esboços dos encontros
mas o foco são os joelhos
da paixão dobrados rente
ao coração ligado à nudez

É tudo simples, como o voo
que se tem antes do fogo
a vontade de partir, o sonho
no fole da solidão, humana
comunhão ainda por nascer


RETORNO - Imagem desta edição: Jacqueline Bisset.

25 de fevereiro de 2014

PAZ NA DIFERENÇA

Nei Duclós

Um dia reunirei todos os meus versos numa assembleia para declarar armistício. Paz na diferença, poemas onívoros.

Eu perco palavras, mas você recupera. Com sua caprichada letra de caligrafia.

Diminuí a intensidade da fala até chegar à mínima folha. Para que pudesses sentir sua natureza de seda.

Dou o que não tenho, tempo. Gasto contigo, puro encontro.

Várias dores te tirei, porcelana do amor . Confesse onde te machucou, pele de flor.

Escutei um ui antes de bater no fundo. Te adiantaste, fingimento.

Ficas longe, como um céu azul que ameaça despencar pelo peso da doçura.

Tudo se quebra, como a onda na praia. Fica a espuma fervendo a areia. Teu corpo se cobre de gotas na esplêndida tarde.

Uso a idade como desculpa. Só a moça bonita não acredita.

Nada me distrai de ti. Nem mesmo tua fingida indiferença.

Sentir saudade quando ainda não há esperança é sinal de tempo bom logo adiante

Brincamos de nos querer. Para alimentar o que pode ser verdade.

Te cerquei com a poesia, mas, escaldada, escapaste. Já sabes como romper as amarras. Lendo ao contrário o que não está do avesso.

Sou território indevassável. Reconheça minha existência e negocie na aduana, a poesia inverossímel.

O amargo pus na lixeira para o vento levar. Adotei a doçura, mas sem me fechar. Às vezes o açúcar te trai sem dar sinais.

Deixei passar, mas agora ficou impossível. Selei o cavalo branco, parto para a guerra. Não adianta trancar a janela.

Me olhas do alto, feminina. Me esmagas com tua atitude.

Tomas conta da tela, com expressão grave. Não cabes em tanto de ti, fada distante.

O que falei é algodão no céu. Serve para distrair-te. É pista do que suei te buscando sem registro.

Fada passa depressa. Fica, experimenta.

Fada voa mesmo. É cúmplice do vento. Feita de momentos de puro êxtase.



ELE, ELA

- Me olho no espelho e me acho um idiota, disse ele.
- Depois esquece e te imaginas foda, disse ela.

- Já estava indo, disse ele.
- Fica, ela falou. Deixa que eu vou. Assim te repasso a saudade que me cansa.

- Você não cansa disso que te ocupa?
- Construo uma cidade, feita de poema, para um dia morar nela.

VISÍVEL

Ficaste mais visível depois que te perdi.
Passas por mim sonando os guizos
da carruagem de plumas.
Brilhas junto ao dorso
de corcéis marinhos.

Mas tudo se desfaz
na esquina.
Era apenas tu,
jóia de remotas Minas.

FUNDO

Ninguém tira o que temos de mais fundo.
Nunca mudamos o que nos faz inteiros.
Temos essa essência possível,
superfície que parece espuma,
que nos identifica e cruza qualquer tormenta.


RETORNO - Imagem desta edição: Sophia Loren, ciscada na RetroCo.

AÇÃO



Nei Duclós

Ação é o que deixamos de fazer para cuidar da vida.

Diga sempre a verdade. Ninguém vai acreditar mesmo.

Quando você consegue dizer algo realmente sincero, é mentira.

Não estive à altura dos contemporâneos. Pensei que era eterno e adiei para uma vida futura o que poderia ter acontecido. Agora que passou o tempo, fujo da generosidade das memórias. Toda lembrança é um exagero.

É cedo para a poesia. É preciso deixar que suma o desconforto das notícias.

Você doa o mar e te devolvem o sal. Pense na água doce que resta dessa ingratidão.

Quem diz “sou outra pessoa” continua o mesmo. A identidade real trata a mudança como o Outro. Quem mudou de verdade diz: Sou o que sempre fui.

Conforme vamos perdendo a memória, descobrimos que a sabedoria não está no que lembramos, mas no que deixamos escapar.

Não quero morrer com pensamentos profundos. Nem com som de qualquer espécie. Apenas o silêncio e cenas casuais voando acima das nuvens.

É pobre o viver insensível. Temos apenas o que o coração conquista.


RETORNO - Imagem desta edição: Marilyn Monroe.

22 de fevereiro de 2014

VIM DO TEMPO



Nei Duclós

Vim do tempo, a origem resiste
por deslocamento: linha paralela
em trem sem sossego, janela
aberta para a floração do campo

Havia destino, eternidade e brilho
hoje ringe o corpo duro de conflito
sonha com um sopro mais violento
mas a paz escorrega para o abismo

Sou um sonho, fumaça de comboio
tranco de aprendiz e ignorância
solo de banjo no império em ruínas

Não chegas até mim, clara clorofila
aposto no escuro e és renascimento
Te aceno de longe, galope sem ruído

21 de fevereiro de 2014

A SOLIDÃO DO VERSO



Nei Duclós

Escrevi só para acompanhar tua imagem. Assim encontro companhia para a solidão do verso.

Te exilas em neves remotas, enquanto compartilha o calor da tua lembrança.

Me declaro porque me perco. Assim te achas, soberba.

Flor tens em guarda. Não aparece a não ser quando vais embora.

Quantas bandeiras compõem um aceno?

Não se recolha, roçar de rendas. Aposte na minha insônia.

Estou piorando. Mas você está cada vez melhor.

Malvada. Levantaste a cortina por puro ciúme. Mas há algo maior sobre as águas.

Teu bom dia é esse olhar metido, de quem derruba falsos sorrisos e me amarra em definitivo. Porção generosa de uma verdade funda.

Fuja para a viagem. Sou o passageiro que embarca na estrada. Sento ao teu lado, explosão que te toca.

Não haverá piedade diante do corpo que se debate. A doçura faz parte da vazão das comportas. Chore porque tudo pega fogo no verão que se despede. Assim poderás apagar o sol, mas não essa vontade.

Te mergulho na tarde com a palavra que aperta. Trema, que será forte

Bela diante do lago, és a sintonia de uma doçura que abre um claro no corpo endurecido.

Fica, sereia que me visita. Fica, ombros de brilho.

Não pergunte o que é o amor. O amor é uma resposta.

Não entendo teu comportamento invasivo. Só porque te dei um beijo no escuro.

Falei o óbvio, só para manter a conversa. Perguntaste por que e tudo então desandou. Desequilibras, por puro hábito.


RETORNO -  Imagem desta edição: foto enviada por Eliane Fogel.