12 de maio de 2005

OS AMIGOS VINDOS DO CIBERESPAÇO

Tenho amigos que não conheço pessoalmente, mas é como já tivéssemos longa quilometragem de bar. São eles: Urariano Mota (que me enviou seu magnífico romance Os corações futuristas, que leio aos poucos, para economizar), Jésus Gómez (que é responsável pelo site La Insignia, uma aula diária de política e cultura) e Luciano Dutra, que vive na Islândia depois de ter sido convocado para esse país pelos caminhos da literatura de Borges. De Urariano me dedicarei daqui a pouco, reproduzindo a viagem que faço pela sua literatura. De Jésus e Luciano me encarrego agora, transcrevendo dois textos que eles me enviaram, retirados de mensagens carinhosas e cheias de vida. Com Luciano estou em dívida, pois ele me brindou com extensa carta que ainda não respondi devidamente. Tento sanar esse vácuo colocando no ar alguns trechos em que ele se refere à Islândia e que formam um roteiro de uma experiência gratificante de um brasileiro fora das nossas fronteiras. Jésus, escrevendo de Madri, faz sólido comentário sobre artigo sobre Edward Said que enviei para ele e está no ar. Palavras que nos chegam do Exterior, com todo o sabor da cultura viva que as pessoas constroem no intercâmbio da amizade verdadeira e a partir da identificação gerada na luta diária.

SOBRE EDWARD SAID (Jésus Gómez) - "Hola, Nei: Un artículo francamente interesante, y lo digo con total y absoluta sinceridad. La misma con la que añado que, en mi opinión, «Orientalismo» no es ni mucho menos el mejor trabajo de Said. A decir verdad, no obstante, yo me pregunto qué diablos es eso de oriente y occidente, por lo menos en lo relativo a ese todo cultural que básica y originalmente iría de la antigua Persia a la Península Ibérica y de la frontera norte del limes romano a la frontera sur del Sáhara. Reduciendo la geografía, la única diferencia ostensible entre la orilla norte y la sur del Mediterráneo es que la norte supo separar Iglesia y Estado a partir del Renacimiento; la sur, el mundo musulmán, no. Y por supuesto, la norte lo hizo, entre otras cosas, porque integró lo mejor de la cultura árabe: Detrás de Maquiavelo está Nizam Al Molk; detrás de Juan de la Cruz, Abenazán (Ibn Hazm), el autor de «El collar de la paloma». Es fácil mirar el mundo musulman desde el siglo XX o XXI y pensar que su desgracia llega con el imperialismo inglés e francés del s. XIX, pero lamentablemente es lo contrario: esos dos imperialismos son consecuencia (no, obviamente, causa) de una decadencia que se inicia claramente en el XV-XVI pero que ya está presente en la larga derrota la España musulmana en la Península Ibérica. Pierde porque es incapaz de adoptar estructuras modernas. Y seguirá estancado mientras no retome lo mejor de los intentos políticos laicos de los cincuenta-setenta del s. XX (intento que, ciertamente, EEUU e Israel intentan evitar a toda costa). De todas formas, yo diría que, en el fondo, Said sólo pretendía desembarazar al mundo árabe del cliché orientalista e insuflar cierto orgullo nacional en un ámbito dominado por una sensación, a veces real y a veces imaginaria, de humillación; exactamente lo mismo que intentaron los autores españoles del XIX (ese cliché orientalista también se nos aplicaba a nosotros, por raro que te parezca; del mismo modo en que hay varias Áfricas distintas y bastantes más Asias diferentes, también hay Europas y Europas). En todo caso, y errores aparte, seguro que estamos de acuerdo en que el mundo árabe necesita muchos más Said y menos imanes. Un gran abrazo, jesús".

