19 de janeiro de 2005

VER E OUVIR EM CLODOVIL HERNANDES


Nei Duclós

Alta moda é para os olhos, janelas que se abrem para a admiração (até os anos 60) ou para o desejo (hoje). Clodovil faz parte do primeiro time, o da roupa que é criada com exclusividade para ser vista pelos pares (pessoas do mesmo nível social) de quem usa e serve de objeto de consumo comparável às jóias. Como esse tipo de roupa só pode ser usada uma vez, a reprodução em massa pela mídia veio atender a necessidade de exposição não apenas da arte criada pelo estilista (e que precisa ser vista por um número maior de pessoas), mas dos papéis sociais que ela reitera. É um nicho difícil de lidar, por implicar moeda virtual raríssima, o talento, e depender da palavra contaminada pela sugestão e o conhecimento. É preciso saber para convencer, mas ser convincente significa também ter a frase maleável, ao ponto, para dobrar cada cliente. A palavra final sobre o desenho criado é uma situação que soma as duas forças principais em Clodovil: ver (que é enxergar antes dos outros, pois a criação será consumida pelos olhos e, portanto, depende do crivo do artista visionário); e ouvir o que ele tem a dizer com sua segurança que nada mais é do que uma técnica altamente desenvolvida de inventar ilusões.

EXCLUSÃO - Sua costura verbal, que extrapolou o círculo da alta moda e inundou a televisão a partir da TV Mulher, da Globo, usa o visual como suporte nos sucessivos programas dos quais participa. Na longa entrevista que deu ontem, dia 18, para o Programa do Tom, na Record (e que continua hoje), Clodovil apresentou-se com a elegância do seu estilo (duas coisas que nem sempre andam juntas) e desandou, como de costume, seu verbo cevado nessa profissão que impõe pelo que se sabe, mas também pelo que se sabe dizer. Não há limite para um estilista decidido a marcar época, assim como não pode haver fronteira entre o que é dito com sinceridade e o que é apenas colocado para fazer parte da conversa. Como não há responsabilidade alguma entre as pessoas esclarecidas do país, que deixaram a moral a cargo dos meliantes, Clodovil entra nesse vácuo com suas armas: a aparente sinceridade (que de tão convincente torna-se profunda, numa paródia imperfeita do célebre poema de Pessoa, em que ele finge ser o que realmente é); a obviedade de seus insights (como sua insurgência contra a imagem da mulher vadia, tão badalada pela mídia) e o improviso inspirado no nicho social que o desenvolveu, a aristocracia brasileira, fruto da má distribuição de renda. Como o sonho de toda a população é fazer parte desse Olimpo, para escapar do terror da sobrevivência a qualquer custo, Clodovil deita e rola com suas tiradas afiadas na exclusão social.

NOBREZA - Ao conviver décadas com as pessoas que usufruem o que o país oferece de melhor, ele adquiriu a plena consciência do sucesso que faz quando esnoba com seu talento, seu estilo, suas roupas, suas jóias e sua biografia. Sua grande sacada é colocar-se como parte dessa aristocracia (a porção nobilitada pela arte bem sucedida) sem transparecer que dá importância para isso, especialmente quando diz desprezar o dinheiro, o que é um tapa de luva no novo-riquismo. O aristocrata pode estar em queda financeira (como o Barão, interpretado por Raul Cortez, e que anda sumido de Senhora do Destino), mas não perde o aplomb. Colocando-se como parte legítima da nobreza, quando foi ungido pelo talento, Clodovil consegue jogar com sua carta mais contundente, a frase que precisa excluir a tudo e a todos, pois é assim que ela foi acostumada a ser, por dever de ofício.

VINGANÇA - Clodovil funciona como contrabando na atual baixaria da televisão. Como foi erradicada a qualidade, o alto nível artístico, a criação verdadeira, e a população ficou à mercê da mediocridade e da imoralidade, Clodovil surge sempre como um tornado vingativo, que por fora é peça dessa falta de escrúpulos da TV, mas que no fundo vem de mais longe e denuncia, sem querer, o quanto o Brasil deve aos seus talentos, já que um deles, dos mais notórios, confessa que abre a caixa de ferramentas verbais e comportamentais para não ser eliminado. Eles já teriam me matado, disse ontem para Tom Cavalcante. Alguns desses objetos que ele lança a esmo atingiu Cacá Rosset, que tentou peitá-lo no programa e acabou indo embora. O espírito de vingança que domina seu espírito, e que ele precisou usar ao longo de 68 anos de vida, cobre Clodovil do que ele menos precisa: a apelação, que sempre pode ser justificada por sua argumentação afiada. Mas que deveria ser deixada de lado, junto com sua capacidade de fazer inimigos, que o deixou ainda mais só. Sua solidão representa o isolamento da classe social que escolheu viver, e que ao ser vista pelo que Clodovil apresenta ao vivo, ainda não foi esquecida. Mas que ao ser ouvida deixa um travo amargo no coração dos telespectadores.

RETORNO - Tratar Clodovil pelo que representa e não pelo que sugere com sua auto-desconstrução permanente (e que é refeita no minuto seguinte) é um desafio para o texto. E para o autor que precisa relevar o dilúvio de mal estar que o estilista provoca ao desancar as pessoas.

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