27 de outubro de 2009

RÉQUIEM PARA O JORNALISMO IMPRESSO


State of Play pode ser traduzido por “a situação atual”. É o que pretende mostrar o filme com esse nome (aqui, Intrigas de Estado), baseado numa série da TV inglesa, mas que foi totalmente adaptada. A trama fica um pouco confusa, com alguns pontos cegos, mas isso não importa. Eu não tenho muita paciência para seguir os detalhes das intrincadas conexões da espionagem ou da corrupção, mas desta vez os gringos me dão razão, pois há algumas ocorrências na rede dizendo exatamente isso, que nem sempre as coisas ficam claras no que é apresentado.

Prefiro ver State of play por aquilo que seu diretor Kevin McDonald definiu no making off: um réquiem para o jornalismo impresso, representada pela sequência final, quando máquinas pesadas de uma realidade analógica imprimem enfim a edição definitiva que traz toda a trama decifrada. A história gira em torno da privatização da segurança dentro dos Estados Unidos, denunciando o que já temos entre nós: um exército privado movimentando muito dinheiro. Uma corporação desse ramo está sob investigação e começa a ocorrer uma série de assassinatos aparentemente sem relação um com o outro.

É um bom filme, se for visto assim como um thriller a que Hollywood está acostumado a fazer. Mas fica melhor se o virmos como uma reflexão sobre o atual estágio do jornalismo, em que os grandes jornais e os grandes jornalistas, apesar de necessários e fundamentais para a democracia, estão morrendo, aparentemente engolidos pela revolução digital, mas no fundo sucateados pela ditadura financeira global, que tem horror à concorrência e às denúncias. O filme mostra uma redação tomada por computadores, mas ao mesmo tempo soterrada de papel e de bagunça. É um ambiente de trabalho que ainda não assumiu a atual assepsia das redações brasileiras e mantém aquele clima saudável do bom e velho jornalismo.

O Washington Globe, o veículo fictício, está sob pressão de novos proprietários, que querem lucros, o fim do jornalão de qualidade, mas deficitário. Para faturar, é preciso ser rápido e centrar na fofoca. Contra essa tendência luta o repórter interpretado pelo excelente Russel Crowe, um cara que sempre gosto de ver atuando, pela força que imprime em seus personagens. Talvez seja hoje o único ator que define um caminhar próprio, como fizeram John Wayne e Robert Mitchum. Crowe anda do mesmo jeito, seja repórter ou o matemático pirado de Mente Brilhante. Pés para dentro, meio curvado, apressado, meio torto. Muito bom.

Esse personagem, o repórter investigativo bagunçado, tem seu paradigma em Dustin Hoffman, do clássico Todos os homens do presidente. E boas relações com outros tipos inesquecíveis como Clint Eastwood no filme que luta contra a direção do jornal para livrar um condenado à pena de morte. Em State of Play, Crowe é daqueles antigos do “parem as máquinas”, que faz ironias com a blogueira que, segundo a editora (Helen Mirren, ótima) prduz uma matéria por hora. Está formada a dupla de ataque, o grande repórter e a foca do noticiário superficial. A segunda aprende com o primeiro e vê como fiscalizar, pesquisar, informar, tudo junto, mentir quando necessário para chegar ao objetivo, fazer concorrência com os investigadores policiais, tudo o que uma boa reportagem exige em meio a perseguições, tiroteios e diálogos pesados.

“Sou jornalista, não publicitário”, diz Crowe para sua editora. "Tem gente que ainda confia no jornalista que arrisca a vida para dizer a verdade". Eis o que passa o filme que mostra a necessidade de existir todas as formas de comunicação, tanto o jornalismo online quanto o impresso e que é preciso, para termos democracia, existir grandes jornalistas, assim como grandes juristas e grandes políticos. No Brasil, houve época em que tivemos tudo isso. Tínhamos Tarso de Castro e Barbosa Lima Sobrinho, tínhamos Darcy Ribeiro e Teotônio Villella, tínhamos Raymundo Faoro e Sobral Pinto. Em que espelho deixamos perdidos nossa face? como diria Cecília Meireles.

O repórter que asssina sua matéria fundamental depois de colocar a assinatura da foca, esse cara ético que consegue sobrepor a vocação e o ofício acima dos interesses pessoais e da amizade, esse é o cara que encerra o expediente sob o olhar admirado dos seus pares. Não há glória maior nesta profissão que nada nos dá, a não ser a sensação do dever cumprido, quando fazemos jus às responsabilidades num tempo de guerra.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Russel Crowe em State of Play. Ele contracena com Ben Affleck, Jason Bateman, Rachel McAdams, Robin Wright Penn, Jeff Daniels, além da citada Helen Mirren.

2. A propósito: Observatório da Imprensa entrevista Joshua Bento. Trecho:

"O.I. - Você acredita que o jornalismo em outras plataformas (impresso, tevê, rádio) migrará totalmente para a web?

J.B. – Tudo vai mudar. Veja o exemplo do rádio: se você voltar no tempo uns 60 ou 70 anos, o rádio ocupava lugar expressivo na veiculação de notícias em todo o mundo. Em seguida veio a tevê, mas o rádio não sumiu, ele apenas se adaptou. Tevê, rádio e jornais impressos sobreviverão, mas terão que mudar. Eu não acho que os jornais estão indo embora. Talvez não sejam mais produzidos em massa, talvez se dirijam a um público mais focado, talvez sejam mais analíticos, talvez circulem apenas três vezes por semana em vez de serem diários."

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