ISLÂNDIA (Luciano Dutra) - "Islândia. É uma longa história. É uma pergunta que já respondi incontáveis vezes. E já não sei mais qual é a resposta correta. Houve uma vez, entre 1997 e 1998, em que, para exercitar-me, dei por traduzir TODOS os sonetos de Jorge Luis Borges. Não lembro o número exato agora, mas são seguramente mais de 130, jamais enfeixados num único volume, porém. O Borges poeta é quase sempre sufocado pelo contista já clássico e pelo ensaísta genial. Eu naturalmente, puxando a brasa para o meu assado, prefiro o Borges poeta. Especialmente o Borges sonetista. Poucos autores do século XX persistiram tanto nesta forma, principalmente já tão avançado o século. E nos sonetos de Borges lá está: a Islândia. Estas paragens tão longes do nosso horizonte sulamericano. A Islândia de Snorri Sturluson, mais ou menos contemporâneo de Dante, e que deixou uma obra não menos sólida que a do seu
contemporâneo. A Islândia das sagas, prenúncios da técnica do romance europeu moderno, só
que uns... 5 ou 6 séculos antes. A Islândia que guardou a memória da descoberta da América séculos antes de Colombo, de Vasco da Gama. Só que a América deles era só uma parte da Europa, que era onde ela cabia na visão de mundo da época. Resultado: ninguém tomou conhecimento...A Islândia que, deserta até o século IX, ágrafa até o século XI, abraçou a
civilização de uma forma tão intensa, a antiga e a nova, e preservou como em parte alguma os velhos mitos germânicos, mas sem a má-fé proto-nazista de Wagner e de Carlyle. Esta foi a Islândia que clamou no meu sangue. Não a Islândia da Lagoa Azul, das noites como o diabo gosta de Reiquiavique, das loiras estonteantes, mas tontas, em cada esquina. Esta só vim a saber que existia, já estando aqui. Tampouco a Islândia do sexto ou sétimo IDH do mundo, da moeda forte que há meses espanca o dólar impiedosamente, do seguro social generoso, e da educação grátis e universal, inclusive no nível universitário. Esta Islândia também, só descobri, estou descobrindo, colateralmente. E não é que estou gostando? Aqui desembarquei em agosto de 2002, no apagar das luzes da antiga lei de estrangeiros. Cheguei sem visto, sem emprego garantido, só com a carta da Universidade e o passaporte semi-virgem, e fui me instalando. Em uma semana
arrumei trabalho, e depois outro trabalho. E assim me viabilizei aqui. Vejo muitos estrangeiros, principalmente de sangue latino, queixando-se da Islândia e dos islandeses, das islandesas principalmente. Mas não estou nem aí. Estou à vontade aqui, falando o idioma com fluência, apesar da gramática claudicante. Trabalho numa escola, com crianças de 6 a 9 anos, meus melhores professores de pronúncia, e também de cultura islandesa. Hoje, com a nova lei de imigração, acabou-se o que era doce. Só é possível entrar no país para estudar e/ou trabalhar já com o visto emitido no país de origem, através da Embaixada da Dinamarca. A nova lei, promulgada para adequar-se às exigências do Protocolo Schengen, da Comunidade Européia, na
verdade tem recebido a implementação mais restritiva possível. "

