Nei Duclós
“Chuvas de Verão” (1977), de Cacá Diegues, continua sendo
uma obra-prima do cinema nacional. Em cada cena de clássico acabamento, numa
trama de grande complexidade e transparência, vemos neste filme maravilhoso
quem realmente somos e aprendemos a admirar nossa capacidade de alcançar o mais
alto nível da criação cultural. Com essa revelação, resgatamos o país
mergulhado dentro de nós. Fica assim mais fácil suportar e entender a carga de
realidade que nos desafia e que costumamos ignorar.
MILAGRE – Ao filmar o Rio de Janeiro e deixar de lado a Zona
Sul, Cacá Diegues captou o milagre da civilização brasileira, que se estende
por vasto território com as mesmas características (“milagre de português”,
segundo Paulo Vanzolini). O aposentado que sonha em nada fazer descobre nos
vizinhos, amigos e parentes a sombra pesada de uma vida em todos mal resolvida,
e por isso mesmo, humana. O admirável é que não há lamentações nesse impacto
composto de pedofilia, homossexualismo, deduragem, assassinato. O olhar ao mesmo
tempo triste e resignado de Jofre Soares (o ator a quem o Brasil jamais poderá
agradecer o suficiente) sabe abrir-se nos momentos mais cruciais, quando a
lucidez sobre o horror escancara uma janela para a alegria.
A vida e seus espinhos passam rapidamente como chuvas de
verão. O que fica é a tenacidade da sobrevivência, o convívio trepidante entre
os despossuídos, a dignidade que prescinde da moral conservadora, a glória da
ingenuidade que enfrenta a violência e sai ganhando. Nesta narrativa, desfam grandes
eprsonagens interpretados por Miriam Pires,a nudez, a resignação e o desejo da
terceira idade; Rodolfo Arena, o palhaço encantador e sinistro; Paulo Cesar
Pereio, o comportamento crítico diante da falsa arte por meio de genial
caricatura do malandro,Gracinda Freire, como a decadente e desesperada atriz de
teatro de revista, entre outros.
A rua de casas que serão demolidas para uma futura obra do
metrô é pintada como uma paisagem única, onde a decadência da modernidade
superpõe-se à seqüência de cores e formas da tradição pictórica brasileira.
Como se os séculos anteriores servissem de amparo para a trama que se desenrola
entre paredes velhas, com fotos e cartazes antigos, móveis obsoletos. O corpo
humano é moldado por essa paisagem e seus gestos são limitados pela penúria da
geografia que o circunda. Torna-se patética a justificativa do palhaço
criminoso (Rodolfo Arena) que tenta disfarçar a culpa do estupro com o
simulacro de um exercício físico. A imagem da solidão absoluta é o aposentado
que leva sua cadeira desconfortável para a calçada numa tentativa de fisgar a
vizinha. E a precariedade do caráter revela-se na camisa aberta ao peito de
Juracy (Paulo César Pereio, absolutamente impossível na sua genialidade).
CIRCO - Há também camadas superpostas de artes populares,
como é o caso da cena do teatro de revista que vira drama de circo de subúrbio.
Há o rádio, na voz de Chico Alves, o Carnaval, na passagem do bloco do sujo, o
dramalhão e a comédia, na trágica cena de suicídio em pleno ato teatral. O mais
impressionante neste filme antológico é que Cacá, como os grandes romancistas,
expõe as feridas mais profundas dos personagens como se estivesse narrando uma
anedota. E conta uma história aparentemente banal com todos os elementos do
grande teatro. Ali está a relação edipiana entre adolescente tardio e a estrela
decadente; a morbidez do velho (Sady Cabral) que tenta descobrir o estado
terminal dos amigos; a senhora muito antiga (Lourdes Mayer) que faz revelações
pornográficas e consegue rir do seu fracasso; o almofadinha (o magnífico Daniel
Filho, ator infelizmente pouco presente no nosso cinema) que conseguiu escapar
da miséria e entrega-se a orgias homossexuais; a filha (Marieta Severo) que
nunca vê o pai para poder escapar de suas raízes.
Mas não se entenda essa galeria de horrores como uma entrega
da obra às facilidades da desgraça. Sem cair no otimismo – que é a esperança
pulando o Carnaval – Cacá Diegues aposta na dignidade de uma vida escassa, mas
cheia de grandeza. O final, que são as pessoas indo para o trabalho ao som de
um chorinho, nos mata de emoção. A solteirona (Miriam Pires) que ao redescobrir
o sexo usa sua saia amarela ao voltar para o batente, o operário que antes de
pegar o trem é acompanhado pela mulher e filhos fazem parte de um hino
camerístico, a majestade informal de uma cultura que soube encontrar sua
identidade e deixa sua marca para ser vivenciada e admirada.
SOMOS ASSIM - Dificilmente “Chuvas de Verão” deixará de ser
a obra- prima que é. Por ser um filme perfeito, já nasceu clássico. Por ser a
soma da nossa coragem, veio para ficar. Por falar a verdade sem nos humilhar, é
um amigo eterno. Por nos abraçar sem nos paparicar, faz parte da família. Por
isso é muito mais do que um drama ou uma comédia de costumes. A obra não se
enquadra em qualquer moldura. É o que temos para mostrar a nós e ao resto do
mundo: somos assim. Por isso somos os melhores.
