30 de dezembro de 2007

A MENTE DESENHA O CORPO


Antes que o sol chegasse com tudo, aí pelas seis da manhã, despencava gente por todo o lado na praia onde moro. As poucas padarias abertas recebiam magotes de visitantes que faziam fila para o pão ou para o primeiro café do dia. Ruas já lotadas de pedestres, a caminho da areia. Veio todo mundo para cá. Placas de lugares jamais mencionados surgem a todo instante. São os novos municípios, criados a fórceps, para garantir o repasse obrigatório de um fundo federal de apoio. Também para gerar mais empregos políticos. Tudo bem retalhadinho. Mas o tema de hoje é outro.

Diante do mar, todos se despem e mostram as cicatrizes provocadas pelo país continente. Há, claro, os corpos perfeitos, mas são minoria. O que mais tem são as carnes exaustas e em queda, e não apenas pela idade. Maus hábitos, longos invernos, ou será que sempre fomos assim, precários, e a beleza física é apenas um sonho antigo da eugenia, hoje superdimensionado pelo marketing? Noto que a maneira de ser de cada um desenha o corpo. Vamos pegar um exemplo.

Passam duas mulheres jovens, altas, em biquínis para lá de escassos. Uma delas, de olhos oblíquos, conversa animadamente sobre o assunto obrigatório do gênero, homens. Ela cita, no meio de animada conversa, “aquelas metralhadoras” e faz um gesto em concha com a mão, como se estivesse agarrando a virilidade a unha. Tem o cabelo preso em cima. A outra acompanha o papo concordando. Um cara passa pelas duas e faz caras e bocas de que sabe do que se trata.

Pelo que vejo no seu andar, metido a malandro, com a cabeça navegando um torso um pouco torcido, o andar dez-para-as-duas devagar, o penteado sendo ajeitado a toda hora, trata-se de um sabichão por dentro do movimento. Claro, as mulheres que passaram só podem ser da vida, pensa ele com todo o seu corpo. Ou seria má vontade minha ao presenciar a cena? Acho que não. Ele debocha das mulheres, comentando com alguém que está ao seu lado.

Existem os velhões que se acham enxutos, os anciãos que não querem perder o poder, e por isso mantêm um chicote mental no queixo prognata, as senhoras precocemente idosas, que na faixa dos 40 fazendo aquele esgar de dona de fazenda quando estão sentadas em suas cadeiras. São sobrevivências do matronato. E há os casais, dedicados à faina de colocar a petizada no bom caminho do mar, rodeando os pitocos com o cuidado um pouco cansado de pessoas colhidas cedo na procriação. As crianças, claro, são uns encantos. Sinal que nascemos certos, depois é que nos estragamos, como dizia minha mãe toda vez que levava um filho para costurar ferimentos no pronto socorro da Santa Casa.

Claro que todo esse acervo baseado nas aparência fica guardado num cofre. Jamais devemos comentar qualquer coisa sobre o que as pessoas dizem com seus corpos. O que expresso está na cara: muito tempo diante da tv, vida sedentária, décadas numa megalópole sem natureza por perto. Nem precisa falar. Mas me misturo alegremente à humanidade sem jaça e sou um na multidão de corpos cheios de recados. Olho para alguém que acompanha uma senhora, que excede em tudo. A moça traz embutido o desenho da sua futura idade. Tem a vocação de quem se liga no envelhecimento, faz companhia a quem dobrou o cabo da Boa Esperança. Está inteira, mas já admitiu que não ficará jovem para sempre. É muito raro alguém dizer isso embaixo de um guarda sol.

Enquanto isso, recebo e retribuo inúmeras manifestações de apreço pela passagem do ano. Boas Festas, Feliz Ano Novo. Que 2008 seja melhor. Coma a lentilha, pule as sete ondinhas, fique de branco, que eu vou dormir. Sorte que o verão, impecável, já deu as caras. É quando a vida faz sentido.

RETORNO - Imagem de hoje: eu no colo da Dona Rosinha, em Uruguaiana. "Eu nasci pequeneninho, como todo mundo nasceu..."

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