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31 de outubro de 2009
A VÉSPERA DE TODOS OS SANTOS
O Brasil importou a festa de Haloween dos americanos, que ganharam de presente dos imigrantes irlandeses, que por sua vez herdaram dos ritos pagão, celtas, sei lá (a noite dos tempos é quando as lendas rezam e todos se perdem). É comemorada no dia 31 de outubro. O nome vem All Hallows Eve (de evening), ou Véspera de Todos os Santos, que nos tempos idos do Brasil católico era feriadaço (desta vez cai no domingo). A Igreja católica usou rituais e templos de outros povos e crenças para implantar sua doutrina. No Brasil, esta era uma época de contenção e concentração, mas agora virou balada.
Vi várias crianças com os chifrinhos do dito-cujo. Garotas vestidas de bruxas. Tridentes, capas vermelhas e tudo mais. Aos poucos, a data vai se firmando, impulsionada pelo ambiente favorável às representações do Mal. Não que a festa seja pecado. Este, está por toda a parte. Mas a banalização das transgressões não beneficia o convívio social. O Bem, como se sabe, é essa coisa babaca que todos fogem. O certo é passar rasteira, tungar o próximo, atropelar no trânsito, matar a esmo, roubar bastante, fazer todo tipo de crueldade. A inocência é estimulada a achar que o Mal é legal (o traficante viril, o ladrão gentil, o espertalhão boa praça) pois no fundo a inocência está sendo solenemente erradicada. Ferrar literalmente o próximo, sugar seu sangue com dentes pontiagudos, fervê-lo em caldeirões, eis a mensagem do Haloween.
Faz sentido. Basta consultor o noticiário. Jovem de 14 anos baleia um de onze. Menina de onze esfaqueia a amiga de oito anos. Garoto de 14 anos é chefe de boca do tráfico em São Paulo. Professores levam o maior pau dos alunos. Lembro bem quando começou todo esse troço. Quem ia à Igreja era ridicularizado. Comungar era coisa de bobalhão. Confessar para o padre, então, piada certa. Com a onda de denúncias comprovadas sobre pedofilia na Igreja Católica, a desmoralização chegou ao auge. O certo é condenar o catolicismo ao inferno e pregar um novo paraíso, que, descobrimos agora, é o emprego garantido para quem é do partido. Ou então, elevar as trevas como o novo passaporte para a felicidade.
Ficou fácil, pois quem defende a tradição costuma babar na gravata. Leio ainda textos de extrema direita falando mal de Cuba, como se fosse justo julgar o regime cubano cercado pelo império, boicotado economicamente, perseguido de todas as formas. Isso não significa inocentar a ilha de Fidel, mas não se pode cuspir em alguém que está todo amarrado. O problema é que o exemplo de Cuba serve para a nova safra de caudilhetes latino-americanos, que se perpetuam no poder por meio da farsa democrática. Chavez obrigando todo mundo a se vestir de vermelho e tiranizando cada vez mais seu país me parece uma festa de Haloween permanente, o ano todo.
É complicado falar nisso porque o oposto, aparentemente, é o puritanismo, a outra face do Mal. Não acredito que vida espiritual seja exclusividade do fundamentalismo, tanto da direita quanto da esquerda. Não que o ideal seja uma devoção de centro, de tolerância para com os extremos. A religiosidade , como parte das realidade culturais, não deve interferir na prática política. Não se deve exigir que o político pape hóstia, mas também que não se comporte como um belzebu. Não se pode querer que a juventude assista a missa, mas também não precisa empurrá-la para a bunda arrebitada do hip-hop, a consagração da droga nos baticuns da transgressão, ou os chifrinhos vermelhos no final de outubro desde a infância.
Ok, o carnaval. Quando eu era moço, participava do cordão da gloriosa escola Os Rouxinóis, de Uruguaiana. Ia junto com a massa, embalado pela mais bela bateria de todos os tempos. Não era, como vemos hoje na TV, a exibição da celulite e da exposição das celebridades globais. Ou, como acontecia um tempo atrás, o congraçamento dos bicheiros, quando eles tinham poder. O carnaval era fantasia de trapos, máscara feita em casa, lança-perfume argentino (que, descobri depois, era usado para cheirar, dar barato; enquanto nós, as crianças, usávamos porque era perfumado e divertido, jamais acertávamos o olho de alguém).
Ouçam as antigas marchinhas, vejam aquelas fotos antigas. Sim, tinha fantasia de diabos e tudo mais, era um tempo de descompressão social, de desmascaramento dos poderes. Foi tratado como alienação e depois caiu na vala comum da tirania do comércio e da repressão sexual. Pois num país tão sexy, como disse recentemente o dono do Twitter, como pode um monte de marmanjos estudantes quase lincharem uma garota que usou vestido tubinho vermelho mini na escola? É atraso de vida, é espírito medieval de grupo, é caça às bruxas. É o que dá transformar sexo em mercadoria, eliminar a inocência, incentivar a baixaria. Vamos para trás, enquanto a publicidade oficial baba no colarinho da verba pública.
Se a garota do vestido vermelho queria celebrar o Haloween, viu onde estava metida: a farsa do Mal cercou-a aos berros, porque não há parâmetros diversos aos que estão sendo implantados. Num território hostil, a festa bruxólica também dança para a maldade pura e simples. No fundo, não importa bruxa ou fada. O que pega é a bandidagem, exposta em todos os espíritos.
RETORNO - Imagem desta edição: Bordadeiras, foto de 1979 do Mestre Walter Firmo.
30 de outubro de 2009
FROST/NIXON: A PAUTA IMPROVÁVEL
Atualidade absoluta: os americanos fazem um filme que resgata os crimes de Nixon, com o objetivo de acusar a gestão Bush, mas está sob medida para o Brasil. Temos casos idênticos, como Collor, que também renunciou à presidência para escapar de ser deposto, ou Lula, que também nada sabia sobre o que faziam seus assessores. Só essas sintonias já justificam tratar como obrigatório o filme Frost/ Nixon (2008), de Ron Howard, baseado em peça do mesmo nome de Peter Morgan e que recebeu cinco indicações para Oscar (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator - Frank Langella, no papel do ex-presidente -, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Montagem).
A pauta era improvável, já que ninguém queria saber de Nixon a não ser que fizesse um mea culpa em público. As grandes figuras carimbadas do jornalismo americano não queriam pagar esse mico, arriscar sua credibilidade caindo nas armadilhas de Nixon, que poderia sair fortalecido do embate. Talvez, e nisso acreditavam os que tinham muito a perder na mídia americana, em vez de ser destruído publicamente num balanço da sua presidência, o ex-presidente poderia recuperar espaço e fazer um retorno humilhante para seus adversários, como aconteceu aqui depois dos grandes escândalos, quando vimos antigos acusados gargalhando juntos nos palácios republicanos.
O desastre quase aconteceu para o jornalista britânico David Frost e sua brava equipe. Mas lá existe imprensa, opinião pública, preparo, fôlego. Os Estados Unidos são outra coisa. Não quer dizer que foi uma tarefa fácil. A seriedade, a responsabilidade, a coragem encontraram dificuldades. Pois a entrevista, para a televisão, de 12 horas que Frost fez com o ex-presidente em 1977, cinco anos depois da sua renúncia em função do escândalo de Watergate, tinha tudo para dar errado.
O entrevistador não era do ramo, acreditavam, já que amargava um exílio na Austrália, fazendo show de entretenimento depois de meteórica passagem por Nova York. Enquanto Nixon era considerado do ramo, tinha manha televisiva, e iria esmagá-lo. Esqueceram que a especialidade do jornalista é o jornalismo, não a política ou qualquer outro assunto. E que um político, em frente as câmaras, por mais experiente e vivo que seja, sempre será uma fonte, jamais um jornalista, que no seu meio está em vantagem.
O filme foi concebido como uma luta de boxe, decisão do título de campeão dos peso pesados. As equipes jogavam a toalha, interrompiam, falavam na cara do lutador na hora do intervalo. Os contendores escutavam, recuperavam o fôlego, se preparavam para mais um round. O estudo detalhado das fitas gravadas do caso Watergate, a pesquisa minuciosa, a elaboração exaustiva de cada pergunta, o exercício de dramaturgia que tentava adivinhar o que o adversário iria dizer, fazem do filme uma sucessão de golpes com o único objetivo de destruir o adversário.
Os dois personagens principais se superam na briga. Nixon, que vinha de uma derrota absoluta, a condenação geral da nação e amargava um isolamento que o deixava exasperado, começa a ganhar pontos nas primeiras horas de entrevista, quase levando o entrevistador a nocaute. Foi um detalhe importante, conseguido pelo pesquisador interpretado pelo excelente Sam Rockwell, autor de quatro livros sobre Nixon, que descobriu a prova do crime. Ou seja, de que o presidente sabia da invasão do prédio onde funcionava o Partido Democrata e que tentou obstruir a justiça por meio do suborno das testemunhas.
Isso foi fatal para virar o jogo. De cara no chão, o entrevistado confessa que errou, mas se recusa a pedir desculpas e a se humilhar. Arrosta toda a responsabilidade e exibe, no final, o rosto demolido de sua grande derrota, que era o que a população queria ver. O sucesso da entrevista foi tremendo. Enriqueceu os poucos investidores que ajudaram a cacifar os 600 mil dólares de custo, cobrados por Nixon para falar. E devolveu Frost para o centro do mundo. Hoje ele continua em destaque em Londres, onde é Sir.
Grandes atores em cena nos mantém em atenção constante ao longo da narrativa. Além de Langella, soberbo, há Mike Sheen no papel de Frost (ele tem um ar de Tom Cruise). E além de Sam Rockwell, há Oliver Platt, hilário na equipe de Frost, e Kevin Bacon, no papel de um oficial da Marinha e confidente de Nixon.
Frost/Nixon: ver para aprender como se faz. Mais do que obrigatório, antológico.
RETORNO - Imagem desta edição: Mike Sheen (Frost) e Frank Langella (Nixon): quem vai a nocaute?
29 de outubro de 2009
TÊNIS, REFRIGERANTE E SABÃO EM PÓ NA CABEÇA
O Data Folha acha que a mente das pessoas se ocupa de marcas notórias. Para isso faz todo ano o Top of Mind, destaque na edição de hoje do jornalão. Coca-cola, Omo e Nike são os tesouros mentais da população à mercê do massacre publicitário. Se a mesma grana preta fosse carreada para a cultura, as cabeças estariam envolvidas com Alejo Carpentier, por exemplo, que em livros como O reino deste mundo e Os passos perdidos nos deslumbra com sua capacidade de colocar cada palavra no lugar exato, em textos deslumbrantes, e com isso transformar nosso espírito pela magnitude da sua arte.
Mas cultura no universo do Top of Mind (que deve significar Topo da Mente, não sei, sou monoglota) é o celebrado poeta Arnaldo Antunes (marca notória do imaginário imposto pela indústria cultural) contratado para dar pulinhos no palco envergando um terninho, além da agora onipresente Fernanda Lima para fazer as apresentações dos responsáveis pelo grande feito de colocar tênis, refrigerante e sabão em pó goela abaixo da população sem defesa. Quanto custa um evento desses? E por que vão de pessoa em pessoa fazendo o inventário dos resíduos que a publicidade deixa no povo, quando deveriam se preocupar com cultura e não com os efeitos sinistros das práticas de Pavlov, o inventor do reflexo condicionado?
