13 de outubro de 2009

TESTEMUNHAS


Nei Duclós (*)

Longevidade é compartilhar segredos. O maior deles é testemunhar a eterna repetição das coisas. A constatação corre o risco de ser confundida com a percepção cansada, que reitera o que está acostumada a ver. É um perigo real, mas o segredo extrapola esse limite óbvio. Tudo se repete de maneira tão corriqueira e insistente, que a opção do longevo é calar-se sobre isso para não despertar suspeitas. Vão achar que é caso de internação.

Basta folhear uma revista antiga ou ler um livro de memórias para sentir que a mesma coisa foi destaque no noticiário da manhã. Bobagem, dirão, e os computadores, as câmaras digitais, o anel gigantesco de Saturno? Tudo isso não existia anos atrás. É verdade. Mas o que se repete é a celebração das descobertas, o entusiasmo de que cruzamos a fronteira humana, que estamos palmilhando o futuro.

Descida na Lua há 40 anos não vale, está desmoralizada – é óbvio que tudo foi obra de Stanley Kubrick, pois não? Mas vamos pegar exemplos mais prosaicos. A eletrola hi-fi, por exemplo. Quando carregaram a gigantesca caixa de som que tomou conta da nossa sala e colocaram o bolachão explicativo sobre as maravilhas da alta fidelidade, jamais senti algo igual. A nitidez de sons independentes rebatia na minha caixa craniana como intensa revelação.

Outro exemplo é o bambolê. Quando surgiu, o feérico rebolar coletivo provava que estávamos em plena revolução do comportamento. Não era mais preciso ir à escola, assistir filmes, essas coisas obsoletas. Tudo se resumia a girar um aro de plástico ao som do rock and roll. Algo idêntico à entrega atual da meninada ao círculo fechado de tralhas mágicas, do Ipod ao celular fotográfico. O bambolê voltou à moda, mas não é essa a repetição. O que se reitera é o engajamento geral a uma nova mania, sempre sob o assombro de que estamos compartilhando um momento único.

Deus sabia que iríamos nos aborrecer com as rupturas sensacionais de paradigmas e aos poucos foi reduzindo a capacidade de viver, podando os conhecidos mil anos dos personagens bíblicos para a média dos 40 anos do século 17. Mas aos poucos fomos espichando esse tempo de viver e acabamos caindo na monotonia do déjà-vu. Viramos testemunhas glaciais do fogo fátuo de uma ilusão recorrente: a de que cada geração tem o privilégio de existir na era culminante da vida na terra.


RETORNO - 1. (*)Crônica publicada nesta terça-feira, dia 13 de outubro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: tirei daqui.

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