CONFISSÕES DO ISOLAMENTO - A solidão ocupa, na obra-prima de
Cacá Diegues, um lugar de honra. E faço também um resgate pessoal de outros
trabalhos de cineastas da minha preferência, para que possamos ver a paisagem
cinematográfica brasileira com sua verdadeira diversidade e competência, que
chega muitas vezes no raro patamar da genialidade.
“Passei a vida
inteira trabalhando em troca de uma caneta dourada. O que fiz da minha vida?”,
diz o aposentado interpretado por Jofre Soares (quem pode esquecê-lo em “A Hora
e a Vez de Augusto Matraga”, filme maior de Roberto Santos, onde outro grande
ator, Leonardo Villar, faz História?)
- “O senhor me desculpe, mas acho que me fodi na vida”, diz
a senhora muito antiga, concertista de piano que se desespera diante da
inutilidade da sua trajetória e grava sua performance para que futuros netos
(que não virão, já que seu filho escolheu como esposa uma velha atriz decadente
de teatro de revista) possam apreciá-la.
- “As crianças são a única alegria da minha vida e só faço
apresentações para manter a forma”, diz o palhaço aposentado e pedófilo,
interpretado por Rodolfo Arena.
- “Eu também preciso ganhar a vida”, diz Juracy, criação do
impiedoso Paulo César Peréio, o ator fundamental do cinema brasileiro, quando
tenta justificar sua deduragem.
- “Declama aquele poema do brinde, que me emociona tanto”,
diz para sua noiva o personagem Paulinho, o adolescente tardio que não sai da escola
para não enfrentar a vida.
- “Eu queria ter aquele filho. Mas a pressão foi enorme.
Então decidi me dedicar às minhas irmãs”, diz a solteirona Miriam Pires,
momentos antes de provar novamente o orgasmo.
Essas frases revelam a solidão de personagens que jamais se
encontram e somam-se ao silêncio desesperado de Marieta Severo depois de
descobrir a homossexualidade do marido. “Se eu puder fazer alguma coisa por
você”, diz o pai e Marieta devolve para essa frase sem sentido um olhar em
pânico e um meio sorriso sombrio.
A apresentação visual da solteirona é revelada pelo súbito
mutismo do filme, que estava embrenhado no alarido e no zoom. Quando a enfoca
pela primeira vez, afasta o olhar da câmara para colocá-la isolada, na calçada,
com suas roupas escuras, seu rosto despedaçado.
- “Estou aposentado, não tenho nada para fazer o dia todo”,
diz Jofre Soares, olhando os que passam rumo ao trabalho.
Como viver se você foi jogado fora? E o que rompe o
isolamento desses personagens trágicos? Primeiro, a súbita aparição de um
bandido, amante da empregada (Cristina Aché) do aposentado, que se esconde na
casa dele para ser descoberto por Juracy. A busca da polícia alvoroça a rua e
agrega as pessoas em torno da tragédia. No mesmo tom, a apresentação do palhaço
que reúne em sua volta a ingenuidade popular e a alegria das crianças –
contraponto do cerco que o artista faz a uma menina – resulta numa cena que
descamba para a ameaça da violência sobre a festa coletiva. O bar onde se
encontram os homens sem nada a fazer, fracassados de seus sonhos (como o
ex-jogador de futebol que quebrou a perna em dois lugares), é um antídoto para
esse cerco de solidão que cai irredutível sobre cada um.
Mas a esperança – que é a salvação possível, a cura da
ressaca provocada pelo horror – dá-se pela coragem de enfrentar as
dificuldades. A redescoberta do sexo na terceira idade, a auto-entrega do
culpado diante da polícia, o carinho pela família, a aceitação do inevitável
são remédios que curam de verdade, mesmo que essa cura seja provisória. O filme
nos emociona porque não nos pede licença, nos coloca contra a parede mas não
tira proveito disso. Ao contrário, nos entrega uma obra de referência, a quem
devemos fazer uma visita periodicamente, assim como devemos reler os clássicos.
TODOS OS DOMINGOS DO MUNDO – Assim como Matraga, de Roberto
Santos (o cineasta de morreu de um ataque cardíaco depois de um festival de
Gramado, onde não recebeu prêmio algum), temos, em Todas as Mulheres do Mundo e
Edu, Coração de Ouro, de Domingos de Oliveira, outros exemplos de filmes
perfeitos. Anexo à lista São Paulo S.A. (obra-prima absoluta) e O Caso dos
Irmãos Naves, de Luiz Sérgio Person e O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto
Farias. Além, é claro, de O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, Os Fuzis,
de Ruy Guerra, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na
Terra do Sol e Terra em Transe , de Glauber Rocha. Mas estes são por demais
conhecidos e incensados. Nem precisa lembrar o que são – obras-primas
brasileiras que deslumbraram o mundo. Só queria chamar a atenção para meus
filmes nacionais favoritos que não costumam ganhar o mesmo tipo de admiração e
carinho.