Vou falar sobre as marcas premiadas. Antes aviso que, como é proibido dizer qualquer coisa contra elas (por força da ditadura não declarada em que vivemos), fiquei sabendo disso por terceiros e não revelo as fontes. Coca-cola é o purgante que todos conhecem. Faz mal à saúde, é um torpedo de calorias composto por elementos desconhecidos, muito bem guardados por fórmula secreta, já que ninguém pode descobrir o que realmente tem dentro. Possuía algum charme quando vinha em garrafas especialmente desenhadas, mas agora, com os horrendos pets rombudos, não passa de um licor brabo que, dizem, vicia.
O sabão Omo é caríssimo, talvez a mais cara marca na praça. Paga-se os tubos para jogá-lo pelo ralo. É um case famoso de condicionamento. A letra O repetida no início e no fim representa os olhos grandes da mãe coruja. Omo é um sigla de Old Mother Owl, a velha mamãezinha americana. O tênis Nike, com a pirataria, pode ser encontrado em qualquer esquina, mas quem garante a autenticidade? E todo mundo lembra o Michael Moore desmascarando o executivo da Nike que contratava baratinho mão-de-obra no Terceiro Mundo. Mas não importa. O que vale é que estão investindo na “qualidade da marca”, como disseram os sujeitos com cara de porquinho Chon-Chon que dão entrevista sobre o assunto.
Aos 61 anos, completados hoje, dia 29 de outubro, noto que, com o tempo, aumenta minha capacidade de distribuir cascudos. Não se trata da ranzinzice de quem ultrapassa as seis décadas de vida. É simplesmente o senso de justiça que se aguça, o conhecimento acumulado, a percepção mais afiada, a despedida em todos os sentidos, pois já perdemos a esperança de que nos aceitem, já que nunca aceitaram, por mais que te batam nas costas e digam que você é o cara. O que vale é a amizade sincera, a admiração agradecida, a convivência pacífica e o trato civilizado. Não são raros na nossa vida, pois somos maioria, só não estamos no poder.
O poder foi empalmado pela má-fé, a burrice, o cinismo e a barbárie. Ficamos isolados, em nossos vastos latifúndios de gratidão mútua, quando nos identificamos pelo gesto solidário, as brigas fraternas eventuais e passageiras, os abraços profundos e as palavras que nos embalam, estimulam, habitam e confortam. Muito obrigado a todos pela leitura atenta, pelos comentários e por tantos votos de continuar na luta. Somos nós, o horizonte.
28 de outubro de 2009
O HEROISMO EM “OS FALSÁRIOS”
Herói é aquele que abre mão do heroísmo, mas não da sua humanidade. Uma essência indestrutível apesar do horror e que, no final, contrariando as aparências e as evidências, o devolve à ação solidária e ética que o redime. O herói não aparece e compartilha sua glória em segredo com alguém muito próximo. Vimos isso no clássico Casablanca, em que Ricky é o mercenário sem coração que acaba fazendo o gesto supremo de abrir mão do seu grande amor em favor de alguém que ele não conhecia, mas que merecia escapar. Vemos isso no artista judeu de Os Falsários, do austríaco Stefan Ruzowitzky, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2008.
Mas não é tão simples assim. Salomon Sorowitsch (ou Sally, interpretado por Karl Markovics ) é convocado pelos nazistas, que o fizeram prisioneiro, para falsificar libras e dólares e assim ajudar a financiar a guerra dos alemães, além de tentar desestabilizar a economia dos aliados. Ele se submete para sobreviver e com isso ajuda todos os seus companheiros, que compartilham da confecção das notas falsas. Seu oposto é Adolfo Burger (August Diehl) personagem inspirado no autor do livro, de onde foi tirado o roteiro e que virou consultor das filmagens.
Burger é o protótipo do herói consciente e explícito, reconhecido como tal, que boicota a confecção do dinheiro por questão de princípios. Não se submete, mas isso ameaça todo o projeto e em conseqüência a vida dos companheiros. Quem é o herói? Burger, que com sua ação acabou prejudicando os nazistas, que não conseguiram inundar de dólares a economia de guerra? Ou Sally, que conseguiu chegar aos objetivos do programa e assim manteve todos vivos? Para quem toma conhecimento da história no final, quando os aliados chegaram, sem dúvida que é Burger. Sally se afasta e vai amargar sua solidão em Monte Carlo.
O dinheiro falso que leva consigo é arriscado, ou melhor, jogado fora integralmente na roleta. Assim ele recupera sua humanidade perdida, depois de anos sob o jugo dos carrascos e tendo que fazer o jogo deles. Lembra até o pequeno grande poema de Manuel Bandeira, que aponta para a única solução do irremediável: dançar um tango argentino. É o que Sally faz, com uma prostituta que se encanta com seu desprendimento, depois de ser atraída pelo dinheiro falso. Sally é um artista, que no lugar de fazer arte para ganhar dinheiro, preferiu fazer dinheiro diretamente.
Essa era sua ocupação antes da guerra e por isso foi preso. O mesmo policial que o prendeu, Friedrich Herzog (Devid Striesow), acaba localizando o especialista entre os campos de concentração e o convoca para o projeto. Herzog é o retrato da indiferença criminosa, a mesma que temos no Brasil, em que milhões de pessoas vivem sob o terror, dentro e fora das prisões, enquanto perdemos tempo com futilidades. A esposa do carrasco, que vive numa casa enorme e confortável com o marido e os três filhos, é um poço ridículo de preconceitos. A carnificina não a atinge, ela que vive cercada pelo luxo e mergulhada na alienação e na inconsciência. Seu cinismo é revelador e atualíssimo.
“Os falsários” foi celebrado como um filme inovador sobre a Segunda Guerra, pois mostra um tema nunca explorado até agora e não perde tempo com crueldades inúteis. A brutalidade é humana e chega no seu grau mais intenso no nazismo. Mas faz parte de todos. Os próprios prisioneiros, que não experimentaram as regalias do grupo de falsificadores, queria matá-los, achando que eram nazistas. O que os salvou foram os braços marcados por todos os que passaram por Auschwitz. Pela primeira, vez, aqueles números sinistros serviram para salvar vidas.
Não há heróis, dirão. Certamente que há. Mas o heroísmo não é a cerimônia com fanfarras. É antes a semente imortal da criatura que se recusa a passar impunemente pela terra. Deixa sua marca no coração dos contemporâneos, mesmo que esses nem se dêem conta do bem que foi praticado em seus nomes.
Como Ricky/Bogart, que explica para a amada os motivos da sua renúncia e por isso emociona, pela grandeza do gesto, assim também o personagem interpretado por John Wayne em "O Homem que matou o facínora", de John Ford, que mata o vilão, mas deixa o crédito para o seu amigo. Só quando ele morre é que emerge o herói oculto com toda a sua integridade. O heroismo de Sally, como o de Bogart e Wayne, pauta-se pelo exemplo, não pelas medalhas.
RETORNO - Imagem desta edição: Karl Markovics desenha a representação do falso heroismo nazista para conseguir sobreviver.
27 de outubro de 2009
RÉQUIEM PARA O JORNALISMO IMPRESSO
State of Play pode ser traduzido por “a situação atual”. É o que pretende mostrar o filme com esse nome (aqui, Intrigas de Estado), baseado numa série da TV inglesa, mas que foi totalmente adaptada. A trama fica um pouco confusa, com alguns pontos cegos, mas isso não importa. Eu não tenho muita paciência para seguir os detalhes das intrincadas conexões da espionagem ou da corrupção, mas desta vez os gringos me dão razão, pois há algumas ocorrências na rede dizendo exatamente isso, que nem sempre as coisas ficam claras no que é apresentado.
Prefiro ver State of play por aquilo que seu diretor Kevin McDonald definiu no making off: um réquiem para o jornalismo impresso, representada pela sequência final, quando máquinas pesadas de uma realidade analógica imprimem enfim a edição definitiva que traz toda a trama decifrada. A história gira em torno da privatização da segurança dentro dos Estados Unidos, denunciando o que já temos entre nós: um exército privado movimentando muito dinheiro. Uma corporação desse ramo está sob investigação e começa a ocorrer uma série de assassinatos aparentemente sem relação um com o outro.
É um bom filme, se for visto assim como um thriller a que Hollywood está acostumado a fazer. Mas fica melhor se o virmos como uma reflexão sobre o atual estágio do jornalismo, em que os grandes jornais e os grandes jornalistas, apesar de necessários e fundamentais para a democracia, estão morrendo, aparentemente engolidos pela revolução digital, mas no fundo sucateados pela ditadura financeira global, que tem horror à concorrência e às denúncias. O filme mostra uma redação tomada por computadores, mas ao mesmo tempo soterrada de papel e de bagunça. É um ambiente de trabalho que ainda não assumiu a atual assepsia das redações brasileiras e mantém aquele clima saudável do bom e velho jornalismo.
O Washington Globe, o veículo fictício, está sob pressão de novos proprietários, que querem lucros, o fim do jornalão de qualidade, mas deficitário. Para faturar, é preciso ser rápido e centrar na fofoca. Contra essa tendência luta o repórter interpretado pelo excelente Russel Crowe, um cara que sempre gosto de ver atuando, pela força que imprime em seus personagens. Talvez seja hoje o único ator que define um caminhar próprio, como fizeram John Wayne e Robert Mitchum. Crowe anda do mesmo jeito, seja repórter ou o matemático pirado de Mente Brilhante. Pés para dentro, meio curvado, apressado, meio torto. Muito bom.
Esse personagem, o repórter investigativo bagunçado, tem seu paradigma em Dustin Hoffman, do clássico Todos os homens do presidente. E boas relações com outros tipos inesquecíveis como Clint Eastwood no filme que luta contra a direção do jornal para livrar um condenado à pena de morte. Em State of Play, Crowe é daqueles antigos do “parem as máquinas”, que faz ironias com a blogueira que, segundo a editora (Helen Mirren, ótima) prduz uma matéria por hora. Está formada a dupla de ataque, o grande repórter e a foca do noticiário superficial. A segunda aprende com o primeiro e vê como fiscalizar, pesquisar, informar, tudo junto, mentir quando necessário para chegar ao objetivo, fazer concorrência com os investigadores policiais, tudo o que uma boa reportagem exige em meio a perseguições, tiroteios e diálogos pesados.
“Sou jornalista, não publicitário”, diz Crowe para sua editora. "Tem gente que ainda confia no jornalista que arrisca a vida para dizer a verdade". Eis o que passa o filme que mostra a necessidade de existir todas as formas de comunicação, tanto o jornalismo online quanto o impresso e que é preciso, para termos democracia, existir grandes jornalistas, assim como grandes juristas e grandes políticos. No Brasil, houve época em que tivemos tudo isso. Tínhamos Tarso de Castro e Barbosa Lima Sobrinho, tínhamos Darcy Ribeiro e Teotônio Villella, tínhamos Raymundo Faoro e Sobral Pinto. Em que espelho deixamos perdidos nossa face? como diria Cecília Meireles.
