18 de dezembro de 2007

“SANEAMENTO BÁSICO” É SOBRE CINEMA


Nei Duclós
Todo filme é sobre cinema. Uns mais outros menos explícitos. Qual a primeira obra cinematográfica? Uma câmara apontada para uma saída de fábrica, dos Irmãos Lumière. Não é sobre a realidade operária da virada do século, é sobre como filmar uma saída de fábrica. O que é um faroeste? É a invenção de um espaço-tempo que só existe na tela, portanto não pode ser sobre acontecimentos, nem conflitos, nem tiroteios, e sim como todos os envolvidos na confecção do filme realizam uma obra cinematográfica gerando um universo mítico. Veja hoje “Rastros de Ódio” e verás não o velho Oeste, mas John Ford. Você enxerga o cineasta, síntese da equipe que produz o resultado.

Com os dvds, temos agora ao alcance do zap o making off, a cena deletada, o final alternativo, o comentário do diretor, a visão dos atores sobre cada personagem etc. É tudo sobre cinema. Você vê o filme e depois vai nos extras, ou bônus ou special features. Lá está toda a carpintaria do evento, os truques, o envolvimento, o treinamento, as locações. Então não se engane. Ao ver "Maria Antonieta", de Sofia Coppola, você não está vendo Versailles nem o século 18, você está vendo o que a diretora está fazendo (um clipe de rock, só que em vez de passar na MTv você aluga para ver). Por isso não existe recriação de época, existe a disposição de cenários e figurinos em função da narrativa.

“Saneamento básico, o filme”, de Jorge Furtado, não deixa nenhuma dúvida sobre isso. Seus personagens são: os motivos que levam as pessoas a fazerem um filme, a captação de recursos, o argumento, o roteiro, a equipe, as ferramentas, o cenário, a edição, a estréia, o marketing. É uma obra só em três tempos. Primeiro, o tempo real, que é o do espectador, que reproduz em sua mente a obra e é convocado para refletir o que está sendo exposto na tela. Segundo, o tempo do faz-de-conta, confundido com o verdadeiro tempo da história, em que os protagonistas se movimentam para realizar um filme. E o tempo virtual, o do filme que está sendo feito pelos personagens, que por sua vez encarnam, nesse trabalho coletivo, outros personagens (a esposa vira roteirista, o marido vira monstro, a cunhada vira estrela).

Parece complicado e é. Quando dizem que Furtado faz cinema-clip, ou obras viciadas no esquema televisivo, ou outras asneiras parecidas, fico fulo. Jorge Furtado é aquele que sabe filmar, ponto. Ele não joga filme fora, como Sofia Coppola em "Maria Antonieta" (apesar das cenas deslumbrantes, já que o gênio de Sofia sempre acaba se manifestando) . Ele acerta, porque sabe exatamente do que se trata o seu ofício. Revejam "Ilha das Flores". É sobre como se produz um documentário. Ou "O homem que copiava": a reprodução audiovisual como parte da engrenagem humana, ou seja, um filme atento à sua própria natureza.

Mas ele jamais cai na tentação de dar aulas de cinema. Um maestro não ensina, um maestro faz e os outros que aprendam. Se caísse na tentação, sairíamos perdendo. "Saneamento básico", o filme, não é uma obra didática que ensina como não se fazer um filme; ou como um filme amador pode dar certo; ou como é importante pequenas comunidades se organizarem para que a sociedade, organicamente, pense também em cultura. É apenas (e não é pouco), como disse acima, sobre cinema. Está tudo lá.

Giba Assis Brasil, responsável pela montagem, identifica esse seu trabalho (o de editar) como complicado, pois precisa mostrar um filme sendo produzido para ser montado, de um modo que a verdadeira montagem não pareça ser o que é. Você vê as entranhas do filmezinho amador e acha normal que essa obra tosca obedeça à manipulação do tempo aparentemente real, o dos protagonistas interpretados por Wagner Moura, Paulo José, Camila Pitanga, FernandaTorres, Tonico Pereira - todos ótimos, talentosos e dirigidos da maneira certa, ou seja, podendo despertar, criar o que for preciso a partir da mão transparente do mèteur-em-scene.

Como Giba fez isso? Como conseguiu limpar da cena tudo o que parecesse defeito do filme que está sendo produzido pelos personagens? Como ele faz para convencer que a pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul é real e o monstro da fossa não? Certo, nem tem comparação o monstro enfeitado com luvas de borracha usadas em marcenaria e o ritmo de interpretação dos atores (que duelam como poucos, com gestos e palavras, numa sucessão de momentos antológicos). Os personagens, na sua aparente vida real, falam simultaneamente, interagem com todo tipo de emoção, enquanto no filme que estão produzindo são rígidos, artificiais.

Esse gap desaparece quando o editor, interpretado por Lázaro Ramos, descobre por acaso o strip-tease de Camila Pitanga, uma cena doméstica com o marido e que empresta à obra o que faltava: a naturalidade, a magia, a graça. É o momento, esse do final de O Monstro da Fossa, quando Camila se despe, em que os dois tempos, o aparentemente real e o abominável do filmeco, se unem para produzir o aplauso da platéia. Ou seja, "Saneamento básico, o filme", já vem com a claque. Esta, tanto aprova o filme da aldeia, quanto o próprio trabalho de Furtado e sua equipe. A platéia que aplaude é a representação do espectador do tempo real, onde ficamos nós.

É fulminante. Está fazendo sucesso. Custei a conseguir o filme na locadora. Está saindo que nem pãzinho quente. Longa vida ao cineasta e sua obra.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de "Saneamento básico, o filme", com Paulo José e Tonico Duarte no centro, ambos de boné. Happy-end para vida transformada em obra de arte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário