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21 de maio de 2005
UM LIVRO FEITO DE PEDRA
Obra de transição, Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, está dividida entre o libelo e a celebração (Este texto, brilhantemente editado pelos talentosos e competentes jornalistas do Diário Catarinense, está na edição de hoje, sábado, no caderno de Cultura do DC. O Cultura é editado por Dorva Rezende. Agradeço também a intevenção certeira de Tatiana Beltrão, que me esclareceu sobre a necessidade de tornar mais ampla a recepção a este trabalho, originalmente apresentado na cadeira da professora Teresa Aline, da História da USP).
Por Nei Duclós
Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, é um livro com o porte de um monumento. Como a igreja que o inspira, é uma obra de transição, exibindo a majestade de um clássico e a decadência do folhetim. Suas personagens expressam a diversidade e se identificam com cada um dos elementos da sua estrutura múltipla e complexa: o padre santo e sábio transformado em vilão ao longo da narrativa e que abriga e alimenta, sem saber, a figura que sintetiza sua própria decadência; o poeta dividido entre a cultura vazia do poder e a presença viva do povo nas ruas; a dançarina que encarna a beleza e a graça do movimento em confronto com uma espiritualidade rígida fundada no medo. Assim, a trama que enreda o leitor revela a solidez acumulada pela História em queda livre para o abismo.
No capítulo II do Livro VI (Ceci tuera cela - Isto matará aquilo, da edição completa da Gallimard, 1996), Victor Hugo explica como a revolução de Gutemberg esvaziou e aniquilou a importância das obras da arte e da arquitetura antigas. Estas eram os livros da humanidade antes que a palavra impressa tornasse a herança das gerações em algo indestrutível, exatamente por ser um instrumento simples, leve e infinito. Os novos monumentos deixaram de ser os templos, as igrejas e as pirâmides, mas as grandes obras literárias. É nesse enfoque que Notre-Dame foi escrito, o de tornar-se uma edificação não ameaçada pela ruína.
Por ser uma obra de transição, Notre-Dame está dividida entre o libelo - quando o autor lamenta os prejuízos sofridos pela catedral de Paris, promovidos pelo trabalho dos artistas, que substituíram os povos, as instituições e as nações na construção dos monumentos - e a celebração - quando ele abre mão de ficar preso ao passado para enxergar a importância das obras impuras, que misturam estilos e são a síntese de contribuições centenárias. Ironicamente, o cinema e a civilização da imagem do século 20 fizeram, sobre a obra de Victor Hugo, o que ele lamenta no livro em relação aos artistas pós-Gutemberg. As adaptações cinematográficas - e algumas traduções brasileiras, tanto na manipulação do título quanto na eliminação de capítulos inteiros, como o já citado Ceci tuera cela - privilegiam o Corcunda em detrimento da personagem principal, que é Notre-Dame.
A deformidade de Quasímodo - nome derivado de uma data católica, um domingo depois da Páscoa, e que revela um trabalho inacabado - expressa a transmutação da igreja em caricatura, da arte substituída pela geometria, da cúpula identificada com a "bosse": "Voici les églises de Louis XIII, lourdes, trapues, surbaissées, ramassées, chargées d'un dun dôme comme d'une bosse / Eis as igrejas de Louis XIII, pesadas, sobrepostas, empilhadas, carregadas por uma cúpula como se fosse uma corcova" (página 250 do capítulo Ceci tuera cela). A descrição das caretas no Capítulo V do Livro I ajuda a esclarecer esse ponto: "Après toutes les figures pentagones, hexaghones e héteroclites que s'étaient succédée à cette lucarne sans réaliser cet idéal du grotesque que si etait construit dans le imaginations exaltées par l'orgie, il ne fallait rien moins, pour enlever les sufrages, que la grimace sublime quivenait d'éblouir l'assemblée / Depois de todas as figuras pentagonais, hexagonais e irregulares que se sucederam na abertura sem conseguir realizar o ideal grotesco construído pelas imaginações exaltadas do bacanal, não faltava mais nada, para garantir os votos, do que aquela careta sublime que arrebatou a platéia" (pág. 88).
Essa careta sublime tem um nariz tètraèdre, enquanto seu olho direito desaparecia sobre uma enorme verruga - e é preciso destacar "toutes les verruese tous les fungus que défigurent cette vieille architecture caduque / Todas as verrugas e fungos que desfiguram esta velha arquitetura caduca", como diz o autor na pág. 250. Invocando a geometria, Victor Hugo mostra como a arte se desfigurou nos séculos 16, 17 e 18: "A partir de François II, la forme architeturale de l'édifice s'efface de plus en plus et laisse saillir la forme géometrique, comme la charpente osseuse d'un malade amigri. Les belles lignes de l'art font place aux froides et inexorables lignes du géometre / A partir de François II, a forma arquitetônica do edifício torna-se cada vez mais diluída e deixa sobressair a forma geométrica, como a estrutura óssea de um doente terminal. As belas linhas da arte dão lugar às frias e inexoráveis linhas do geômetra".
O Corcunda é, portanto, uma deformidade da geometria, a antiarte, a expressão da Queda. Por isso ele dança sobre o abismo antes de projetar-se definitivamente nele. Mas o Corcunda é inocente, vítima da hipocrisia dos homens e das instituições como a Igreja e a magistratura, que condenam pessoas do povo à morte. Nos julgamentos de Quasímodo e Esmeralda, o folhetim penetra o monumento, o drama encharca a pedra.
O bobo (cloche) dança no alto da torre como um sino (cloche) chamando a atenção dos mendigos (cloches). As palavras, em Hugo, são as pedras do livro, com múltiplas funções e cruzamentos. Cour é corte e pátio, é instituição e espaço marginais. Paris vista do alto da Notre-Dame é uma soma de monumentos, embalada pelo som dos sinos: "...que cette cité qui n'est plus qu'un orchestre; que cette symphonie que fait le bruit d'une tempête / ...esta cidade, que nada mais é do que uma orquestra; esta sinfonia, que faz o barulho de uma tempestade".
No livro, as personagens existem em função da igreja e as pessoas são as forças liberadas pela decadência da arte. O escritor Gringoire vaga perdido pelas ruas de Paris sem descobrir a importância que assumiu sua profissão depois de Gutenberg. Em oposição a esta imagem do escritor no século 19 - que Victor Hugo denuncia ambientado no século 15 -, um livro feito de pedra como Notre-Dame de Paris instaura uma postura intelectual sólida. A obra literária opõe-se à decadência, resgatando a grandeza perdida da arte. Em Gringoire, as palavras são como a caiação deformando antigos monumentos. Em Victor Hugo, elas funcionam como uma orquestra e assumem a força de uma tempestade.
RETORNO - Aos poucos, estou atualizando o site. Já peguei firme no cinema (ainda faltam muitos textos) e daqui a pouco pego as resenhas literárias, entre muitos outros artigos. Agradeço a calorosa acolhida ao novo site, que multiplicou a exposição do meu trabalho e oferece espaço para mais interação com os leitores.
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