O repórter que asssina sua matéria fundamental depois de colocar a assinatura da foca, esse cara ético que consegue sobrepor a vocação e o ofício acima dos interesses pessoais e da amizade, esse é o cara que encerra o expediente sob o olhar admirado dos seus pares. Não há glória maior nesta profissão que nada nos dá, a não ser a sensação do dever cumprido, quando fazemos jus às responsabilidades num tempo de guerra.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: Russel Crowe em State of Play. Ele contracena com Ben Affleck, Jason Bateman, Rachel McAdams, Robin Wright Penn, Jeff Daniels, além da citada Helen Mirren.
2. A propósito: Observatório da Imprensa entrevista Joshua Bento. Trecho:
"O.I. - Você acredita que o jornalismo em outras plataformas (impresso, tevê, rádio) migrará totalmente para a web?
J.B. – Tudo vai mudar. Veja o exemplo do rádio: se você voltar no tempo uns 60 ou 70 anos, o rádio ocupava lugar expressivo na veiculação de notícias em todo o mundo. Em seguida veio a tevê, mas o rádio não sumiu, ele apenas se adaptou. Tevê, rádio e jornais impressos sobreviverão, mas terão que mudar. Eu não acho que os jornais estão indo embora. Talvez não sejam mais produzidos em massa, talvez se dirijam a um público mais focado, talvez sejam mais analíticos, talvez circulem apenas três vezes por semana em vez de serem diários."
HÁBITOS DE GUERRA
Nei Duclós
Trazemos do berço a tendência para a liberdade. Os hábitos de guerra são adquiridos no entorno da bala perdida. A vocação é o passeio, mas nos fechamos em casa. Queremos conversar, mas é melhor ficar quieto. Assim acontece com os textos. A natureza da crônica é o pássaro no quintal, a memória, as viagens. Mas acabamos abordando o trânsito, a violência, a inflação. Contrariamos assim a essência das coisas, porque nos submetemos ao território conflagrado.
Aprendemos a driblar conflitos nas rotinas. Brigar é fácil , enquanto o cumprimento desinteressado é a exceção. Quando recebemos aceno amigável de desconhecidos, parece que acordamos de um pesadelo. As relações humanas voláteis são geradas pela indústria dos eventos, os casamentos provisórios, as migrações forçadas, a solidão econômica, a impossibilidade do amor. Assim nos transformamos em indiferentes agrupamentos humanos, escravizados pelo ambiente hostil.
A barra pesada gera seu aparente antídoto. Virou moda marginalizar o pessimismo, fazer campanhas do sorriso fácil, relevar a brutalidade, achar que estamos exagerando. Pela necessidade de sobrevivência, transcendemos o olhar diante das estatísticas. Assassinatos em massa durante décadas são tratados como exceções. O roubo generalizado, da casa de luxo ao pequeno comércio, o assalto ao bolso tanto do ambulante quanto do milionário, revelam que o mal se espalhou em rede pelo tecido social, mas é inútil exasperar-se com isso. Está por fora.
O certo seria repetir alguns jargões adotados como animaizinhos de estimação. O clássico é o “não tem nenhuma”, que vem dos anos 60, quando a mocidade resolveu apartar-se do terror cotidiano tentando inventar um mundo acima das vilanias. Hoje medra o “estar de bem com a vida”, como se enxergar com clareza fosse estar de mal com ela. Há ainda os que batem no peito dizendo “amar a Deus”, o que parece livrá-los da obrigatoriedade de amar o próximo. Ou os que “gostam de ler”, como se respirar fosse uma opção.
Chamar a atenção para esses lugares comuns é visto como implicância. Devemos nos comportar dentro da correção vigente. Pois se destoarmos do coro dos contentes, poderemos desmascarar os hábitos de guerra sob a aparência do congraçamento solidário. Isso prejudica os negócios. Tem muita gente faturando com o tiroteio.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Toshiro Mifune.
26 de outubro de 2009
O PERDÃO EM “A PARTIDA”
Para que serve o perdão em A Partida (Okuribito), de Yojiro Takita, vencedor de melhor filme estrangeiro no Oscar 2009? Vamos adiar a resposta com outra pergunta: por que este é um filme sobre o perdão, se a crítica quis reduzi-lo a uma indecisão entre comédia e drama, achando que o diretor se perdeu no meio do caminho e que teria feito uma obra “oscarizável”, ou seja, na medida para ganhar o prêmio, já que se entregou ao lugar comum e à inconsistência da trama?
É porque, não canso de dizer, a crítica não enxerga o que é mostrado na tela, preferindo ficar acima do trabalho alheio e desconfiando de suas intenções, principalmente se for um vencedor. E o que é mostrado na tela é uma sucessão de cenas sobre o perdão numa história que tem o perdão como foco principal. Veja quais são essas cenas: o rapaz que se veste de mulher é perdoado pelo pai que o condenava em vida; os parentes pedem perdão para a viúva que trabalhou até o fim porque queria continuar mantendo sua tradicional casa de banhos; o viúvo pede perdão aos profissionais que encomendam o corpo da esposa para os funerais porque tinha reclamado do atraso deles, mas acabou vendo a excelência do ofício; o rapaz que pede perdão à família da namorada, morta no acidente de moto em que ele estava pilotando. E qual é o foco principal, o caso que segura a narrativa?
É exatamente uma história de perdão. O tocador de violoncelo que não perdoa o pai por tê-lo abandonado aos seis anos, acaba tendo de encomendar o corpo do velho quando ele morre esquecido numa vila de pescadores. A raiva acumulada por toda a vida é lavada pelo choro na magnífica cena final, quando temos um momento antológico da Sétima Arte. Nesse desenlace, vemos que, apesar da orfandade, da indiferença, dos erros, do ódio, tudo acaba confluindo para a manutenção de uma linhagem: a mensagem repassada de pai para filho, por meio de uma pedra que representa a realidade emocional do emissor. Esse é o sustento de um povo que, mesmo ameaçado pelas transformações da modernidade, mantém-se coeso nos seus costumes e tradição.
Assim chegamos à resposta da primeira pergunta: o perdão em A Partida serve para que as pessoas do Japão continuem com seu sentimento de pertença a uma cultura, que gira em torno da família, da memória e do sangue. Vemos isso por meio do ritual de encomenda dos corpos, um serviço especializado a cargo de uma pequena empresa, que trabalha para as funerárias. O fundador da agência é também um viúvo que começou no ramo exatamente quando a esposa morreu. Ele é o mestre que treina o aprendiz num ofício mal visto socialmente, mas que acaba se impondo na comunidade, pois preserva a dignidade de quem foi derrotado pela morte.
A cerimônia da encomenda dos corpos é uma maneira de devolver a pessoa falecida ao convívio dos seus familiares, dos quais estava apartada em vida. As brigas que dividiam as casas enfim desaparecem quando a limpeza, a maquiagem e o trato delicado revelam a verdadeira identidade da pessoa morta, a imagem projetada, a partir do enterro, na memória justificada pelo amor. É o amor, tornado explícito no momento terminal, entre pais e filhos, avós e netas, marido e mulher, que mantém indissolúvel o laço familiar.
É muita coisa para um filme só, nesta pequena jóia do cinema contemporâneo. A Partida merece ser assistido pelo que ele nos traz de grandeza quando nossa precariedade e escassez encontram enfim seu verdadeiro destino, que é essa passagem obrigatória para o Outro Lado.
RETORNO – Imagem desta edição: Masahiro Motoki, o aprendiz, e Tsutomu Yamazaki, o mestre, numa cena de "A Partida".
SEAN PENN EM MILK
Há várias críticas sobre Milk, de Gus Van Sant, das mais tradicionais às mais vanguardistas, mas prefiro abordar o filme como sendo uma demonstração de força de Sean Penn. Não se trata de um trabalho que retrata suas posições progressistas. Não é o fato de Sean ser a favor das minorias e da luta pela democracia que faz dele um grande ator. A arte não se vincula à percepção correta ou errada que o artista tem do mundo e da vida, mas sim ao seu talento e o que faz com esse dom. E o que ele faz neste filme, sobre o principal ativista gay americano nos anos 70, é um arraso.
Sim, claro, ganhou o Oscar. Não é esse o parâmetro. Interpretações pífias já venceram na noite de gala. O que se destaca é que ele desbastou o personagem de todo o entorno a que estamos acostumados a ver nele e emergiu com uma criatura oposta ao patrimônio conhecido do seu carisma. Aquela testosterona vencida que enruga testa e cria o ar hostil e de enfado dos heróis que interpretou, de 21 Gramas a Menino com Lobos, aqui é substituído por algo mais complexo, fundado não na autosuficiência do rosto, mas na precariedade do gesto estudado, segunda natureza de uma espontaneidade plantada, que bem poderia ser confundida com um acervo fake de interpretação.
Representar o homossexual é uma tragédia na indústria audiovisual de última categoria, com o Brasil na frente, com suas piadas de viado que tomam conta dos programas de humor. Mas Sean não representa, ele se transforma em Harvey Milk na luta pelos direitos humanos. As expressões do personagem são o resultado da desconstrução facial a que se submeteu o ator. Os braços que se movem nos comícios buscam a espontaneidade contundente, pois era preciso criar um novo estilo de fazer política, que fosse o porta-voz de um movimento de massa emergente.
Sean não sob no palanque sabendo tudo. Ele procura, e encontra, o desenho dessa personalidade sob fogo cerrado, e cria a ilusão de que está puxando (quando no fundo é empurrado) pelos que o apóiam e aplaudem. O ator mostra como o personagem, a partir de sucessivas derrotas, foi-se se colocando na maré alta de uma insurgência que tomara conta das ruas e explodia na cara de uma sociedade tradicional, que procurava se defender invocando princípios da tradição e da religião.
Convencer o seu público de que era preciso sair do armário, conquistar o voto dos indecisos, peitar a concorrência fundamentalista, abrir caminho na burocracia política, negociar sem fazer concessões (como acontecera com o advogado rico e dono de uma revista gay), tudo conflui para o corpo do personagem exposto na tela. Isso levaria um ator menos competente a se entregar ao exagero, a atrapalhar, com a emoção, a coreografia necessária para trafegar pelas cenas. Sean mantém sob jugo pesado a criatura que inventou, libertando-a quando necessário, fazendo assim jus à imagem pública do homossexual que não precisava se travestir para assumir.
Milk coloca terno para irromper na política, antro de retrógrados seculares, faz piada sobre a imagem pronta armada pelos preconceitos, duela com a decadência física nos seus embates do amor (que deságuam sempre em suicídio) e isso é construído por Sean como um concerto de câmara em atividade num camarote de ópera: o minimalismo é o espectador do grande drama, mas a lágrima escancarada do bel canto é a mesma do sofrimento contido, perplexo diante do desenlace iminente.
Não é com caricatura que se constrói uma grande interpretação, mas a performance genial inclui tudo, inclusive a caricatura. Sean não abre mão de nada, porque tem o domínio pleno do seu ofício. Venceu a parada não porque seja obrigatório ficar ao lado das vítimas da perseguição, mas porque toda arte que atinge o apogeu se impõe como um súbito temporal que varre o mundo no cair da tarde.
SEAN PENN EM MILK
Há várias críticas sobre Milk, de Gus Van Sant, das mais tradicionais às mais vanguardistas, mas prefiro abordar o filme como sendo uma extrema demonstração de força de Sean Penn. Não se trata de um trabalho que retrata suas posições progressistas. Não é o fato de Sean ser a favor das minorias e da luta pela democracia que faz dele um grande ator. A arte não se vincula à percepção correta ou errada que o artista tem mundo e da vida, mas sim ao seu talento e o que faz com esse dom. E o que ele faz neste filme, sobre o principal ativista gay americano nos anos 70, é um arraso.
Sim, claro, ganhou o Oscar. Não é esse o parâmetro. Interpretações pífias já venceram na noite de gala. O que se destaca é que ele desbastou o personagem de todo o entorno a que estamos acostumados a ver nele e emergiu com uma criatura oposta ao patrimônio conhecido do seu carisma. Aquela testosterona vencida que enruga testa e cria o ar hostil e de enfado dos heróis que interpretou, de 21 Gramas a Menino com Lobos, aqui é substituído por algo mais complexo, fundado não na autosuficiência do rosto, mas na precariedade do gesto estudado, segunda natureza de uma espontaneidade plantada, que bem poderia ser confundida com um acervo fake de interpretação.
Representar o homossexual é uma tragédia na indústria audiovisual de última categoria, com o Brasil na frente, com suas piadas de viado que tomam conta dos programas de humor. Mas Sean não representa, ele se transforma em Harvey Milk na luta pelos direitos humanos. As expressões do personagem são o resultado da desconstrução facial a que se submeteu o ator. Os braços que se movem nos comícios buscam a espontaneidade contundente, pois era preciso criar um novo estilo de fazer política, que fosse o porta-voz de um movimento de massa emergente.
Sean não sob no palanque sabendo tudo. Ele procura, e encontra, o desenho dessa personalidade sob fogo cerrado, e cria a ilusão de que está puxando (quando no fundo é empurrado) pelos que o apóiam e aplaudem. O ator mostra como o personagem, a partir de sucessivas derrotas, foi-se se colocando na maré alta de uma insurgência que tomara conta das ruas e explodia na cara de uma sociedade tradicional que procurava se defender invocando princípios da tradição e da religião.
Convencer o seu público de que era preciso sair do armário, conquistar o voto dos indecisos, peitar a concorrência fundamentalista, abrir caminho na burocracia política, negociar sem fazer concessões (como acontecera com o advogado rico e dono de uma revista gay), tudo conflui para o corpo do personagem exposto na tela. Isso levaria um ator menos competente a se entregar ao exagero, a atrapalhar, com a emoção, a coreografia necessária para trafegar pelas cenas. Sean mantém sob jugo pesado a criatura que inventou, libertando-a quando necessário, fazendo assim jus à imagem pública do homossexual que não precisava se travestir para assumir.
Milk coloca terno para irromper na política, antro de retrógrados seculares, faz piada sobre a imagem pronta armada pelos preconceitos, duela com a decadência física nos seus embates do amor (que deságuam sempre em suicídio) e isso é construído por Sean como um concerto de câmara em atividade num camarote de ópera: o minimalismo é o espectador do grande drama, mas a lágrima escancarada do bel canto é a mesma do sofrimento contido, perplexo diante do desenlace iminente.
Não é com caricatura que se constrói uma grande interpretação, mas a performance genial inclui tudo, inclusive a caricatura. Sean não abre mão de nada, porque tem o domínio pleno do seu ofício. Venceu a parada não porque seja obrigatório ficar ao lado das vítimas da perseguição, mas porque toda arte que atinge o apogeu se impõe como um súbito temporal que varre o mundo no cair da tarde.
Sim, claro, ganhou o Oscar. Não é esse o parâmetro. Interpretações pífias já venceram na noite de gala. O que se destaca é que ele desbastou o personagem de todo o entorno a que estamos acostumados a ver nele e emergiu com uma criatura oposta ao patrimônio conhecido do seu carisma. Aquela testosterona vencida que enruga testa e cria o ar hostil e de enfado dos heróis que interpretou, de 21 Gramas a Menino com Lobos, aqui é substituído por algo mais complexo, fundado não na autosuficiência do rosto, mas na precariedade do gesto estudado, segunda natureza de uma espontaneidade plantada, que bem poderia ser confundida com um acervo fake de interpretação.
Representar o homossexual é uma tragédia na indústria audiovisual de última categoria, com o Brasil na frente, com suas piadas de viado que tomam conta dos programas de humor. Mas Sean não representa, ele se transforma em Harvey Milk na luta pelos direitos humanos. As expressões do personagem são o resultado da desconstrução facial a que se submeteu o ator. Os braços que se movem nos comícios buscam a espontaneidade contundente, pois era preciso criar um novo estilo de fazer política, que fosse o porta-voz de um movimento de massa emergente.
Sean não sob no palanque sabendo tudo. Ele procura, e encontra, o desenho dessa personalidade sob fogo cerrado, e cria a ilusão de que está puxando (quando no fundo é empurrado) pelos que o apóiam e aplaudem. O ator mostra como o personagem, a partir de sucessivas derrotas, foi-se se colocando na maré alta de uma insurgência que tomara conta das ruas e explodia na cara de uma sociedade tradicional que procurava se defender invocando princípios da tradição e da religião.
Convencer o seu público de que era preciso sair do armário, conquistar o voto dos indecisos, peitar a concorrência fundamentalista, abrir caminho na burocracia política, negociar sem fazer concessões (como acontecera com o advogado rico e dono de uma revista gay), tudo conflui para o corpo do personagem exposto na tela. Isso levaria um ator menos competente a se entregar ao exagero, a atrapalhar, com a emoção, a coreografia necessária para trafegar pelas cenas. Sean mantém sob jugo pesado a criatura que inventou, libertando-a quando necessário, fazendo assim jus à imagem pública do homossexual que não precisava se travestir para assumir.
Milk coloca terno para irromper na política, antro de retrógrados seculares, faz piada sobre a imagem pronta armada pelos preconceitos, duela com a decadência física nos seus embates do amor (que deságuam sempre em suicídio) e isso é construído por Sean como um concerto de câmara em atividade num camarote de ópera: o minimalismo é o espectador do grande drama, mas a lágrima escancarada do bel canto é a mesma do sofrimento contido, perplexo diante do desenlace iminente.
Não é com caricatura que se constrói uma grande interpretação, mas a performance genial inclui tudo, inclusive a caricatura. Sean não abre mão de nada, porque tem o domínio pleno do seu ofício. Venceu a parada não porque seja obrigatório ficar ao lado das vítimas da perseguição, mas porque toda arte que atinge o apogeu se impõe como um súbito temporal que varre o mundo no cair da tarde.
25 de outubro de 2009
AS MIL E UMA NOITES DO MILIONÁRIO INDIANO
Sherazade contava histórias para o rei que queria matá-la depois de fazer sexo. Deixava o conto em suspense para continuar no dia seguinte e assim foi adiando sua execução. Quando chegou ao fim da sucessão de contos, pediu clemência, no que foi atendida. Dizem que as Mil e Uma Noites são os degraus da iniciação do budismo. Assim também no filme “Quem quer ser um milionário”, de Danny Boyle, que ganhou 8 Oscars. O protagonista é um contador de histórias, que desfia os passos de sua vida bruta nas favelas indianas, onde começou órfão, passou a ser mendigo e acabou como servidor de chá numa empresa de telemarketing. Seu objetivo é escapar da tortura e da morte numa delegacia policial.
Sherazade fazia parte de um gênero sob suspeita, pois foi a infelidade da esposa que fez o rei vingar-se nas virgens do seu reino, matando-as uma a uma. Assim também aconteceu com Jamal, o garoto que sabia todas as respostas porque em cada uma delas havia a encarnação de uma vivência profunda. Sua performance num programa lotérico de televisão, onde ganhou uma fortuna, que poderia dobrar com a respsota certa da última pergunta, despertou suspeita do organizador do show e dos policiais. É porque ele faz parte dos garotos pobres da Índia, que jamais dizem a verdade, segundo a visão oficial. Por pertencer a um grupo social determinado, está condenado por antecedência, como Sherazade.
Sherazade contou as histórias para poder escapar da morte certa, pois cedo ou tarde seria convocado ao palácio, por ser uma das donzelas da região. Mas acabou se apaixonando pelo rei, com quem teve três filhos. Assim também Jamal, protagonista de uma jornada de encontro ao amor, distante no início, complicado o tempo todo, mas que enfim se consuma porque esse era seu destino, sua chance, sua sorte. A história de amor está imbricada na tragédia social como uma pérola em ostra intragável, escondida no fundo da miséria e do terror. Ela mesmo não acreditava que se encontrariam ainda em vida, mas ele apostava alto na oportunidade que a vida lhe reservava.
Eis o encanto deste filme que arrebatou a multidão e os críticos e levantou todos os prêmios da academia. Os politicamente corretos torceram o nariz, obviamente, pois um filme que acerta na veia exatamente por pertencer a uma linhagem narrativa clássica não poderia emocionar, como realmente emociona, não poderia ser de vanguarda, como realmente é, já que a montagem múltipla embala o encadeamento lógico e previsível, pois fica claro desde o início que este é um conto de fadas moderno, com todos os ingredientes que fazem a festa das exegeses das ciências humanas.
Ver o filme como uma paródia criativa das Mil e Uma Noites ajuda a decifrar a charada do seu sucesso. De vez em quando, um grande filme nos arrebata e torna a vida mais suportável. Quando isso acontece, devemos nos submeter aos desígnios da nossa sorte. Pois muita coisa sinistra passará debaixo da ponte até vir novamente uma obra como esta. Não dê ouvidos ao canto morno das falsas sereias. Este é um belo filme, que merece seu sucesso e que nos empolga por tratar de algo cada vez mais raro: a importância de dizer a verdade quando tudo gira em torno da mentira.
Jamal responde a verdade para os policiais, para o entrevistador, para a namorada, para o irmão, para os bandidos. "E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará", diz a Bíblia (João 8:2). Amém.
RETORNO – 1. Imagem desta edição: Tanvi Ganesh Lonkar (Latika - jovem), cena de “Quem quer ser um milionário?” . 2. Agradeço a Ida Duclós por soprar a idéia das Mil e Uma Noites para entender o filme.
24 de outubro de 2009
O ESTRANHO BENJAMIN BUTTON
Leio entrevista do roteirista Eric Roth, o mesmo de Munique (de Steve Sipelberg) e Forrest Gump (de Robert Zemeckis), sobre O Caso Curioso de Benjamin Button, de 2008. Consultando especialistas, descobriu que Scott Fitzgerald não levava a sério o conto, que fez apenas por dinheiro, pois era para ser publicado em revista e não em livro. Reli o conto depois de ver o filme. Como o gênio jamais descansa, Fitzgerald criou uma fábula com extrema consistência na estrutura narrativa, tanto é verdade que continua firme e forte, apesar do tema bizarro: o sujeito que nasce ancião e morre bebê. Esse núcleo é que deu margem para a indústria cinematográfica arriscar 150 milhões de dólares no filme, dirigido por David Fincher, o mesmo do violento Clube da Luta.