GEOGRAFIA ISLANDESA (Luciano Dutra) - "Casualmente, não estou entre um fiorde, mas sim numa baía. A baia da neblina, mais exatamente, que é o que quer dizer o nome Reykjavík, que eu aportugueso Reiquiavique mesmo. Bueno, tecnicamente, sim, a península onde está Reykjavík, fica entre dois fiordes, Skerjafjörður, no sul, e no norte Kollafjörður. Mas são, por assim dizer, fiordezinhos. Os verdadeiros fiordes estão mais para cima, os Fiordes Ocidentais, e também no quadrante norte. Segundo o Glossário Geológico Ilustrado do Instituto de Geociências da UnB fiorde é:Feição estuarina marinha formada em antigos vales glaciais muito comuns nos países nórdicos da Europa, de onde se originou o nome, e que se caracteriza pela extensa entrada do mar ladeado por costões com paredes abruptas do antigo vale em U e que apresentam extensos afloramentos de rochas expostas pela ação erosiva do gelo durante períodos glaciais com nível do mar rebaixado eustaticamente. Pois desses há vários aqui na Islândia, e cada um deles é um mundo à parte, na verdade, e conforma um universo cultural autônomo, apesar da homogeneidade a que tende o país nestes tempos de globalização, inclusive
doméstica. Porque na Islândia se vive em círculo, quero dizer, só o exterior da ilha é habitado, no miolo há os glaciares, inclusive Vatnajökull, o maior da Europa, há os vulcões, vários deles ativos, alguns ativíssimos, e há as Terras Altas, onde no inverno há muito frio, vento, neve, e a vida faz-se inviável. A principal rodovia nacional, não podia ser de outra forma, é a número 1 que exatamente faz a volta da ilha, é uma espécie de 116 ou 101 aí no Brasil, rodovia de integração nacional. Mas objetivando: vim para cá para estudar islandês, e a literatura islandesa medieval, para traduzir tudo isso, futuralmente, ao português. Tarefa que está toda por fazer, não tenho passos de ninguém a seguir. Sequer um dicionário islandês português há. Ao lado do catalão, somos a língua neolatina importante mais atrasada em relação à literatura escandinava medieval. Uma pena para nós. É como se não tivéssemos Shakespeare, ou Balzac, no nosso próprio idioma. Salvo exageros da minha parte. Afinal obviamente sou fonte suspeita para falar do tema, já que transformei isto no meu destino."

ESTUDOS ( Luciano Dutra) - "Estou no terceiro ano do curso, agreguei mais um ano para ter uma ênfase em tradução, muito bem vinda. Não sou um aluno dos sonhos, mas acredito que me
formo, mal ou bem, em 2006. Este ano, no final do verão, devo entregar a monografia de conclusão. Que será sobre a imigração islandesa no sul do Brasil, no final do século XIX. Acredite, eles andam por aí. Mas eis-me aqui, por uma circunstância destas da vida. A culpa, é claro, só
podia ser de um argentino: Borges, que insuflou a curiosidade por este pedaço de gelo no meio do Atlântico. Na época, eu estava com o que aqui chamam de útþrá, que é uma espécie de saudade invertida, literalmente ", uma saudade de ir, não de voltar, que é a saudade que conhecemos, lusófonos que somos. A nossa saudade, aqui, é heimþrá, vontade de casa. Estava com dois corações: vir para cá, para a universidade, buscar finalmente um canudo, depois de ter abandonado a Ufrgs em 1994 no meio do curso de alemão, ou ir ao Timor Oriental, num voluntariado de um ano, ensinando português, noções de inglês e informática a ex-guerrilheiros das Falintil, os barbudos que na selva resistiram aos 25 anos de ocupação indonésia, sobreviveram ao genocídio, mas sabiam pouco mais do que desmontar e montar um fuzil. No fim, por que a ong com quem trabalharia no Timor roeu a corda, na undécima hora, acabei vindo para cá. É bom viver num país voltado para a população, em que o Estado não é um meio em si mesmo ou, pior, a mediação do mando de meia dúzia. O Estado islandês é uma mãe, uma mãe italiana ou judia, não deixo por menos. Pagam-se por isso, 38,7% descontados na fonte. Mas o resultado salta na vista, a gente fica mimado. Este é o lado bom. O lado ruim. Sempre vais ser estrangeiro em terra estranha. Aí vens dos trópicos, e cais de pára-quedas, as pessoas olham os teus traços, e não conseguem ligá-lo a nenhum dos 15 ou 20 padrões de fisionomias que a pouca variação genética criou aqui. Se tens cabelo escuro, batata, já saem falando em inglês, como se fosses incapaz de falar o declinado idioma dos viquingues. É irritante. Se seguires lendo o blogue, junto com os sonetos, vais ver outras razões porque nem sempre é um mar de rosas viver aqui. Mas no geral, é a idéia de paraíso na terra, o antípoda da situação deplorável, e cada vez mais grave, à beira do abismo, que se vive no Brasil. "

Nenhum comentário:

Postar um comentário