1 de fevereiro de 2011

DIVERSIDADE


Nei Duclós

Vida é texto que se escreve para entregar no prazo. Curta, com poucas linhas, ela fica na memória, a leitura. Sai num jato só, sem direito a consertos. Pode ser revista na hora extrema, quando passa diante dos olhos como se fosse um editorial ou uma crônica. É quando nos arrepiamos com os erros e pedimos uma nova chance, nem que seja para fazer uma citação mais pertinente ou eliminar a repetição de uma palavra na mesma frase. Mas é tarde demais. Resta receber os parabéns ou as críticas por algo que poderia ser diferente.

Nada é nosso, nem mesmo o que fizemos. Sempre haverá alguém que nos antecedeu em tudo ou , contemporâneo, conseguiu ser mais competente. Acalentamos por décadas a ilusão de sermos pioneiros em algo até descobrirmos a verdade. É inútil a diversidade: as coisas se revelam por meio de poucos protagonistas e o resto amarga o destino das flores do cerrado, que explodem anonimamente no ermo e sucumbem na primeira viração.

Nesse pequeno jardim, formado por canteiros pobres, medra o sentimento. Único tesouro real no universo hostil, ele costuma ser desprezado por falta de companhia. Pior, quando alguém presta atenção,estamos distraídos. E ficamos atirados, cultivando espinhos, enquanto lá fora a primavera prepara seus assombros. Mas de nada vale uma estação se não contar com esses pequenos cercados de indivíduos sem destino, enredados no que há de mais precário, uma vida dedicada ao esquecimento.

Não cai a ficha enquanto é tempo, por isso achamos que o mundo floresce à nossa revelia. Riscando o chão seco ou pisando sem querer em pétalas caídas, olhamos para além da montanha, lá onde deveria existir o vale sagrado da glória. Temos tudo: terra que reage aos cuidados, plantas que conversam conosco, águas providenciais, luz à vontade. Mas esperamos uma carruagem, um exército, uma fortuna. Nosso olhar está blindado pelo Mal que ocupa a mente para melhor devorá-la.

O espírito habitado se contenta com seu canteiro pessoal, mas não descuida dos grandes sinais. Sabe que os anjos recolhem apenas os que estão preparados. O que escrevem linhas tortas num parágrafo límpido, os que são relidos depois, quando tudo some. É quando nossa vida, enfim, atinge a perfeição.


RETORNO - 1. Crônica publicada nesta terça-feira, dia 1º de fevereiro de 2011, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: O Geógrafo, de Vermeer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário