26 de novembro de 2012

O AMBIENTE TERMINAL DO MITO



Nei Duclós
  
Padre Julian, interpretado por Ricardo Darin, se submete a exames médicos que diagnosticam a fase terminal de um tumor. Líder pastoral de uma favela de Buenos Aires, ele precisa encontrar um substituto para sua obra. Por isso vai até a Amazônia resgatar Nicolás (interpretado por Jérémie Renier), um padre canadense vítima dos paramilitares e o traz para o miolo do drama. No grande favelão, a miséria enfrenta a burocracia dos poderes - governo, política e até mesmo a Igreja, que acaba fazendo parte da corrupção. A ideia é fazer acontecer enfim na região o chamado Elefante Branco, um projeto socialista argentino dos anos 1930 que gerou um enorme edifício sem serventia e em ruínas. Tudo está desenhado para o desfecho trágico.

O que está em pauta neste filme Elefante branco, de Pablo Trapero, 2012, e lançado este mês no Brasil, é a sobrevivência do mito, encarnado no desprendimento, no heroísmo e no idealismo. Os protagonistas que tentam apoiar os pobres se enchem de dúvidas e acabam contaminando a própria fé. Procuram ser tão pragmáticos quanto os algozes e acabam rodando na espiral de mortes, das guerras entre traficantes, da juventude armada e perdida se dando tiros, das famílias destruídas, da falta de saneamento e comida. Dá vontade de mandá-los a puta que pariu, diz Julian num momento de fraqueza. Ele perde a fé,mas morre de vergonha quando a reencontra numa sobrevivente da periferia, que confessa ter sido salva exatamente pelos ensinamentos de Julian sobre a necessidade de ter esperança.

O padre canadense é mais lúcido dos seus limites e fraquezas. Se sente culpado por não ter interferido na matança na Amazônia e quando confessa para o Padre Julian, temos a mais intensa, melhor e mais bela cena do filme. Ele se apaixona pela assistente social (Martina Gusman), cede à pressão dos traficantes, mete os pés pelas mãos e acaba participando de uma enrascada fatal para a liderança católica . O mito, herdado do santo popular Padre Mujica, assassinado pela ditadura argentina em 1973, tem a linhagem mantida por Julian, que não queria ser herói e acabou sendo. Renova-se o mito na medida em que a obra social fracassa. O filme mostra assim a derrocada como fonte da ilusão que permanece de um mundo melhor.

Mas sabemos que a situação está cada vez pior. Na Argentina, há ainda essa ligação com a tradição religiosa e dos conceitos. Lá não existe, ou o filme não mostra, a intensificação cruel de todo esse processo, ou seja, a existência das facções, que trabalham junto aos poderes da República. Aqui, o crime organizado governa, como vemos pela soltura da bandidagem e as negociações forçadas das autoridades com o terrorismo. Lá, ainda existe essa oposição entre os bons sentimentos e a maldade institucional. Aqui a crueldade tomou conta de todo o processo. A mocidade perdida das favelas perde suas chances de encontrar um rumo, está armada e funciona como um exército de incendiários, segura de sua impunidade judicial até os 18 anos.

Lá também as motocas reinam,mas podemos ver o filme Elefante Branco como um Cidade de Deus com alguma ética ( o personagem Monito, interpretado pelo garoto Federico Barga, trafega nesse limite entre a transgressão e a salvação). Enquanto nosso cinema abriu mão da esperança, como comprovam os dois Tropa de Elite, de José Padilha (em que o heroísmo migra para os matadores), a própria Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, ou mesmo Carandiru, de Hector Babenco. Não temos padres Julián, que aqui estão aparelhados pela falsidade de um governo que traiu as lutas populares.

No Brasil o mito já morreu. Na Argentina eles mantém viva essa chama antiga, mas que está também, como Julian, desenganada. O diagnóstico é cruel, mas é bom ver o cinema se ocupando da luta perdida do ideal contra o horror. Sinal que lá ainda existe nação, conceito que aqui perdemos, talvez para sempre.


RETORNO – Imagem desta edição: Darin, Barga e Renier em Elefante Branco.