Eric Roth perdeu os pais enquanto preparava o roteiro do filme, protagonizado por Brad Pitt e a onipresente Cate Blanchet, a nova Emma Thompsom, já que todos os filmes são com ela. Não lembram de convidar outra atriz. Por que será? Lembro de Hitchcock fugindo do assédio de James Stewart, que queria ser de novo o ator principal de um novo filme dele depois de ter feito quase todos os outros. Tom Hanks diz que Eric escreve roteiros sobre a solidão. Ele não concorda, mas é verdade. Button é a saga de uma criatura excêntrica que sofre sua sina com parceiros eventuais que vão sumindo aos poucos, conforme sua vida vai se desenrolando pelo avesso.
Apesar de reclamar da voragem presencial de Blanchet, ela está ótima, como sempre. Mas Brad Pitt, que poderia ser apenas um rosto de Hollywood, se supera a cada lançamento. Vi grandes filmes com ele, sendo o maior, sem dúvida, o brilhante O assassinato de Jesse James, de Andrew Dominik Neste, desenvolve um personagem concentrado, sofredor, emocionado. A tecnologia e a maquiagem fazem horrores, mas o que vale é a interpretação dos atores, que nos convencem numa história de extrema originalidade (a idéia teria sido soprada por Mark Twain). O que será que significa o texto, se é que ainda toleram a leitura de significados na atual fase de relativização e abandono de velhos paradigmas teóricos?
Não podemos esquecer que o conto se passa na sociedade escravista do sul, em que a extrema bizarrice e marginalização era jogada nas costas dos negros. Eric Roth faz com que Benjamin seja rejeitado pelo pai e acolhido por uma babá negra estéril (não podia ter filhos) que cuida de um asilo de velhos. As convenções condenam o recém nascido, mas o amor, que se recolhe ao reduto dos marginalizados, o salva. No conto, o pai de Benjamin diz que gostaria que seu filho fosse negro, assim não passaria tanta vergonha.
Todos os personagens do filme acompanham essa maldição de serem outsiders numa sociedade que leva gerações sucessivas para a carnificina das guerras. Eric coloca a história como um contraponto do conflito, pois andando para trás o relógio poderia devolver os solados mortos para os pais e a sociedade, onde poderiam crescer e envelhecer com suas famílias. Fitzgerad teria usado o artifício da vida ao contrário para passar o recado de que a humanidade deve acordar para o amadurecimento e fazer dele uma fonte infinita de renovação?
O conto foi escrito nos anos 20 e a história se passa a partir da Guerra Civil americana. O filme começa na Primeira Guerra e vai até o furacão Katrina, no século 21. Vivemos hoje a inversão dos valores, com os jovens desprezando a herança das gerações passadas e os velhos querendo engrossar as fileiras do desfrute e da irresponsabilidade. Há marginalização da Terceira Idade, empurrada para roupas “jovens” e comportamentos estranhos, enquanto a meninada, liberta pelas novas tecnologias, vive um mundo à parte, tendo rompido com a velha linhagem do repasse da experiência. Algo se partiu no mundo e o conto apenas captura uma tendência que se consolidou no século 20 e hoje faz parte da natureza das coisas.
Não sei se é isso. O filme é bom, intrigante, super bem feito. Destaque para os coadjuvantes que trazem para a tela momentos inesquecíveis do capitão bêbado e tatuado do rebocador, que se considera um artista, o pigmeu contador de histórias, freqüentador de bordel, o velho que vivia contando como escapou de sete raios mortais, a mãe negra de Benjamin, entre outros. Uma galeria de anti-heróis magníficos, que fazem deste filme um dos grandes lançamentos desta primeira década do século.
RETORNO - Imagem desta edição: Brad e Cate em Benjamin Button.
23 de outubro de 2009
TATIBITATI MATA IMPRENSA
Título, olho, linha fina, intertítulo, legenda, chamada de capa, lead: todos os recursos de uma notícia sobre o mesmo assunto não podem repetir exaustivamente as mesmas palavras e dados. Estes precisam ser apurados com competência e distribuídos criativamente para que o leitor tenha acesso imediato a algo mais do que disse a manchete.
É preciso levar em conta o potencial informativo de cada destaque. Uma foto tem muita informação e a legenda não pode ser redundante. Isso, claro, contraria os manuais, que obrigam os jornalistas a fazer o que o Macaco Simão chamou de legenda para cego. A imagem mostra o homem dando água para a criança. Legenda: homem dá água para a criança. Isso mata a imprensa.
A verdade é que a imprensa, em sua maioria, reproduz o que diz a assessoria e isso serve para tudo. Quadrilha assalta banco em Madureira, diz o título. Elementos de uma quadrilham assaltam banco no bairro de Madureira, diz a linha fina. E aí a matéria começa: Uma quadrilha assaltou ontem um banco em Madureira...Legenda: O banco de Madureira que foi assaltado. Quem tem saco para esse troço?
Outra coisa repetitiva são as suítes. Essas foram inventadas para situar o leitor na notícia que foi veiculado originalmente nos dias anteriores. Quando há uma novidade, você informa e dá uma suíte do que passou. Mas esse recurso, pelo excesso, se transformou num pesadelo. Por exemplo: dois ladrões que fazem parte da quadrilha que assaltou ontem em Madureira continuam foragidos. O delegado disse que o assalto ao Banco em Madureira foi realizado pelos dois bandidos. Ontem, a quadrilha assaltou o banco em...e por aí vai.
Isso acontece porque as redações são editadas por gente que não é do ramo. São paraquedistas titulados ou não que estão convencidos que só assim pode ser feito jornalismo. A desculpa é que tudo precisa ser mastigadinho para o idiota do leitor, enquanto este está mergulhando na imprensa internacional, traduzindo automaticamente as notícias e se inteirando dos fatos inclusive do Brasil. Os imbecis não tomaram o poder no resto do mundo, só no Brasil. Somos governados por idiotas e esse baixo nível mental se espalha por toda a rede profissional e social.
A culpa seria do povo que não lê e que prefere apenas consumir besteiras. Um, é mentira. Dois, você não pode nivelar por baixo, isso é crime. Nivele por cima que todo mundo chega lá. Se não fizer isso, haverá migração para outras mídias. A imprensa pátria fica no tatibitati da notícia, na celebração do evento, no colunismo pífio, com textos sempre iguais, enfoques sempre os mesmos, expedientes repetidos até a exaustão. Digo isso porque não consigo ler o noticiário on-line dos jornalões do eixo Rio-São Paulo. Não há o que ler. É terra arrasada.
Na internet, o que vemos é o aparelhamento crescente da notícia. Ou isso protege Lula ou isso beneficia os tucanos. Há uma obsessão maldita pelo tucano-petismo, um calo ideológico granítico cevado em décadas de ditadura. Nem com cirurgia passa. O que devemos fazer é passar ao largo dessas certezas, em que tudo deságua no estuário milionário do desvio de verbas públicas. CPI, MST, DEM, PT, PDT: é tudo a mesma choldra. Quando você começa a gostar de determinado articulista, determinado blog, descobre que está aparelhado, a serviço da campanha, enquadrado nos trâmites da disputa do butim. Será possível?
É essa mediocridade política a fonte de todo o tatibitati da imprensa., Uma boa imprensa livre derruba qualquer medíocre do poder. Isso não pode. Temos de aturá-los até o final dos tempos. Eles fazem planos para 2030. Xô, Buuu, Fora. Quero o Brasil de volta.
RETORNO - Imagem desta edição: uma das fotos magníficas da Russia antes da Primeira Grande Guerra, de Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii. Peguei a dica no Twitter, via @daniduc. É o que vemos na farta colheita da rede, muito longe da mesquinharia da imprensa nativa.
ELO
Não costumo escrever sobre parentes. Preservo assim algo do que tenho, das excessivas exposições públicas. Acho que não interessa a ninguém fora do círculo familiar. Faço exceções para meus pais, que precisam ser lembrados, homenageados e queridos. No mais, são assuntos que ficam por aqui. Só às vezes dou notícia.
Mas de um em especial preciso falar neste 23 de outubro, data do seu aniversário. Mesmo que ele ache estranho, já que é dessa estirpe riograndense avessa a homenagens, pois vale mais a sinceridade do que o aplauso ou o tapinha nas costas. Mesmo assim, vou arriscar, sob pena de levar uma “dizida”.
Elo é o primeiro filho homem, herdou o nome do pai. Lembro da liderança natural quando estava no ginásio, da atração que exercia na gurizada sempre pronta a ouvi-lo nas rodas improvisadas, das brigas em que se meteu, homéricas, com grandalhões da vizinhança. Ou quando montava a cavalo ao inaugurar um dos primeiros CTGs do mundo, o Minuano, que ficava nos fundos do Colégio Santana, que por sua vez situa-se em frente à nossa casa (os dois prédios, casa e colégio, ainda estão lá). Lembro que, todo pilchado, declamava nos saraus arrancando manifestações entusiasmadas, pois todos “se abriam”, como se diz, para sua franqueza e naturalidade de falar em público.
Também lembro o católico devoto, que rezava todas as noites, aluno brilhante, mas meio avesso a disciplinas (acordava com o sino chamando para a aula). Do locutor da hora da Ave Maria, que deixou o pai meio sem jeito diante dos amigos, pois os engraçadinhos foram tirar satisfações do gauchão Elo pai, ateu, sobre essa história estranha de estar rezando publicamente. “Mas é o meu filho", dizia. Em vão. Todos queriam curtir a repentina devoção do velho pescador. Apesar do mesmo nome, são duas pessoas opostas, esses dois. Um nada tem a ver com o outro, mas de longe, o sangue não se renega. De perto é que a coisa muda. Mas não muito de perto.
Nunca nos aproximamos demais de um irmão mais velho. Nós, os menores (sempre serei o piá, apesar das seis décadas de vida) nos acostumamos com essa distância. Tem a ver com hábito e também com um certo temor. Não é bom chegar assim de pronto, pois se corre o risco de levar um corridão. Melhor assim. Essa excessiva proximidade, que é falsa, de hoje, não preserva o que há de melhor na fraternidade: o respeito mútuo das diferenças, a sabedoria de se encarar o próximo como um estranho, que ao mesmo tempo faz parte de nós. Essa contradição entre ficar perto e longe é que faz o encanto das relações duradouras entre irmãos.
Porque amizade é uma coisa, irmandade é outra. Com o amigo você fica mais à vontade, pode brigar, as feridas não são tão fundas. Por mais convívio que haja, você nunca saberá nada sobre ele. Com o irmão é preciso ter cuidado. Por nos conhecermos desde o berço, é mais fácil pisar nos calos, sair uma briga. Portanto, cultivamos com os irmãos essa fraternidade exposta como um balão de gás subindo brilhante em noite clara de verão. É nossa senha, nosso sinal. Ninguém tem nada com isso nem sabe do que se trata. É um caso à parte, sobre o qual não precisa inventar muito.
Sem dizer quase nada, acabo chegando ao final da crônica. Hoje, Elo exerce seus grandes conhecimentos culinários, com pratos inesquecíveis como sua lendária paella, seu assado de cordeiro na brasa temperado por chicotadas de galho de limoeiro embebido em salmoura, além de suas aprontadas com grandes camarões em domingos que causam estrago entre os convivas, já que fica difícil um elogio chegar ao nível de excelência do prato.
