8 de maio de 2005

SAPATO EM FUGA NO QUINTAL DA INFÂNCIA



Nei Duclós

O grande quintal tinha um cinamomo que vingou . Árvore generosa, carregada sempre, fornecia artilharia contra adversários (todos os seres humanos abaixo de sete anos) e passarinhos (qualquer coisa que ousasse voar). De terra batida, acolheu galinheiros (feitos pacientemente pela maestria carpinteira do meu irmão Luiz Carlos) ou canteiros (entre eles tinha o meu, só de trigo, que na safra gerava um prato fundo de grãos, jamais aproveitados pela cozinheira de casa). Rente ao muro alto, que nos separava dos vizinhos e da rua, alguns mamoeiros deixavam cair as frutas que jamais colhíamos. Neste território levantamos tosca edificação de tábuas, um CTG - Centro de Tradições Gaúchas, onde passávamos tardes de sol ou chuva e noites assombradas embaixo de estrelas que pareciam lágrimas, além de manhãs de domingo regadas a churrascos acompanhados por vinho. No centro, havia espaço para nossa brincadeira favorita, o faroeste, em que caixões empilhados imitavam diligências. O melhor era utilizar o rebenque, feito de galho fino e flexível, que geravas vergões em adversários com menos idade (eu sempre estava entre eles). Fechando tudo, vasto portão vermelho de ferro, que emperrava e só abria à força de bundaços, já que nossos braços finos não davam conta do recado. No vão que existia entre o portão e o chão, um dia vi o inevitável desencontro da vida de um menino: o sapato branco, com furinhos, como era moda entre as mulheres da época, mas que eu identificava como sendo apenas de propriedade de minha mãe, afastava-se casa, o que desencadeou em mim a gritaria radical banhada em abandono. Minha mãe ia embora e eu não tinha outra opção do que implorar a sua volta, já que eu ficaria à mercê da crueldade ao redor e estaria órfão para sempre.

POROROCA - Consegui abrir o portão e fui atrás da pobre senhora que caminhava placidamente ao lado de algumas amigas. Ouvindo o berreiro, voltou-se preocupada. Nunca esqueço aquele rosto desconhecido. Usava óculos e ficou muda diante de mim. Eu já não dominava mais meus nervos. Agarraram-me à força e me levaram para dentro de casa, pois estava dando escândalo. Minha mãe estava no Posto de Saúde, para que tudo aquilo? Mas como que outra mulher usava o mesmo sapato de minha mãe? Esse era um mistério insondável para mim naquela primeira infância. Lembro que um dia fui ao cinema e senti vontade de ir ao banheiro. Como era natural, voltei para casa , pois só na minha casa existia essa coisa chamada banheiro. No retorno, aliviado, cheguei para o porteiro e disse que precisava entrar, eu já tinha pago a entrada. É que eu tinha ido em casa cagar, expliquei. O porteiro repetiu o verbo surpreendente em voz alta e me deixou passar. Talvez nunca tivesse visto caso semelhante. Na saída da sessão, me explicaram que o cinema dispunha do mesmo recurso, o que foi uma revelação para o garoto que vivia no mundo da lua, ou seja, dentro do universo inexpugnável da casa materna. Não sei se essa idiotia infantil era exclusiva minha ou se só eu lembro dessas coisas. O resultado é que custei a sair da infância. Aos 14 anos, ainda me abaixava para jogar bulita, o que deixava os mais velhos penalizados. O guri é meio abombado, diziam. A única pessoa que me via diferente era minha mãe. Fiz uma poesia, dizia para ela, mas não sei se tu vai entender, porque nem sabes o que é uma pororoca. Eu tinha aprendido no colégio o fenômeno das águas amazônicas e queria exibir conhecimento sobre o assunto. Dona Rosinha gargalhava, mas me dava força. Contava para todo mundo e mostrava o poema, feliz da vida. Enquanto ela se orgulhava do filho fora de esquadro, as outras pessoas me olhavam desconfiadas. O que vais ser quando crescer? perguntavam. Estrangeiro, eu respondia, e nunca estive tão certo. Até hoje moro num país estrangeiro, o Brasil Soberano, que muitos garantem jamais ter existido.

DESPEDIDA - Ela ficou me esperando na calçada, bem cedinho, com a vassoura na mão. Não era para varrer, era para disfarçar sua ansiedade. Eu estava voltando de Porto Alegre, nas primeiras férias depois de ter partido. Estava preocupada, pois numa carta eu dissera que deixaria a Faculdade de Engenharia (meca da maioria dos estudantes da época) para abraçar minha vida literária, ou melhor, que faria vestibular para o jornalismo, profissão sob suspeita, típica de beberrões e tocadores de violão. A primeira coisa que me disse foi: Não vais deixar a Engenharia! Claro que não, mãe, claro que não. Pois deixei e ela um dia, numa noite de inverno, mergulhada no seu jogo predileto, o Lidergrama, do Correio do Povo, respondeu tudo e as palavras da charada solucionada formavam um poema meu. Chorou, como sempre. Toda mãe de verdade chora quando um filho assoma numa noite fria e lhe diz: obrigado, mãe. Sou agora poeta, graças a teu olhar bondoso, ao teu olhar generoso, à grandeza que vias em mim, tu, inventora da minha vida e que te foste para o Outro Lado porque neste mundo não existe justiça e viramos pó para que não nos transformemos em monstros arrogantes. A morte é a nossa humanidade. Por isso lutamos tanto para tocar a túnica da eternidade. A vida eterna é a esperança que temos de espichar indefinidamente a lição poderosa de sermos mortais. A eternidade é a mãe que despeja em nós a possibilidade de driblarmos essa professora impiedosa, a morte, que nos ensina a ser a fruta que não cai para apodrecer, a diligência que cruza o deserto, o portão que nos revela a fuga de um amor que fará falta para todo o sempre.

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