Mas tudo isso é só detalhe. O leitor compulsivo, que sabe absolutamente tudo, que enxerga com antecedência o que ainda estamos tateando, o carismático administrador de contratos, tudo aponta para uma personalidade sem igual. Claro, é meu irmão, poderia dizer. Está errado. Eu é que sou irmão dele, pois vim depois, o que é sempre lembrado quando cometemos o deslize de apresentá-lo sem o devido cuidado. Respeito é bom e ele gosta. O que fazer com o cara que jamais falha quando é convocado, que cumpre fielmente sua responsabilidade para a generosidade legítima, a que não deixa rastros nem pede reconhecimento?
Esse é o Elo, meu irmão mais velho. Parabéns, Elo. Conquistaste o direito de ser o líder, pois se a vocação nasce conosco, é preciso coragem para mantê-la.
RETORNO - Imagem desta edição: Elo Ortiz Duclós Filho, aos 67 anos, junto com seus livros e cds favoritos.
22 de outubro de 2009
AS PIORES EXPRESSÕES DA LÍNGUA
Elas são as piores pelo excesso de repetição. Como não há sinais de que serão abandonadas, vou destacá-las para que caia a ficha, haja simancol.
LIÇÃO DE CASA – O Brasil fez a lição de casa: superconcentrou mais a renda, alargou a bolsa esmola, paga tão bem os investidores estrangeiros que, em vez de baixar os juros, cobra pedágio, só para constar. Os empresários também fizeram a lição de casa: sucateados completamente, fecharam suas fábricas ou as entregaram aos chineses. O pessoal que roubou as provas do Enem também fez a lição de casa, só que foram reprovados assim mesmo.
SAIA JUSTA – Marmanjos horrendos com cara de furúnculo são tratados como donzelas pela imprensa, pois a toda hora entram em saia justa. Como se aqueles ternos de alpaca, as gravatonas sedosas, os cabelos lambidos, os gestos estudados, o rosto bexigoso lembrasse alguma coisa do gênero que usa saia.
POR CONTA DE - A mais execrável e recorrente muleta dos textículos do atual estágio de ejaculação precoce da imprensa. Serve para costurar o incosturável. Quando o redator se mete em encrenca, não encontra uma solução para a frase tosca que escolheu, não sabe onde quer chegar, mas precisa inserir alguma coisa que ele pensa ser informação, então coloca por conta de, ou seu agravante, por conta de que.
DOIS A MAIS OU DOIS A MENOS - Usada nas estatísticas. Como são todas inventadas e servem para quem paga mais, então eles abrem uma margem politicamente correta, para mostrar como são relativistas e fiéis à realidade. Os índices são todos fajutos, mas parece que obedecem a uma lógica matemática sofisticada.
QUANDO NÃO HÁ INTENÇÃO DE MATAR - Morre gente paca todos os dias, vítimas de pessoas que são enquadradas como se não tivessem intenção de matar. Imaginem se fossem tomados pelo desejo de assassinar em série. Seríamos dizimados e no nosso lugar colocariam os chineses. Opa, isso já não aconteceu?
CÍRCULO VIRTUOSO - Inventada pelo Roberto Campos, que queria (e conseguiu) sucatear o estado brasileiro, que obedeceria a um círculo vicioso. O objetivo era entregar tudo na mão dos especuladores que, como se sabe, são pessoas que enfeixam as maiores virtudes do mundo.
SUPEROU A CRISE - As crises são campanhas de marketing que tem por objetivo veicularem notícias sobre sua superação. Na crise estamos há muito tempo, mas quando ela é anunciada, é sinal que vão nos tungar mais. Raparão os cofres para depois dizerem que pronto, pronto, já passou. A idéia é fazer você trabalhar de novo para ser roubado mais adiante, quando vier nova fase da eterna crise superável.
DISPOSTO A NEGOCIAR - Ninguém abre mão de nada e todos se envolvem na raivosa disputa do butim. Mas para a platéia é bom chamar o rosnar de dentes de negociação, porque pega bem e dá manchete.
PEDE PASSAGEM - Criada no tempo em que o pessoal do morro resolveu descer ao asfalto para mostrar o samba, virou epidemia. Nunca mais o samba deixou de pedir passagem. Resultado, não existe mais samba, pois quando a gente pede, não dão. Quem fica esmolando passagem acaba pagando pedágio e assim mesmo não cruza o umbral.
RETORNO - 1. Imagem desta edição: círculo virtuoso? Tirei daqui. 2. Comentário amplia o cânone: "Nei, outras duas que não aguento mais ouvir é GERADOR DE EMPREGO E RENDA e DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL. Muito usado por políticos daqui quando querem justificar investimentos fraudulentos, ilegais, de empresários picaretas. Abraço Canga". 3. Mais uma grande contribuição: "Mestre Nei, acrescentaria mais duas: CHOQUE DE GESTÃO, que aqui no RS significa assalto descarado, e a quase debilóide epidemia de COM CERTEZA. Abraço Simch"
21 de outubro de 2009
O QUE NÃO CONSIGO ENTENDER
Não se trata do acervo infinito da minha ignorância, mas meu estranhamento diante da falta de lógica de alguns eventos pátrios. Não vale contra-argumentar que o Brasil é assim mesmo ou usar expressões como "está na cara". Eu realmente gostaria de entender.
MACONHA NO MARANHÃO - A notícia de que estão erradicando pés de maconha no Nordeste tem mais de 30 anos. Por que esse acontecimento é permanente? O Nordeste é do tamanho de Júpiter para ser impossível detectar as terras próprias para o cultivo da erva e definitivamente acabar com o plantio?
ARMAS PARA O TRÁFICO - Se todos sabem de onde vem as armas, quem são os traficantes, conseguem gravar a conversas dos caras fazendo negócios, se as armas são apreendidas, se há evidências que elas são compradas do Exterior ou dos acervos militares internos, por que tanta oh surpresa!diante do armamento dos bandidos? E por que eles continuam usando se arma não é pérola e ocupa um espaço físico razoável e por isso podem ser encontradas, bastaria um mínimo de logística, ou estratégia, ou seja lá o que for?
ACESSO AO DINHEIRO PÚBLICO - Gostaria de saber como uma verba de 100 milhões para combate à bandidagem carioca levará seis meses para ser liberada enquanto a conta do hotel em que ficou a comitiva presidencial nas eleições para a sede das Olimpíadas (4 mil reais a diária) é paga de maneira direta, sem choro nem vela? Como acontece o acesso ao dinheiro público? O sujeito que ocupa um cargo executivo vai lá e pega e gasta? Ou tem que solicitar antes? Falo também da grana preta dos trens da alegria da atual campanha eleitoral oficial ilegal – rimo de propósito, para chamar a atenção. Eles vão pegando?
PROVAS DO ENEM SEM LACRE - Descobriram várias caixas sendo carregadas sem lacre com as respostas do Enem de oito de novembro próximo dentro. A “transparência” das provas é praxe e já virou uma indústria, e só foi descoberta porque os ladrões envolveram a imprensa? E se pegaram as provas a descoberto numa só van, teriam outras em outros veículos? E se descobriram, por que desta vez não anulam novamente a prova?
ONDE ESTÃO OS TALENTOS VETERANOS? – A prefeitura de Florianópolis vai gastar 800 mil euros no cachê do tenor Andréa Bocelli para um show no final do ano. Por que não temos mais grandes cantores veteranos que valham isso? Ontem, no Jô Soares, vi Tony Bennet cantar aos 83 anos. Bocelli tem 51. Mientras tanto, Cauby Peixoto continua com seus vibratos inúteis, seus maneirismos. Há décadas ele esqueceu de apenas cantar. Sofre do mal brasileiro, o da performance. Perdemos Moacir Franco para os shows de humor. Só João Gilberto brilha, mas João não vale, João é gênio. Estou falando de grandes talentos, não de mestres.
BONECA TERESA CULTURAL - É a velha brincadeira das meninas dos anos 50: quando a coisa é conhecida, a garota pegava a barra do vestido e compunha uma espécie de cabeça falante que dizia: boneca Teresa, isso eu já sabia. Pois se todo mundo sabe o que é bom, do filme de primeira à música maravilhosa, do cantor magnífico ao artista plástico sem igual, por que esses horrendos gritalhões sertanojos são destacados, incensados, celebrados? E por que a TV continua passando só baixaria? E por que só lembram do Helio Oiticica quando queima todo seu acervo? E por que não mantém os dois ladrões do Masp na prisão? Se é um crime federal, por que anular o encaminhamento feioto até agora de crime estadual? Quer dizer que pode ir lá e roubar telas do Masp?
A CARGA DO HELICÓPTERO LIGEIRO - Se sabiam que o helicóptero não era blindado, por que mandaram os policiais militares lá? E se eles, que estavam dentro do helicóptero, sabiam disso, por que foram? E por que, sendo tão óbvio que houve negligência criminosa de quem deu a ordem, esse responsável, que pode ser no plural, não está preso? E por que acham que os soldados mortos no Rio valem menos do que as vítimas do metrô de Londres? O grande desastre da Carga da Briga Ligeira foi provocado por uma ordem dessas: colocaram os cavalos diante dos canhões. Contraria a lógica da guerra. Merece punição.
RETORNO - iMAGEM DESTA EDIÇÃO: David Hemmings olha e não acredita que terá de enfrentar os canhões russos na guerra da Criméia com sua cavalaria no clássico imperdível A Carga da Brigada Ligeira, de Tony Richardson, mais um feito desse ano de infinitas realizações que é 1968.
20 de outubro de 2009
GANHAR TEMPO
Nei Duclós (*)
Teorias novas levam um tempo para se instalar no discurso de massa, mas depois que pegam não saem mais da moda. Principalmente se o conjunto de idéias pode ser sintetizado numa palavra de impacto, como relativizar.
Foi preciso desestabilizar as percepções consagradas nas ciências humanas para instaurar enfoques inéditos sobre eventos passados ou acontecimentos emergentes, que desafiam nossa capacidade de análise. Por exemplo: quando todos estavam convencidos que a História era uma sucessão de feitos militares heróicos, a abordagem específica do que era deixado de lado subverteu os velhos manuais. Quando todos achavam que os fatos eram incontestáveis, os mestres apontaram para a impossibilidade de abarcarmos o real apenas com nossa vista cansada.
Mas como todo mundo relativiza a toda hora, perdeu-se a responsabilidade pelo excesso de uso, que acaba beneficiando o jogo bruto de interesses. Hoje, relativizar é negar tudo, principalmente as evidências, quando deveria ser apenas o recurso de afastar o olho para enxergar melhor. O óbvio foi expulso do seu status de consenso. Perde-se tempo e dinheiro em pesquisas que provam que o leite faz bem, por exemplo, ou que, respirando, a pessoa sobrevive.
Se um grupo de pessoas pratica assalto e roubo em nome da justiça social, a nova onda diz que isso pode, pois o alvo do crime também exerceria o mesmo tipo de prática. Essa influência no cabo de guerra da política coloca o relativismo na agenda do dia, ainda mais que nos aproximamos de uma campanha eleitoral decisiva. A propaganda partidária é o paraíso do relativismo. Tudo pode ser, desde que se faça a expressão certa e se adote o tom adequada da voz.
Para ganhar tempo, o cidadão deve voltar-se aos conceitos clássicos e redescobrir o sabor da leitura proveitosa. A batida opção de levar um livro para uma ilha deserta, no fundo, quer dizer o seguinte: precisamos ler o que vale a pena sem a tralha que o envolve, sem o cerco dos autores coadjuvantes. Ter os olhos livres diante das palavras arduamente elaboradas é gerar, dentro de si, os instrumentos necessários para enfrentar todo tipo de manipulação.
Aí, sim, poderemos relativizar. Ou seja, colocar no seu devido lugar as certezas comercializadas em função do assalto aos tesouros nacionais.
RETORNO - 1. Imagem desta edição: praça de Amsterdam, foto de Daniel Duclós. 2. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 20 de outubro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
SAGARANA NÚMERO 37 HOMENAGEIA FERLINGHETTI
Mensagem de Julio Monteiro Martins, da Italia: "Cari amici e amiche, siamo lieti di annunciarvi che, a partire da oggi, potrete consultare il numero 37 della Rivista Sagarana. Questo numero è l’edizione speciale commemorativa del 9° anniversario della rivista, con un’intervista esclusiva per Sagarana del grande poeta statunitense Lawrence Ferlinghetti: a lui, ai suoi 90 anni appena compiuti, è dedicata questa edizione.
L’Editoriale di Julio Monteiro Martins, Il dilemma dell’artista, parla del perché sia importante l'esistenza di una rivista con le caratteristiche della Sagarana in Italia e dei dubbi presenti nel rapporto tra artisti e scrittori con il loro stesso processo creativo e con l’ombra dell’autocensura, ai giorni d'oggi.
Poi, oltre alla sezione I Cortometraggi, incentrata sulla video arte e sui linguaggi multimediali sperimentali, una Mostra Virtuale inedita, sui Migranti, di Guido Villa (Vercelli 1943): sono immagini di impatto, fonti di grandi emozioni.
La sezione Saggi oltre all’intervista con Ferlinghetti, realizzata dalla poetessa italo americana Pina Piccolo, propone una ricerca inedita del poeta statunitense Paul Polanski sulle “storie orali degli zingari rom”, e riflessioni di Jacques Le Goff, Primo Levi, Peppe Sini, Jorge Luis Borges e Nadia Urbinati.
In Narrativa ci sono racconti e brani di romanzi di Thomas Mann, Giuseppe Berto, Lucio Mastronardi, Gustave Flaubert, Marguerite Duras e W. G. Sebald, oltre a quelli di autori viventi come Nanni Balestrini, Lourenço Cazarré, Junot Diaz e Ascanio Celestino.
In Poesia, oltre a Ad alcuni piace la poesia, di Wieslawa Szymborska, ci sono poesie di Giorgio Gaber, un’inedita in Italia di Philip Lamantia e una di Bozidar Stanisic’. Nella sezione Gegner, le tre parti del Tacito soccorso all’ombra del Reich di Markus Mohr, e la sezione Nuovi libri presenta tra l’altro un brano tratto dal romanzo appena uscito, Tutto-mondo, di Édouard Glissant. A questo stesso indirizzo troverete anche gli aggiornamenti della sezione Il Direttore, con il racconto inedito Questione di sicurezza, di Julio Monteiro Martins.
Ci auguriamo che le immagini, i video, le testimonianze, le riflessioni, i saggi, i racconti e le poesie da noi selezionati possano offrirvi ore di piacevole lettura.
A partire da questo numero, sarà possibile fare donazioni alla Sagarana, con offerte libere, cliccando sulla casella Sostieni il Progetto Sagarana, sul sito della nostra rivista.
I più cari saluti
La redazione di Sagarana"
19 de outubro de 2009
PECADOS MORTAIS DO JORNALISMO
Apesar dos bons serviços prestados pela imprensa, às vezes fica impossível aturar o que alguns apresentadores e repórteres dizem ou escrevem. O pior é que os lugares comuns não dão sinais de desistência e fica cada vez mais explícito que eles jamais mudarão os jargões, pois estão certo de que é assim desde que “o mundo é mundo”.
O QUE POUCA GENTE SABE - Em algum momento da profissão, o jornalista se sente uma divindade por deter o conhecimento do mundo, em todos os tempos. Ele faz parte de uma elite, a dos sabichões.
A SEGUIR, MAIS INFORMAÇÕES - Dizem isso no noticiário, mas o que poderia vir a seguir num jornal a não ser mais informações? É o mesmo que dizer: A seguir, vamos continuar respirando. Aguarde.
QUALIDADE DE VIDA - O jargão das consultorias contaminou as redações e de lá não saem mais. Qualidade de vida é poder exercer um estilo próprio, destacar-se da mesmice e publicar o que deve ser publicado e não o que ordenam os podres poderes.
VONTADE POLÍTICA – Essa se diferencia da vontade pura e simples porque a política dá mais dinheiro. Quando dizem falta vontade política é porque não chegaram ainda a um acordo sobre o montante a ser gasto na negociação.
JAMAIS PODERIA IMAGINAR - Já citei aqui, mas vale entrar neste novo cânone. O leitor ou a fonte são desprovidos de imaginação, talento que só o jornalista possui e costuma sempre destacar, para que todos morram de inveja de sua criatividade.
CLARO – Dito em tom peremptório, como aposto, expressa a obviedade do assunto que o espectador não consegue capturar e o apresentador, com um gesto ou cara de enfado, destaca não sem antes denunciar, no tom, que aquilo lhe custa muito esforço.
ESSA COISA DO “PERSONAGE” – Como ninguém verdadeiro chama a atenção da mídia, a moda é interpretar um papel e, o melhor, falar sobre o “personage”. Os repórteres, como fazem parte do show, adoram perguntar como que é essa coisa.
COMO SE SENTE PERDENDO TUDO? - Quem fizer essa pergunta deveria ser condenado e morar um ano na favela e todas as semanas responder como está se sentindo ao lado do esgoto, em barraco podre, na enchente ou abaixo de tiroteio.
RETORNO - Imagem desta edição: enchente no centro de Santo André. O Brasil não foi feito para chuva.
HORÁRIO DE VERÃO
Nei Duclós
O horário de verão significa que você não pode responder a uma pergunta simples: que horas são? Trata-se da ruptura do último consenso civilizado, o tempo. Porque na Biblia diz que há um tempo de nascer e outro de morrer; tempo de plantar e de arrancar, de derrubar e construir, mas o burocrata de energia diz: certo, mas adiante seu relógio. Ou seja, há um tempo para cada coisa, desde que seja 60 minutos mais tarde. Resultado: tudo se desfaz, pois não se pode confiar em mais nada.
O horário de verão é quando você acorda de tarde e dorme na hora de trabalhar, como um guarda noturno, que é uma profissão sem noção do horário normal. É como se alguém nos contratasse para dormir de cortinas fechadas durante o dia. Ou acordar quando chove e faz frio às três da matina e já passa da hora de bater o ponto. Você perde no mínimo uma hora por dia e a confusão produz problemas perenes. Por exemplo: o meio-dia jamais chega. Ou passa lotado, sem que ninguém perceba, depressa como um ônibus executivo, que te deixa na mão na hora do rush, bem na véspera do feriadão e você tem hora certa para chegar ao aeroporto. E quando chega, se chega, descobre que perdeu o avião porque seu horário, por ser de verão, foi na semana passada.
O grande problema de punir os responsáveis é que jamais saberemos quando é seis horas da tarde de verdade, pois é nesse momento em que devemos acionar a cadeira elétrica. Ou seria às seis da manhã? Não, seis da manhã é a forca. A cadeira elétrica tem que ser às seis da tarde, porque no horário normal são cinco horas e isso economiza energia. Ou então a execução deve ser às 12 em ponto, quando os ponteiros rezam por não saberem onde estão. Não se pode marcar um duelo com um sujeito se não acertarmos antes os relógios. Imaginem uma força multinacional na hora do ataque. Acertem os ponteiros, dirá o chefe, que é americano. Certo, responderá o chinês, que topa qualquer parada. Calma lá, dirá o soldado raso brasileiro, eu só posso ir nesse mesmo horário, mas uma hora depois! Na minha terra é horário de verão!
Uma das coisas mais desagradáveis é o fim do expediente com o sol a pino, esbravejando na sua cuca e você não consegue engatar na tranqüilidade da happy hour. Fica chato beber quando todo mundo está fazendo exercício para manter a forma. Então você deixa de lado a cerveja e vai correr para matar o tempo, pois tem ainda uma semana até o anoitecer. E quando ele vem, já é de manhã.
Uma das justificativas é que o horário de verão economiza 0,0000001 % da energia dispendida pelo pêndulo do relógio cuco e por isso vale muito a pena. Parece que faz bem para a lavoura de amendoim e ajuda a erradicar os besouros ruivos do Acre. A defasagem do fuso horário dentro do país se transforma num pesadelo.Um dia viajei em dezembro para Campo Grande às dez da noite e cheguei às quatro da tarde do dia anterior. Ninguém me aguardava no aeroporto, porque as pessoas estavam agendadas para fevereiro, quando a soma das horas perdidas poderia ser compensada sem muitos aborrecimentos na espera.
Para mim, tudo não passa de soberba. Os caras estão no poder e acham que podem fazer chover. Por isso mandam todo mundo jogar o relógio no lixo, adiar compromissos, chegar atrasado ou cedo demais, tudo em função de uma coisa marota e óbvia: os sujeitos que inventaram isso estão se lixando para o tempo. Chegam e saem a hora que querem. E quando perguntamos as horas eles dizem: sei lá. Ou melhor: são vinte para agora mais. Faltam dez para daqui a pouco. As mesmas de ontem a essa hora. E saem rindo da tua cara.
RETORNO - 1. Imagem desta edição: obra de Salvador Dali.2. Magistral Mario Vargas Llosa sobre Polanski, Mitterrand e Berlusconi. A elegância do texto de mãos dadas com a contudência, a ironia e erudição de um grande talento.
18 de outubro de 2009
VIGÍLIA
Nei Duclós
Acendo a fogueira
se a terra esfriar
Dou corda no tempo
pra dor não matar
Relógios de dentro
costumam parar
O sonho retorna
de qualquer lugar
Vigília me cerca
de estranho luar
Quem tomba primeiro
ensina a tombar
Acendo a fogueira
Pra noite brilhar
RETORNO - 1. Poema da última página do livro No Meio da Rua (L&PM, 1979). Musicado por Carlinhos Hartlieb. Escutei a canção uma vez em São Paulo, apresentada pelo próprio Carlinhos, mas nunca ouvi gravada em nenhum lugar. 2. Imagem desta edição: Texel, de Daniel Duclós.
17 de outubro de 2009
MAITÊ PROENÇA E A SAIA JUSTA COM PORTUGAL
Maitê Proença apresentou no programa Saia Justa, da GNT, um vídeo de sua viagem a Portugal onde confunde o número três apresentado de maneira invertida, como é costume na maçonaria, com burrice de português, entre outras barbaridades. Disse asneiras sobre política e geografia, numa demonstração de extrema limitação mental e de cretinice, pois achou tudo muito engraçado. Resultado: só serviu para os portugueses intensificarem seus preconceitos contra o Brasil, pois Maitê é o que temos de pior e a roda onde participou o que temos de mais recorrente e burro.
É moda hoje na televisão brasileira criar uma roda de pontificadoras, como se estivessem defendendo amulher. As mulheres não tem nada a ver com essa exposição de intimidades, esses aconselhamentos inúteis e vazios, esse gargalhar de pessoas bem remuneradas. No Fantástico tem algo parecido, o Clube das Mulheres, e vi esses tempos as participantes manipularem pobres donas de casa, como substituir responsabilidades por vaidades, além da eterna campanha contra os homens, como se gênero valesse alguma coisa na maré alta do capitalismo.
É preciso ensinar para as ignorantes que a mulher tinha mais poder antigamente, quando era matriarca da sociedade, quando colocava os homens sob o jugo do casamento em favor da sobrevivência das famílias e da espécie, quando ditava o comportamento e a ética, quando davam ordens. Não que isso fosse modelo de qualquer coisa, mas o fato é que tinham mais poder, o que deita por terra todo o argumento de que estavam em desvantagem. Homens e mulheres viviam sob o peso da sociedade tradicional e o poder era exercido por qualquer um dos gêneros, basta lembraR as rainhas, as fazendeiras, as matronas. A luta pela emancipação feminina é antiga e não é obra exclusiva do feminismo transformado em pose.
O que temos hoje é a mesma coisa: o poder é exercido por qualquer gênero e a cidadania continua sob o tacão. Mas há uma diferença: o exibicionismo das falsas liberdades. Algumas mulheres, auto-ungidas representantes da espécie, se submetem a tudo que é sacanagem e expõem suas intimidades publicamente, sendo a coisa mais indecente suas próprias indigências mentais. Enquanto isso, a exploração sexual continua a mil, basta ver as dançarinas nos programas de auditórios. Se a revolução desembocou nas chacretes, então alguma coisa está errada.
Não são representantes das mulheres as que se apresentam assim tão liberadas e cheias de cicatrizes amorosas, confundindo seu egoismo com teoria da libertação. São apenas pessoas metidas a besta. As mulheres sérias e inteligentes não tem vez nesse sistema bandido, em que meia dúzia (que ascenderam não se sabe como) se colocam como luminares da situação, quando não passam de sabujas da ditadura econômica que nos governa. Pois é preciso que as mulheres percam a sua seriedade e adotem a postura de perseguidas em luta pela liberdade (como se a dignidade pertencesse apenas às mulheres) para que o roubo da população continue impune.
É mais fácil comprar uma cretina dessas para mostrar viagens idiotas do que se submeter às mulheres com grandeza, que não se vendem e tem muito mais a dizer do que o cacarejar permanente confundido com modernidade.
TEM BOBAGEM DEMAIS NO AR
O noticiário é uma sucessão de asneiras. O balão que foi capturado e não tinha menino dentro. O velho que reencontrou seu grande amor depois de 30 anos. O trecho do centro que teve o transito desviado. As declarações do Rubinho Barichello. A franqueza de Felipe Massa. Os três pênaltis perdidos pela seleção sub-20. A brabeza de Dunga e Maradona. A nova vinheta da Fórmula 1. A cena em que Didi sobe no gigante infeliz do basquete, que morreu, é considerada “clássica”. Xuxa canta (?) para as crianças angolanas, que sacodem os bracinhos, judiação.
Depois tem as perdas de tempo nas estradas em fúria. A lenga-lenga de Brasília, que deveria ser fechada. As crueldades como levar criança de camburão para fazer BO. Os incêndios sucessivos, principalmente em favelas. Os assassinatos em série, como se vida fosse vídeo-game. E as frases repetidas. Como a que nos lembra, a cada milissegundo, o fato de o Brasil já estar classificado para a Copa. Vamos para a África, puxa. Por que não vão cagar pedra?
Os novos desertos são exibidos orgulhosamente como um grande feito do agronegócio nacional. Os estouros do cartão de crédito nada tem a ver com as necessidades básicas, é tudo vaidade desse povinho que não sabe gastar. Bem nutridos maganos cretinos aparecem a toda hora dando conselhos para a cidadania tungada pelos juros escorchantes. O noticiário não tem denúncia, tem denuncismo barato. Não tem defesa do país ou de seus habitantes, tem defesa de interesses corporativos e publicitários. Todos são culpados, menos eles.
Aí o Datena ganha mais um programa. Por que, meu Deus? A Fernanda Lima suspira fundo seu esqueleto dourado e diz que é o maior prazer, viu? Idiotas se colocam atrás de displays de corpos nus e falam das suas trepadas, sob a gargalhada da apresentadora loirosa de cabelos escorridos e aplausos da claque imbecil. De manhã à noite, Didi, Dodô, Xuxu e Micharias. Sabe aquele filme que você tirou na locadora no século passado? Vai passar no Cinema Especial. Sabe aqueles filmes todos sobre como os americanos são fodalhões? Passa todos os dias. Esses dias, a selva peruana era o Brasil e bandidão americano falava para seus subordinados hispano-brasucas como se fossem animaizinhos de estimação.
Minha sucessão de leituras vai bem, o problema é que você não pode o tempo todo só escrever (trabalhar) e ler. É preciso ligar a TV, tirar um filme. Depois de assistir inúmeros clássicos estupendos, me cai nas mãos uma Sandra Bullock quarentona fazendo papel de menininha. Talento desperdiçado em filmecos comerciais. Parece que o grande hit é Intrépidos Bastardos, ou algo assim, mais Quentin Tarantino, daqui a pouco vem mais um Scorsese. Não há perigo de melhorar. Vejo filme razoável polonês do garoto que procura o pai e tem uma irmã que luta por um emprego. Uma cena inteira foi chupada numa novela da Globo. Eles chupam e pronto.
Espíritos bons e criativos perdem tempo com política. O Brasil do tucano-petismo é perda de tempo. Devemos aplicar nosso tempo em coisas mais proveitosas. Começo a ler o diário de guerra de Alfredo Escaragnole de Taunauy. O Conde D´Eu aparece como um homem digno. Achei que era um atrapalhado comandante-em-chefe. Talvez não tenha sido. Quem são essas personalidades históricas que projetam imagens tão conflitantes? Para onde foi o Brasil? O que vale a pena é o amor e a memória. A criação e a coragem. O sonho e o humor.
Voltei a Shakespeare esses dias. Há 400 anos, o gênio. Quando ler te derruba. Mas parece que o Rubinho tem algo a dizer. Vamos ver. Ele torce a boca. Está indo para a Ferrari. Felipe Massa parece que não gosta. Ou gosta? Por que perdemos os pênaltis para Gana? Quanto mistério. Mas nada se compara ao chapéu de campanha do presidente e sua arenga interminável. “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”, como dizia Marco Antonio.
RETORNO - Imagem desta edição: Bobo da Corte.
16 de outubro de 2009
COMBOIO DE LIVROS
Nei Duclós
Livro tem pai e avô, como todo mundo. Nenhum autor importante, desses que deixam marca, escreve a partir do nada. Ninguém que vá morrer consegue inventar, sem base, algo que preste. O truque dos gênios é participar de uma linhagem, sem precisar dar sempre o crédito (isso fica a cargo dos estudiosos, os apaixonados dispersos no tempo). Artistas africanos anônimos e ancestrais foram apropriados por Pablo Picasso. MacBeth e Hamlet já tinham sido escritos, mas Shakespeare fez muito melhor. Os Irmãos Grimm, todos sabem: colheram as histórias do povo e colocaram em papel impresso. Cervantes usou os romances da cavalaria para talhar seu antídoto.
Picasso falava em roubar, mas era seu jeito debochado de abordar coisas sérias. Não acredito nessa definição. Existe o plágio, o clone, mas isso é outra coisa. Está cheio de ladrão por aí, mas os mestres são de outra estirpe. Trabalhar uma história e elaborá-la de tal forma que cruze os séculos é entender que literatura, como toda arte, é matriz, tem antepassados e gera seres vivos. Chamam de livros, mas podem ser páginas virtuais em telas luminosas, espalhadas em inúmeras fontes. Por um tempo foram manuscritos perdidos, obra de copistas, papiros, tábuas, argila. Não importa a forma, mas a elaboração que identifique a obra.
O papel impresso, por existir há muito tempo, parece ter se transformado na natureza do livro, mas esse é um erro de percepção. É imbatível como objeto a ser levado para a varanda, o quarto, o banco da praça, do ônibus. Mas acredito que hoje existe um exagero de livros não reconhecidos como tal espalhados pela rede, assim como temos livros perdidos, mofados, jamais reeditados e que fazem parte de um acervo de maravilhas ocultas, como os tesouros das lendas, essas que eram transmitidas pela voz por gerações e só depois pousaram, modificadas, em volumes que ocuparam estantes.
A essência do livro, da literatura, é habitar o espírito. Vejam bem que não usei missão, função, “papel” no sentido de incorporar um personagem. Porque é dentro de nós que uma história, uma teoria, uma lenda, uma parábola, um texto, um poema, uma obra habita. Não vamos procurar lá na sala encerada, na biblioteca opressiva, nas prateleiras convulsas, nos armários fechados a glória de existir da literatura. Também não vamos procurar apenas nas conversas eruditas, embora estas possam nos levar pela mão até onde nem imaginávamos com nossa precária leitura. Não se trata de fazer pouco do acúmulo ou das análises, pois tudo tem lugar nos livros.
O fato é que os antigos tinham mais sabedoria, pois não era preciso o livro para que a literatura habitasse as gentes. Bastava um narrador em praça pública, um poeta popular, um arauto, um aventureiro e suas memórias ditas em cima de um caixote, uma gávea. Não havia intermediários, a não ser o autor da saga, que assim se transmitia diretamente para o coração do povo. O livro no fim aprisionou o talento a sete chaves e ficou cada vez mais custoso abri-lo para ler, à medida que as atrações da vida se multiplicaram e se tornaram mais acessíveis.
Quantos livros deixei pela metade? Quantos dormiram na minha estante, às vezes por vinte anos, para enfim eu poder ser capturado por eles? Ler tudo é impossível, devemos ler só o necessário e cada um sabe sua cota. Ao mesmo tempo me pergunto: e se eu não os tivesse à mão, o que seria de mim? Brutalizado pelo exílio, eu amargaria a pena de viver tentando imaginar o impossível. Seria uma bruma de possibilidades e talvez eu quisesse, a certa altura, escrever algo para poder ter o que ler. Esse é o segredo dos diários: todos os dias colocamos a vida nele para um dia podermos ler o que passou por nós como um comboio. É nossa obra favorita.
Chegará esse tempo em que verei a paisagem do que escrevi. Mas isso vai se desenrolar lá fora do trem. Dentro, sobre uma poltrona amigável, eu continuarei a abrir os grandes autores, os que jamais devem se distanciar de nós. Porque se algo fica na terra, é a literatura, semente de obras ao infinito.
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